"OLHAR E VER"
Pascal
5. OLHAR PARA NÓS
Quem me tem lido sabe que pouco afirmo e muito questiono. Não sei nada que possa ou deva ensinar, partilho o que sintopenso, tenho esse gosto simples de dar a mão e perguntar. Como sou muito preguiçoso, procuro o conforto de quem nos alerte e desperte, sem qualquer preconceito de escolha, que não seja o desafio para uma reflexão sobre o que já se dá por adquirido. E esse convite à inteligência e ao diálogo, mais facilmente me virá de fora. O que "os outros" pensam ou dizem de nós pode não ser um espelho, uma representação fiel, do que somos. Mas por reflectir o modo como somos vistos é possivelmente uma oportunidade para nos interrogarmos sobre o que julgamos ser. Volto a Ibn-Khaldun, pensador mouro do sec. XIV. Depois de um relato da história do povo judeu até à destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos, escreve: Depois veio o Messias: trouxe aos Judeus a religião de que era mensageiro, e aboliu certas leis da Torah. Fez milagres extraordinários: curas dos loucos e ressurreição dos mortos. Muitos o seguiram e acreditaram nele. Os principais foram os apóstolos, seus companheiros, que eram doze. Enviou parte deles em todas as direcções, para espalharem a sua doutrina. Isso passou-se sob o reino de Augusto, primeiro imperador romano, e no tempo de Herodes, rei dos Judeus. Os Judeus tinham ciúmes de Jesus e trataram-no de impostor. Herodes, rei deles, escreveu a Augusto, imperador romano, e incitou-o contra Jesus. Augusto deu aos Judeus autorização para o condenarem à morte. Esta é a história de Jesus, tal como vem contada no Corão... ... Pedro foi o maior de todos os apóstolos. Estabeleceu-se em Roma, capital dos imperadores romanos. Escreveram então o Evangelho revelado a Jesus, em quatro versões correspondentes às suas diferentes tradições... ...A maior parte deles é feita de sermões e narrativas, sendo pouco numerosas as leis... ...O apóstolo Pedro, chefe dos apóstolos e decano dos discípulos estabeleceu-se em Roma, onde dirigiu a comunidade cristã até ter sido morto por Nero... ...Mais tarde houve dissensões entre os cristãos acerca dos princípios básicos da sua religião e dos artigos da sua fé. Reuniram-se em Niceia, no reinado de Constantino, para fixarem por escrito o que devia ser tomado por verdadeiro no cristianismo. Assim, trezentos e dezoito bispos puseram-se de acordo sobre uma mesma doutrina do cristianismo a que chamaram Credo... ...Os bispos continuaram a ser os representantes dos patriarcas. Chamavam pai ao patriarca, em sinal de respeito. Assim também, na ausência do patriarca, os padres chamavam "pai" ao bispo, por respeito. Daí resultou uma longa confusão no uso desse título, que perdurou, diz-se, até ao patriarca de Heráclio, em Alexandria. Para distinguir o patriarca do bispo, chamaram-lhe papa, isto é, "pai dos pais". Esse título apareceu pela primeira vez no Egipto, segundo diz Jurjis Ibn al-Amid na sua História. Transmitiu-se em seguida ao titular da sé mais importante, a de Roma, que é, como vimos, a sé do apóstolo Pedro. E ficou, até aos nossos dias, seu atributo particular... ...Na terra dos francos, o papa insiste em que as gentes se submetam a um só príncipe e o consultem sobre todos os pontos de acordo ou desacordo, a fim de evitar a desunião. Procura assim formar à volta de tal príncipe um espírito de corpo mais forte, de modo a que tenha autoridade sobre todos. Esse príncipe é chamado emperador... ...E o próprio papa coloca-lhe uma coroa na cabeça, em sinal de bênção. Ibn-Khaldun fala-nos do papado, numa época em que terminava a longa querela entre o Sacerdócio e o Império (1125-1358), em que vários papas foram tão tentados pela teocracia, melhor dizendo, pela temporalidade do poder pontifício. Mas, dos trechos aqui traduzidos, ressalta bem a clareza com que ele entendeu a fundação da Igreja como assembleia católica (universal), confiada ao corpo episcopal inicialmente composto pelos doze apóstolos, cujo primaz é Pedro de Roma. E é verdade que as expressões de respeito ou veneração ali referidas deram azo a algumas confusões, até que o papa Gregório VII (1073-1085) reservou o uso da designação papa, de origem mediterrânica, ao sucessor de Pedro em Roma. Diferentemente do que muitas vezes na cristandade se pensa, houve sempre, e há hoje, entre os pensadores islâmicos e nas suas escolas, uma reflexão documentada e séria sobre a instituição religiosa do cristianismo e a história da sua Igreja e doutrina. Importa também que consideremos os modos como somos vistos no mundo islâmico, para além da corrente tradicionalista (enquanto sunita fundamentalista, até Ibn Khaldun a partilhava) que defende não haver azo a qualquer debate religioso com judeus ou cristãos, gente do "Livro", aos quais, em território muçulmano só resta a escolha entre a conversão, o tributo per capita, ou a morte. Se Ibn-Khaldun assim pensava, é também porque vivia num tempo em que a cristandade, sobretudo a latina, era o grande inimigo do islão. Ele, cuja família fugira de Sevilha, lembrava assim a sorte dos seus antepassados: Entre os anos de 1225 e 1272, os muçulmanos espanhóis padeceram a conquista das suas fortalezas, a violação do seu território, a perda das suas províncias, a ocupação das suas cidades e a ruína das suas propriedades. As suas riquezas foram saqueadas pelo inimigo, ou então serviram para pagar contribuições forçadas e para adquirirem tréguas. Limitado ao reino de Granada, o Andaluz já não tinha as condições necessárias a uma civilização de progresso das ciências e das artes, que tampouco a ausência de uma civilização urbana no Magrebe lhes poderia facultar. Assim, Ibn-Khaldun irá dissertar sobre a decadência do sul islâmico, em oposição ao surgimento científico e económico que então conheceria a Europa cristã das cidades e universidades. É interessante lembrar que, na qualidade de embaixador do rei de Granada, ele se encontrou, em 1363, com Pedro o Cru, rei de Castela, que não só o autorizou a se acantonar em Sevilha, como lhe propôs a restituição dos bens outrora ali confiscados à sua família... Mas naquela época - apesar das alianças de príncipes cristãos com muçulmanos contra cristãos e vice-versa, de tréguas e trocas de prisioneiros, de muito comércio e, mesmo acordos matrimoniais com as obrigatórias conversões - o clima geral era, de um e de outro lado, o de "guerra santa". Imaginemos o que seria o relacionamento entre religiões e culturas se, por exemplo, homens como Ibn-Khaldun tivessem tido a intenção, a oportunidade e a autorização para percorrer o borbulhante mundo universitário europeu que, sem esquecer as ilhas britânicas, já nessa altura se espalhava por todo o continente, de Coimbra à Polónia, onde se estudava Platão e Aristóteles, conhecidos também por versões árabes, com comentários de Avicena e Averroes, filósofos muçulmanos que, também nas universidades da cristandade europeia, eram apresentados e debatidos? Recorde-se que data de 1210 a primeira proibição eclesiástica de ensinar Aristóteles. Ela será relembrada em 1231, por ocasião do reconhecimento, por Luís IX, da autonomia corporativa da universidade de Paris, apoiada pelo papa, e já depois da fundação da universidade de Toulouse, em 1219, onde professores frades dominicanos tinham voltado a ensinar Aristóteles que, a partir de 1240, aquando da chegada das primeiras obras de Averroes, seria ainda comentado por Alberto Magno e Roger Bacon. Em 1250, os dominicanos fundam escolas de árabe e, até 1270, a obra de Averroes vai entrando nas universidades. É nesse ano que se verifica a primeira condenação do "averroísmo", a segunda acontecendo, sete anos depois, em 1277, conjuntamente com a de teses tomistas. Sabemos como, apesar disso, Tomás de Aquino seria mais tarde considerado o teólogo oficial da Igreja católica, tendo sido levantadas as condenações de 1277, aquando da canonização de frei Tomás, em 1323. Vem a talho de fouce referir que aquelas reprovações tinham sido proferidas por Étienne Tempier, bispo de Paris, por meio de Syllabus, que antes fora professor da universidade, onde discordara de Tomás de Aquino : séculos mais tarde, conhecemos casos semelhantes (vg. pela Congregação da Doutrina da Fé), em que se procurou calar ou desacreditar quem, teórica ou discursivamente, discordava da opinião ou tese do eminente prefeito. Ibn-Khalun, fiel sunita, para quem a suprema referência do nosso conhecimento e interpretação do mundo, seria sempre o Corão e a suna, entendida como tradição corânica, teria estado mais de acordo com Tempier que condenava a proposta de frei Tomás e do seu mestre Alberto Magno de que se estudasse Aristóteles em apoio do questionamento teológico, reconhecendo à razão humana o direito de interrogar a fé, abrindo a todos o caminho da procura da verdade. Todavia, ainda que recusando a filosofia como ciência das coisas (esta está no Corão), apercebe-se de que a sua meditação sobre a expansão e recuo do islão no Andalus, tal como a ascensão e queda de dinastias e impérios, o conduziram a criar uma ciência nova : Posso bem dizer que uma nova ciência nasceu. Nunca, posso afirmá-lo, encontrei um só autor que tratasse do mesmo assunto. Na verdade, ele irá transpor o limiar da história narrativa para entrar na análise social e política da história, e fará da teoria crítica da história uma ciência das sociedades. Acaba por ser, também, um sociólogo "avant la lettre". Mas, goste ou não goste, o seu método de demonstração assenta na análise da realidade, em que, segundo a filosofia de Aristóteles, é fundamental distinguir o essencial do acidental. E, muito embora o filósofo grego na sua obra Da geração e da corrupção não se tenha lembrado de aplicar essas duas categorias à explicação da história ou da evolução das sociedades, é em jeito quase organicista que Ibn-Khaldun irá fazê-lo. Vemos assim como então, em ambos os lados do Mediterrâneo, e apesar de se proclamar a "guerra santa" como modo privilegiado de "diálogo", havia condições culturais e referências intelectuais para que as religiões pudessem conversar. Não seriam suficientes, nem tampouco a fase de decadência do islão ocidental em tempo de surgimento da civilização cristã europeia - com o que isso traz de mágoa e ressentimento - ajudaria. E o que veio a seguir foi o Império Otomano, dominador do islão anterior (menos em Espanha) e que, depois de destruir o Império Bizantino chegou às portas de Viena... Houve, todavia, casos curiosos de confrontações religiosas pacíficas, em que se procurava, não só pela pregação apologética, mas também pelo debate inter-religioso, dirimir ou evitar conflitos potenciais. Debrucemo-nos brevemente sobre a estratégia missionária dos dominicanos, designadamente no reino de Aragão, na 2ª metade do sec.XIII. Dois frades pregadores catalães, Raimundo de Penyafort e Ramon Marti - o primeiro conhecera pessoalmente São Domingos, em Bolonha, onde se licenciara em direito, fora mestre geral dos dominicanos e confessor do papa Gregório IX; o segundo, seu discípulo, aprendera o arameu, o hebreu e o árabe numa das escolas que a ordem dominicana entretanto criara para o efeito, e estudara a Bíblia hebraica, o Talmud e o Corão - solicitaram e aproveitaram a autoridade régia para coagirem sábios e clérigos judeus e mouros a participarem com eles em debates acerca das respectivas religiões. O esforço poucas conversões trouxe, ficando, em regra, cada um na sua, por vezes apelidando os outros de cegos ou estúpidos... E esta tentativa terminou, até porque muitos teólogos católicos defendiam, na senda do dominicano São Tomás de Aquino, que a verdade do cristianismo não pode ser provada só pela razão. Olhar para nós é, também, perceber a nossa incompletude e nunca esquecer o dito de Pascal: O coração tem razões que a razão desconhece.
Camilo Martins de Oliveira