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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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OLHAR E VER

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6. O LUGAR DA HISTÓRIA 

 

No seu notável ensaio «Ibn-Khaldun au prisme de l´Occident», o professor Krzysztof Pomian insiste em que, para aquele pensador andaluz, «o mundo não varia. No seu tempo estacionário se desenrola o tempo dos homens. E este é descontínuo. Com efeito, tudo o que os Antigos produziram foi anulado pelo islão, que assim é tido por um começo absoluto, quer da verdadeira fé, quer da organização política, das letras e das artes...  ... Em todos os domínios o islão se basta a si próprio. A atitude de Ibn-Khaldun face ao passado pré-islâmico contrasta com a que os Latinos adoptam face ao passado pré-cristão... ... Mais ainda, o advento do cristianismo não traz o repúdio das obras literárias, históricas ou filosóficas impregnadas de crenças pagãs. Na cultura das elites letradas da cristandade latina, um polo escriturário e patrístico coexiste com um polo antigo, um polo puramente cristão com um polo pagão. Isso provoca tensões e coloca os indivíduos perante opções que, por vezes dolorosamente, vivem. Também provoca conflitos entre os que querem manter essa bipolaridade e os que preconizam o abandono da tradição literária pagã. Mas estes nunca tiveram ganho de causa». O surto renascentista iniciado nos séculos XIII-XIV iria colocar a Europa cristã na senda do uso da razão, que desabrocharia no Iluminismo. Teria sido possível, em país de mouros, o paganismo simbólico que, por exemplo, serve Os  Lusíadas ? Para o cristianismo, a história do mundo gira à volta de Cristo, o alpha e ómega está no centro da história. O Verbo iniciador fez-se carne, entrou na vida terrena e na história dos homens, não já para a iniciar mas para a redimir e levá-la ao seu fim, que é a eternidade com Deus. Ao tempo da permanência da Igreja neste mundo se chamou aevum, a longa duração do que, estando ainda no tempo, afinal é fora dele. Assim, ontologicamente, a Igreja não tem passado, presente e futuro: como Cristo ela abraça o que, na história, antes foi, hoje vemos, e está por vir. Mas na duração do aevum, sua idade temporal, esse abraço chama-se tradição. No seu grandioso estudo «La tradition et les traditions», publicado em 1960, pouco antes do Concílio Vaticano II, o dominicano frei Yves Congar, depois de referir a tradição oral que precedeu o registo escrito da Bíblia hebraica  - é claro que as disposições da lei mosaica regularam a vida de Israel, e os salmos exprimiram a sua oração, muito antes de terem sido transcritos  -  escreve: Nascidos na tradição, ou mesmo da tradição, os escritos bíblicos surgem-nos transportados por uma realidade religiosa viva, que os precedeu, a saber, na sua totalidade, ou nas partes mais puras e representativas dessa totalidade, a comunidade do Povo de Deus. Foi esse também o caso do Novo Testamento. E recorrerá, mais adiante, ao jesuíta Karl Rahner que propôs vermos o facto da inspiração escriturária no quadro da eclesiologia ou, pelo menos, da história da Salvação, isto é, da acção pela qual o Espírito Santo constrói o povo de Deus : a inspiração escriturária corresponde ao momento em que Deus cria a Igreja quanto ao seu elemento constitutivo de conhecimento... E, noutro passo, realçará que S. João Damasceno, ao falar da Igreja no seu A Fonte do Conhecimento, a vincula à tradição : Aquele que não acredita em conformidade com a tradição da Igreja católica não tem fé... ...Não reconheço aos decretos imperiais o direito de regular a Igreja. A Igreja tem a sua lei nas tradições dos Padres, escritas e não escritas... O mesmo S. João de Damasco, em defesa do culto das imagens, e contra os iconoclastas, cita o seguinte texto de S. Basílio: Entre as "doutrinas"  e as "definições"  que a Igreja guarda, temos umas pelo ensinamento escrito, outras foram recolhidas, transmitidas secretamente, da tradição apostólica. Todas têm a mesma força aos olhos da piedade, assim concordará quem tiver, ainda que pouca, experiência das instituições eclesiásticas : pois, se tentássemos afastar os costumes não escritos por não terem grande força, atingiríamos, sem querer, o Evangelho, em pontos essenciais... O damasceno dá, como exemplo de tais tradições, o culto das imagens, a adoração da Santa Cruz, a instituição dos sacramentos, a oração feita em direcção do Oriente... Personagem histórica invulgar, João de Damasco, nessa cidade síria nascido por volta de 650, ainda sob império bizantino, numa família cristã, de apelido Mansur, seria, portanto, um cristão sírio-palestiniano. Seu pai exerceu funções importantes na administração financeira do Estado, primeiro sob o imperador cristão de Constantinopla, mais tarde sob o califa omíada Yazif I que, aliás, fora educado, juntamente com João, por um monge italiano capturado na Sicília. E o nosso damasceno será chefe dos serviços fiscais do califa até ao afastamento dos cristãos de qualquer função administrativa. Retira-se então para um mosteiro em Jerusalém, onde se dedicará à oração e à escrita de uma obra teológica, apologética, litúrgica e musical que, no futuro, não será só considerada na Igreja ortodoxa grega, mas ainda pela Igreja católica romana, até à sua proclamação como Doutor da Igreja pelo papa Leão XIII em 1890. O nome deste cristão árabe foi, durante a sua longa vida (terá morrido em 749, com quase cem anos!) Yuhannâ bin Mansur bin Sarjun, e os seus textos apologéticos (em defesa do cristianismo) e polémicos (contestando o islão, que ele classifica como heresia do cristianismo) não só serviram de conforto à fé cristã das populações que o califado omíada (cuja duração, no oriente, coincide sensivelmente com o tempo de vida do Damasceno) havia submetido após vitória sobre o império bizantino, como também estabeleceram circuitos de discussão e confrontação com religiosos e pensadores muçulmanos, ao ponto de se considerar S. João de Damasco como um dos fundadores da teologia islâmica. Recorde-se ainda que a designação de islão (abandono ou submissão a Deus) se aplicará à religião de Maomé e à comunidade dos seus fiéis precisamente a partir do califado omíada. Mas a obra deste Doutor da Igreja debruçou-se muito mais sobre a iconoclastia vigente por decreto imperial, quer no império omíada (por Yazid II, em 723, proibindo o culto das imagens por qualquer religião), quer no bizantino (pelo imperador Leão III, em 730, interdição que duraria até 11 de Março de 843, quando um sínodo de bispos restaurou esse culto tão popular e importante na tradição cristã oriental). A iconoclastia em Bizâncio ter-se-á afirmado por influências monofisitas e judias, bem como islâmicas : não esqueçamos que o imperador Leão III era natural de Síria ; nem que era muito permeável, à circulação de ideias e transmissão de comportamentos, a fronteira algo vagabunda que separava a Anatólia e a Arménia cristãs da Síria recentemente conquistada pelos omíadas. Em pleno território islâmico, João Damasceno, em nome da tradição, defenderá que a veneração das imagens de Cristo, da Virgem e dos santos não é um acto idolátrico, ou seja, de adoração de uma figura material, mas uma relação com o invisível através de uma imagem visível. Li recentemente na Der Spiegel um artigo de Navid Kermani, escritor alemão de origem iraniana, sobre a iraquiana Nadjaf, cidade santa, que muitos consideram o Vaticano do chiísmo. No centro dela se situa um extensíssimo cemitério, em que milhões de sepulturas se juntaram ao mausoléu do imã  Ali, o quarto califa, primo direito do Profeta e marido de sua filha Fátima,  que foi assassinado ali perto, em Kufa, a capital que precedeu Damasco. Esta impõe-se com a conquista omíada, e a dinastia que acedeu ao poder depois de ter eliminado o califa Hassan, filho de Ali e neto de Maomé. Aí começa, com a derrota do partido legitimista, a tradição chiíta, oposta ao sunismo maioritário. Indo ao texto de Navid Kermani: O "partido" de Ali  -  tradução literal da palavra shi´a  -  é uma religião de lamentação e de penitência; até muito tarde no sec. XX, ela foi uma religião de interioridade e retiro do mundo. Os seus doze imãs, sucessores directos de Maomé, foram todos assassinados de modo cruel, pérfido, ignominioso  --  não por infiéis, mas por muçulmanos. Para os chiítas, esta traição à família e à mensagem do Profeta continua a repetir-se ao longo de mil e quatrocentos anos. O domínio dos sunitas, sob o qual sofreram durante séculos no Iraque, as centenas de milhares de chitas  -  dos quais 9000 religiosos  -  que o ditador Saddam Hussein fez assassinar a partir de 1991, o avanço das ideias wahabitas (ideologia sunita ultraconservadora, predominante na Arábia Saudta) no conjunto do mundo islâmico, e agora as acções do EI: cada nova ameaça se inscreve nesse esquema da traição interna. «Receia pelo mausoléu?», perguntei a um guarda, senhor idoso, de cabeça rapada e fato amarrotado, a seguir à oração de 6ª feira. Respondeu com firmeza: «Não! o EI nunca avançará até tão longe em território chiíta». O artigo de Navid Kemani encerra com o relato da sua entrevista, em Nadjaf, com o grande aiatola Al-Sistani e um dos seus filhos, Mohammed Reza Al-Sistani. Referem-se estes  à Alemanha, perguntam pelo modo como ultrapassou o seu passado e interrogam sobre as relações do Estado com a Igreja. Elogiam a criação de cátedras de estudos islâmicos nas universidades, como modo de evitar surtos de extremismos... E vale a pena encerrar esta crónica com a transcrição de passos dos últimos parágrafos daquele artigo: «Mohammed Reza interroga-me sobre outras entrevistas que fiz anteriormente. Confidencio-lhe que todos procuram atribuir a responsabilidade dos azares aos outros, sobretudo ao ocidente. Ele responde-me que isso não passa de um pretexto, as causas reais sendo a ausência de sentido do interesse geral, a corrupção, a anarquia, a ausência de liberdade e o egoísmo que reinam na maioria dos países islâmicos. Porque é que uma jovem mulher como a matemática Maryam Mirzakhani, que obteve o prémio Fields, não teve no Irão a possibilidade de pôr o seu génio ao serviço da sociedade? «Na verdade, os alicerces da nossa sociedade estão tramados». Mohammed Reza Al-Sistani tece louvores à União Europeia, que transformou povos inimigos em amigos. No mundo islâmico, os pequenos países do Golfo, que partilham a mesma língua, a mesma cultura, a mesma religião, nem sequer conseguem formar um mercado comum. E como se essas divisões não bastassem, ei-los a querer ainda dividir os Estados existentes por etnias e confissões. Interrogo também o grande aiatola sobre a expulsão dos cristãos do Iraque. Trata-se, para ele, de uma catástrofe de alcance histórico. « No plano teológico», acrescenta  --  referindo-se provavelmente às imagens, às procissões, ao culto de Maria, às orações de intercessão e à ideia de redenção da Igreja Católica, que o chiísmo também conhece  --  « o chiísmo está próximo do cristianismo»...». A mim, pessoalmente, foi-me ensinando a vida que dividi pelos continentes da terra que os seres humanos se podem descobrir muito mais próximos do que tantas vezes julgam. Ser humano diz bem o que é a nossa condição, e nada daquilo que é humano pode ou deve ser-nos estranho. A glória de Deus são os homens de boa vontade. 

 

Camilo Martins de Oliveira