OLHAR E VER
Vitrais de Chartres
7. CONHECER É IR CRESCENDO
No endereço aleqt.com mora o jornal em linha na rede electrónica Al-Eqtisdiah, em língua árabe, publicado pela Saudi Research & Publishing Company, de Riad, Arábia Saudita. Jornal liberal, tem um acordo com o britânico Financial Times, de que publica notícias e artigos. Corresponde à necessidade crescente de um espaço de opinião e debate de ideias que faixas importantes da sociedade saudita - que se cosmopolitizam, após contacto com o mundo exterior, pela educação em universidades europeias ou americanas, ou através de negócios e actividades profissionais, ou, mais simples e generalizadamente, pela frequentação das redes de comunicação eletrónicas - vão manifestando... Assim, o regime wahabita, apesar do sectarismo, primitivismo e intolerância da sua ideologia, vai consentindo umas válvulas de escape. Um artigo publicado em 19 de agosto p.p. e assinado por Tawfiq Al -Saif, propõe um passo em frente à consciência moral do Islão, na consideração dos atentados e homicídios que vão sendo perpetrados pelos movimentos terroristas que se reclamam do islamismo. Achei curiosa a referência inicial do autor ao "nosso" Ibn-Khaldun (1323-1406), ao qual aliás voltarei adiante : O pai da sociologia, Ibn-Khaldun, destacou, entre outras coisas, a propensão dos povos vencidos a imitarem a cultura do vencedor. Tal ideia influenciou muitos intelectuais árabes, designadamente islamistas. Assim, o falecido teólogo Taher Al-Khaqani teve sempre posições intransigentes sobre o modo como os muçulmanos deviam conceber as suas relações com as outras nações do mundo. Quando o interroguei sobre isso, explicou-me que procurava por aí evitar que o baixo povo se deixasse influenciar pelos modos de vida dos vencedores... A terminar o seu texto, Tawfiq Al-Saif, volta a uma tese de Ibn-Khaldun - a do passado prestigioso dos quatro primeiros califados do islão - sem todavia estabelecer qualquer referência ao grande pensador do sec. XIV: Transmitimos uma visão seletiva da nossa história, que descreve um passado glorioso, sem lhe expor os aspectos negativos, nem os custos humanos, económicos e morais. São assim muitos os que consideram sagrado esse passado e o procuram ressuscitar seja como for. Isso traduz-se até em vestuário e atitudes de membros de grupos como o Daech (EI). Temos de libertar as nossas sociedades da "angústia identitária", isto é, desse profundo sentimento de ser fraco, marginalizado e destituído face ao resto do mundo, que se teria coligado contra nós, muçulmanos, para nos destruir. Essa "angústia identitária" é um dos principais factores que permitem que os grupos violentos recrutem adeptos e beneficiem de apoios financeiros. Reencontramos aqui esse complexo sentimento de humilhação, desamparo e desadaptação, que antes várias vezes referimos como factor de instabilidade emocional, social e política. Cabe claramente aos muçulmanos de boa vontade continuar a desmistifica-lo e corrigi-lo. Mas compete ao "ocidente" encarar o islão com a racionalidade necessária à compreensão dos factos, e dos motivos de atitudes e comportamentos, e com a solicitude indispensável à aproximação e ao diálogo, reconhecendo ainda a sua responsabilidade pelos erros cometidos, designadamente nestes últimos cem anos, no tratamento do espaço islâmico mediterrânico, quer quanto às interferências políticas, como às intervenções bélicas e, de modo insidioso, amoral e interesseiro, na área económica. Teremos de perder o nosso complexo sentimento de superioridade, incluindo a mania de que somos detentores de modelos sociais, económicos e políticos de valor e aplicação universal. Quando, ainda por cima, sabemos cada vez melhor como o falhanço do nosso sistema económico - que até se reflecte na crescente ubiquidade de um poder financeiro politicamente incontrolável - é concomitante a uma desadaptação dos nossos regimes sociais e a uma crise perturbante das nossas democracias... Cumpre-nos, portanto, ter igualmente a coragem de enfrentar os nossos erros e carências de juízo e reforma, tal como o jornalista saudita que entretanto também escreveu : Fui interpelado pelas reações dos ulemas às exacções do Daech contra cristãos e yezidis no norte do Iraque. A maioria deles não condenou essas exacções enquanto tais, mas disseram que elas prejudicavam a imagem do islão no mundo... E depois de reconhecer que os textos islâmicos reforçam a propensão dos muçulmanos a suspeitarem dos fiéis de outras religiões e que, em tempos críticos, tal propensão pode tornar-se em agressividade, interroga-se sobre se o que esses mesmos textos contêm de benevolência não será frequentemente esquecido por pregadores mais inclinados a corresponderem ao gosto da cultura pública dominante,e afirma: O que se passa no norte do Iraque revela-nos o perigo desse estado de facto. Por isso devem as nossas elites dizer explicitamente que a suspeição e a hostilidade para com não - muçulmanos são condenáveis em si. O problema não está no atentado à imagem do islão. É imperativo condenar esses crimes enquanto tais. A parte VI do livro I do Muqaddima de Ibn-Khaldun trata de As diversas espécies de ciências, métodos de ensino, e estados que os afectam e começa por um preâmbulo, assim : «Sobre o pensamento humano, que distingue o homem dos animais, o guia para a aquisição dos seus meios de subsistência e para a colaboração com os seus semelhantes com vista àquela, assim como para a consideração dAquele que ele adora e das mensagens transmitidas pelos Seus enviados. Deus submeteu ao homem todos os animais e colocou-os sob o seu poder. Deu-lhe, graças ao pensamento, a superioridade sobre muitas das suas criaturas». E escreverá adiante, em título de capítulo, que o mundo das coisas criadas se cumpre a partir da acção, graças ao pensamento. A cosmologia do pensador mouro, tal como o seu antropocentrismo e confiança na racionalidade, não é diferente da dos cristãos do seu tempo, a ponto de, ao ler o capítulo acima titulado, me lembrei do que, em crónicas publicadas no blogue do CNC, pelo Natal de 2012, chamei O Presépio Cósmico de Tiago Voragino. Tratava-se aí da visão do mundo cristocêntrico que o dominicano arcebispo de Génova revela na sua Legenda Aurea, escrita no século XIII. Tampouco será estranha à inteligência cristã do seu tempo, a nomenclatura das ciências racionais apresentada no Muqaddima : aquelas são naturais ao homem enquanto dotado de pensamento. Não são apanágio de uma religião particular. Pelo contrário, são estudadas pelos adeptos de todas as religiões, os quais são igualmente aptos a aprendê-las e a empreender investigações sobre elas. Existem na espécie humana desde que a civilização surgiu no mundo. Chamam-se «ciências da filosofia e da sageza». São quatro. E enumera-as : a lógica, que ensina o método e o rigor do pensamento; a física, que estuda as coisas sensoriais, minerais, vegetais, animais e corpos celestes, os movimentos naturais e o que os anima; a metafísica, que investiga as essências espirituais, o que está para além da natureza apreensível pelos sentidos; as matemáticas, que estudam as grandezas e se dividem em geometria, aritmética, música e astronomia. Se, em vez de contarmos as matemáticas no seu conjunto, enumerarmos apenas estas quatro mais as três anteriores, chegaremos a sete ciências, número perfeito. De todos os povos cuja história conhecemos, os que mais cultivaram estas ciências foram as duas grandes nações pré-islâmicas dos Persas e dos Rum (Rum são os bizantinos, herdeiros da cultura greco-romana). Segundo as informações que nos chegaram, as ciências eram por elas muito honradas, porque eram civilizações florescentes, e eram elas que governavam o mundo dantes e até ao advento do islão... Esta referência ao advento do Islão tem peso maior do que poderíamos julgar : na verdade, o advento do Islão, nesse pensamento, vai dividir a história entre antes e depois, e vai retirar à tradição da civilização e cultura islâmicas qualquer desempenho das funções próprias à natureza racional do ser humano como factor de interpelação do tempo e do modo e, consequentemente, motivador de progresso. À categoria das ciências naturais aos homens enquanto seres racionais, e independentemente das religiões que pratiquem, junta-se a categoria das «ciências tradicionais positivas». Estas apoiam-se todas sobre informação proveniente de uma instituição religiosa (o Corão e a Suna, próprios ao islão, e que o separam das outras religiões e modos de pensamento). A razão, aí, só intervém para religar as questões derivadas aos princípios. Com efeito, as coisas particulares que sucessivamente vão acontecendo não fazem integralmente parte da tradição desde a instituição desta. Devem ser-lhe ligadas por raciocínio analógico. Todavia, esse raciocínio fundamenta-se numa informação segundo a qual o juízo é estabelecido na origem. Isso depende da tradição. O raciocínio analógico pertence pois à tradição, porque deriva dela... Faço observar que esta ideia de tradição também tem sido acolhida por meios mais "conservadores" das igrejas cristãs, incluindo a católica, na qual, todavia, outro conceito de tradição tem facultado a evolução do pensamento teológico e o diálogo com as ciências racionais, ou seja, integrado o progresso. Na verdade, a tradição não é só o que herdámos, nem substancialmente tudo aquilo que se pretenda dar por rigorosa e definitivamente estabelecido, chamando-lhe, por exemplo, "doutrina da Igreja". A tradição é todo o processo de revelação, o crescimento contínuo do conhecimento que se transmite para continuar a busca da perfeição. Será o ancião mais sábio e prudente do que o jovem, mas a velhice de cada um não deve determinar a aceitação passiva do envelhecimento da humanidade. Já Prisciano dizia Quanto sunt juniores tanto sunt perspicaciores! , quanto mais jovens mais perspicazes. E é a confiança na razão humana - a que frei Tomás de Aquino não temia entregar a reflexão sobre a fé - que tem permitido a contemporaneidade da interpelação da fé cristã. João de Salisbúria (1115-1180) fala, no seu Metalogicon, de um seu contemporâneo: Bernardo de Chartres dizia que somos como anões às cavalitas de gigantes, pois podemos ver mais coisas do que eles e a maior distância, não graças à acuidade do nosso próprio olhar nem à estatura dos nossos corpos, mas porque somos erguidos e mantidos em altitude pela grandeza dos gigantes... A tradição é, assim, uma pirâmide humana, em que o conhecimento cresce em novidade e abrangência.
Camilo Martins de Oliveira