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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Hannah Arendt.JPG
Hannah Arendt

 

17. PRECONCEITO E PLURALIDADE - I

 

Sob o título Was ist Politik?, reuniu Úrsula Ludz, em 1993, textos (alguns deles inéditos) que Hannah Arendt escreveu em 1953/54 e entre 1956 e 1959. Posteriormente, em 2005, Jerome Kohn estabeleceu uma versão em língua inglesa, publicada nos EUA com o título The Promise of Politics, que serviu de base à edição francesa (colecção L´Ordre Philosophique, Seuil, novembro de 2014) de Qu´est-ce que la Politique?, aonde fui buscar as citações aqui transcritas de passos de Hannah Arendt, que passo a citar : A política assenta no facto da pluralidade dos homens. Deus criou o homem; os homens são um produto humano, terreno, um produto da natureza humana. É porque a filosofia e a teologia tratam sempre de o homem - é porque todas as suas declarações continuariam sendo aplicáveis, mesmo que houvesse só um homem, ou só dois, ou só homens idênticos - que elas não encontraram uma resposta filosoficamente pertinente à questão: o que é a política? Mais grave ainda : para todo o pensamento científico só o homem existe  -  na biologia como na psicologia, na filosofia como na teologia... Mas... A política trata da existência comum e mútua de seres diferentes. Os homens organizam-se politicamente em função de certos pontos comuns essenciais, no seio ou a partir  de um caos absoluto de diferenças...   ...O homem, tal como a filosofia ou a teologia o conhecem, não existe  ou não se realiza, em política, a não ser na igualdade dos direitos que os seres mais diferentes mutuamente se garantam. Garantindo e assim concedendo voluntariamente um mesmo direito a nível jurídico, reconhece-se que a pluralidade dos homens, que só a si mesmos devem essa pluralidade, deve a sua existência à criação de o homem. Refiro-me, portanto, a Hannah Arendt, e aos pensamentos que dela evoco, como inspiração do que pensossinto e ora digo. Não pretendo expor ou seguir o seu discurso e propósito, reconheço uma dívida e desenvolvo umas ideias e interrogações. Não com propósito político ou religioso, mas, simplesmente, ético. Pelo meio desta introdução, ainda recordo que a pensadora germano-americana contestava o fundamento dos corpos políticos na família, posto que, no modelo familiar, os diferentes laços de parentesco são considerados, por um lado, como o meio de religar entre eles os seres mais diferentes e , pelo outro, como o que permite que grupos de indivíduos  parecidos entre si se diferenciem e se  oponham uns aos outros... (Ocorre-me aqui Fernando Pessoa: Coração oposto ao mundo, como a família é verdade...) Como adiante veremos, através de casos e exemplos, pessoalmente penso que, na política enquanto sabedoria e prática da organização e funcionamento das sociedades civis, em si e entre elas, tal como na família enquanto conceito de união primária de pessoas, ou na igreja enquanto assembleia que testemunha uma mesma fé, há certamente  necessidade de um princípio fundador. Mas este não pode ser um conjunto de preconceitos - como monolitos históricos que teremos de carregar - mas antes deverá ser sempre  uma concórdia voluntariamente assumida, e em que não se confunda o principal com o acessório, nem se tome o prestígio do passado como norma imutável em vez de exemplo considerável no tempo e nos modos. Não nos esqueçamos de que o princípio eius religio cujus regio resolveu afinal décadas de sangrentas e estultas guerras religiosas entre irmãos europeus e cristãos, nem de que o fraco entendimento de máximas como o meu reino não é deste mundo ou ainda dai a César o que é de César prolongou confusões e conflitos em volta da afirmação do modo do poder político... E muito menos olvidaremos que, na raiz de qualquer totalitarismo está, precisamente, a pretensão de impor um modelo de o homem, que apagasse a diferença entre os homens. Dito isto, os preconceitos, não só são necessários, mas inevitáveis. Escreve Arendt: Porque os preconceitos que partilhamos, que para nós são evidências, e podemos lançar na conversa sem longas explicações preliminares, têm eles próprios uma dimensão política no sentido lato do termo - um elemento inerente aos assuntos humanos que constituem o espaço em que quotidianamente nos movemos...   ... Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos : não só porque homem algum teria suficiente inteligência ou discernimento para ajuizar a custas suas tudo o que no decurso da vida exige um juízo, mas também porque tal ausência de preconceitos obrigaria a uma vigilância sobre-humana... ...Essa renúncia, essa substituição do juízo pelos preconceitos só se torna perigosa se ganhar o domínio político, onde, de modo geral, não nos podemos mover sem juízos, já que o pensamento político assenta essencialmente na faculdade de ajuizar. Uma das razões da eficácia e do perigo dos preconceitos reside em que eles guardam sempre um fragmento do passado. Olhando-os de perto, reconhecemos um preconceito autêntico pelo juízo anteriormente estabelecido que ele esconde, juízo originariamente assente, de modo legítimo e adequado, numa experiência, e tornado preconceito porque se arrastou pelo tempo sem exame nem revisão...  ... Por isso, não só poderá antecipar-se ao juízo e entrevá-lo, como, ao tornar impossível o juízo, torna também impossível qualquer verdadeira experiência do presente.

 

Camilo Martins de Oliveira