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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PALAVRAS PARA MIM. 1

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Ao longo da minha vida muitas palavras me foram dirigidas. Mas há aquelas que me marcaram. Positivamente. Ficam aí algumas.

Do meu pai. “Só é livre quem não deve nada a ninguém. Quem não tem de andar sempre com o chapéu na mão”.

Da minha mãe. “Quem é não precisa de parecer”. “Olha aquela folha de trevo, aquela pereira; ah! aquela pêra. Que beleza!”. “Queres saber? Andar e ler.” “Neste mundo, não há alegria perfeita.” Quando me escrevia, terminava assim: “Que o Divino Espírito Santo te ilumine!”

Do meu professor da escola primária. “Para a frente! Sempre para a frente, sem medo! Para trás m.ja a burra.”

Da minha irmã. “Como é que a gente não enlouquece?!”, disse-me, agarrada a mim, quando o caixão com o cadáver da nossa mãe desceu à terra.

De um grande amigo alemão, Anton Kaufmann. Muito jovem fora prisioneiro de guerra dos americanos e chegou a estar encostado à parede, como se fosse para ser fuzilado. Perguntei-lhe em que pensou naqueles instantes. “Pedi perdão a Deus e lembrei-me da minha mãe”. Ele era uma força da natureza. Da última vez que o vi, estava num lar, alquebrado. “Adeus, Anselmo. A vida passa tão depressa...”.

De outro grande amigo alemão, Anton Niklas, empresário de sucesso. “Eu trabalho, eu invisto como se tivesse de viver sempre aqui, neste mundo. Mas estou preparado para morrer a qualquer momento”.

De um jovem drogado, que arrumava carros e a quem eu, pela manhã, dera uma moeda. De regresso, à noite, pergunto-lhe: “Então, o seu dia, senhor João?!” E ele, sem caber nele de alegria: “O quê? Ainda se lembra do meu nome? Nunca mais precisa de me dar nada. Ai do filho da p.ta que tente estragar-lhe o carro!”

Do teólogo Karl Rahner. Ele ia ao aniversário  de um  sobrinho pequenito e tinha arranjado uma garrafa com uma moeda de um marco dentro: “Está a ver a alegria e a curiosidade do miúdo, a perguntar como é que a moeda entrou lá dentro?!” Também:  “Já alguma vez um padre ou alguém com responsabilidades especiais se confessou a si do pecado da ignorância culpada, pecado que pode ser grave e até mortal?”

De uma jovem que casei, feliz, três filhos, ainda pequenos, Francisca Espregueira Mendes. “Vivo como gostaria de ser recordada depois da morte. Gostava que me lembrassem como luz, acolhedora, leve e gentil.”

Do médico José Madureira. “Quando vi o meu neto recém-nascido, ajoelhei-me. O milagre da vida!”

De Eduardo Lourenço. “Todas as pessoas rezam.”

Do teólogo Edward Schillebeeckx. “Deus não é uma necessidade. Deus é gratuito. Como uma rosa que se dá a uma amiga.”

Do historiador Pierre Chaunu. “Há três palavras que não existem em mais nenhuma língua e em mais nenhuma cultura. Bereshit Bara Elohim, as três primeiras palavras da Bíblia (No princípio criou Deus). Repare, isto é fabuloso: há uma relação com o Deus criador, que é fonte de todas as coisas; Ele está imerso no mundo, mas não se confunde com o mundo. Em última análise, isso permite a História, porque dá a autonomia à criatura e, por outro lado, dá o sentido. É evidente que nenhuma sociedade pode viver sem o sentido. Aliás, nós neste momento afundamo-nos, morremos, precisamente pela falta de sentido. Quando se perde o sentido, morre-se colectiva e individualmente. Dito de outro modo, uma sociedade não pode viver, se não tiver qualquer coisa a dizer a respeito da morte, que é própria do fenómeno humano. Uma sociedade não pode viver, se não tiver  nada a dizer sobre o sentido global da existência, da História.” “O cristianismo é Bereshit Bara Elohim, é o Deus transcendente que encarna em Jesus Cristo e que conduz, através da morte, o tempo em que estamos para a Eternidade.”

Do teólogo M. Flick, meu professor na Universidade Gregoriana, 1968-1969. Conversei bastante com ele, perguntando-lhe uma vez porque é que não ia tão longe nas aulas como quando falava comigo. Como resposta, levou-me ao terraço, apontou para a Cúpula de São Pedro: “O que é aquilo além?”. “São Pedro”, respondi. “Não se esqueça: do Vaticano vê-se a Gregoriana!”

De Jean-Marie Domenach, Director da revista “Esprit”. “A partir do momento em que uma doutrina se confunde com o Poder, a partir do momento em que uma religião se confunde com o Poder, temos fatalmente fenómenos de clericalismo, fenómenos de terror, quer se trate da Inquisição ou do estalinismo. É necessário que aquele que crê deter a verdade não possua ao mesmo tempo todos os poderes do Estado. Os sábios (savants) e os padres não podem ter ao mesmo tempo a polícia à sua disposição.” Mais: “O clericalismo, digo-o, tenho-o dito e repetido, é uma coisa odiosa.”

Do filósofo Maurice Clavel. “No fundo, tudo está aqui: todo o pensamento totalizante é forçosamente totalitário.” Sobre a sua conversão ao cristianismo: “Repare, eu fui convertido, eu não me converti. Fui convertido, na passiva. Nós somos apanhados por dentro.”

Do filósofo Jean Guitton. “O problema que eu me pus não foi tanto o do tempo bergsoniano - a duração -, mas antes, uma vez que sempre estive animado pela fé cristã, católica, o problema da relação do tempo com a eternidade, com o que está para lá do tempo, embora sempre presente no tempo: a eternidade, o mistério do tempo enquanto a eternidade habita já no tempo. Visando mostrar que no interior do tempo que passa há um elemento intemporal que não passa.” “Com a bomba atómica, a Humanidade tomou consciência de que é mortal, não apenas os indivíduos.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 de fevereiro de 2022