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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

 

"Paul Klee e a ordem intuitiva"

 

‘…havendo o domínio do campo formal, temos a garantia de poder criar coisas tão consistentes que conseguirão chegar a outras dimensões, fora do alcance da esfera de acção do consciente.’, Paul Klee, ‘Sobre os princípios criativos da arte moderna.’, 1924

 

A propósito da exposição ‘Paul Klee: Making Visible’ que esteve patente até ao passado dia 9 de Março, na Tate Modern em Londres, torna-se quase evidente que Paul Klee ao dominar uma certa noção de ordem acreditava no alcance de outras dimensões mais profundas.

A exposição estendia-se por 17 salas, dava a ver cento e vinte oito obras das mais de dez mil que Paul Klee (1879-1940) produziu em toda a sua vida. Iniciava-se em 1912 e coincidia temporalmente com a aproximação do artista ao cubismo, à colaboração no movimento ‘Der Blaue Reiter’, liderado por Kandisky e à tão marcante viagem à Tunísia (1914).

Klee pintava diversos trabalhos em simultâneo (das fotografias no atelier consegue adivinhar-se um ambiente cheio de telas), numa tentativa de assiduamente ir plantado as suas ideias em aguarelas, óleos, desenhos e gravuras. Mostrava uma acentuada necessidade em racionalizar, corrigir e estruturar, numa tentativa de impor um sistema à sua produção – no ‘oeuvre catalogue’ Paul Klee listou exaustivamente, até ao último ano de vida (1940), todos os trabalhos que executou e pode ser entendido como uma tentativa de medir a sua produtividade e gravar a sequência do seu pensamento.

Ora, só a partir de 1914, aos 34 anos Klee afirma ‘A cor e eu são a mesma coisa. Sou pintor.’. Após uma tão importante viagem que fez à Tunísia com Auguste Macke e Louis Moilliet voltou com as suas aguarelas saturadas de cores primárias. O espaço captado naquelas paragens estruturava-se ao de leve através de quadrados de cor e de luz. E esta noção de construção de uma composição no adicionar e subtrair cores, tonalidades, densidades e medidas (da qual a linha faz parte) – evidenciado nas aguarelas da viagem – marcou profundamente os sequentes trabalhos de Klee, influenciando até a sua maneira de leccionar na Bauhaus.

Lê-se no catálogo da exposição ‘I would like to destroy in order to reconstruct.’(Klee (Dessau) em correspondência com Lily Klee (Bern), 14 Setembro 1929). Para Klee se a arte tem de se separar da pura representação tem então de ser afirmada através de uma estrutura. É curioso sublinhar que o saber racional das leis e o seu emprego deliberado nas pinturas era muito importante para Klee – esta sua procura pelas leis que geram a arte pode ser descoberta nos seus diários mais antigos. Durante uma estadia em Itália, por volta de 1900, a impressão da arquitectura clássica ficou-lhe marcada como sendo uma ‘iluminação imediata’ – as construções apresentavam-se, ao seu olhar, como organismos espaciais e como uma grande referência, porque todas as interrelações existentes entre cada elemento desenhado, eram calculáveis. Estrutura para Klee pode ser entendida como uma construção individual que não é apreendida e imediatamente registada (como acontece no impressionismo), mas antes acorre de um processo onde o registo é influenciado pelo tempo, pela razão mas também pela intuição. A natureza é o ponto de partida – Klee deseja tornar visível uma realidade diferente da experienciada quotidianamente, era importante para o artista estar fora das reais circunstâncias da vida. A natureza é transposta para a tela a partir de um processo de destruição/reconstrução (porque, para Klee a natureza em si é também transcendente).

Descobre-se deste modo, em Paul Klee, uma obra que traz em simultâneo a ordem e o acaso.

Ordem pela extrema necessidade em racionalizar todo o acto de pintar (processos, motivações e conteúdos); em escrever acerca do seu ofício; em catalogar exaustivamente todo o trabalho que produzia; e em preparar as lições até ao detalhe (começou a leccionar na Bauhaus por sugestão de Johannes Itten e por convite de Walter Gropius, em 1920 – somente um ano após a escola ter sido fundada, Paul Klee leccionava nos cursos de Pintura Livre e de Tecelagem). A ordem manifesta-se através de elementos/instrumentos como tempo, medida, peso, estrutura, densidade, tonalidade e cor. Talvez as suas composições geométricas e esquemáticas (onde descobrimos setas e gradações de cor) tentem responder a uma certa necessidade de mecanização do acto criativo – onde a ordem prevalece sobre o acaso e onde também encontramos afinidades com o trabalho de László Moholy-Nagy.

Mas o acaso também tem o seu lugar, na obra de Paul Klee – ‘…por experiência própria, depende da disposição momentânea do criador o ele poder determinar quais daqueles diversos elementos devem sair da sua ordem habitual, da sua localização designada, para em conjunto, se elevarem a uma nova ordem.’. Klee descreve uma linha em passeio logo ao abrir o seu ‘Livro dos Esquissos Pedagógicos’. Existe um gosto real pelo jogo dos materiais, das formas, dos contornos, das imagens e que traz espontaneidade, infantilidade e impetuosidade às suas obras. Actualiza-se uma necessidade de experimentação com diferentes abordagens materiais e formais em simultâneo. Cada superfície propõe uma aplicação diversa, uma porosidade ou resistência diferente, uma outra textura e uma velocidade de execução própria. A utilização, nos fundos dos desenhos, da aguarela em spray enfatiza uma necessidade de imprevisibilidade, difusão/concentração. O óleo é espesso mas plano. As pinceladas vêem-se – ora densas, ora transparentes ou opacas.

‘The task of art, then, is to use its own means to juxtapose earthly, visible reality with another, invisible reality and in that way to point to the relativity of the visible, the limitations of the earthly.’, Paul Klee, ‘The Role of the Artist – The Function of Art’, 1918

As obras de Klee afirmam-se através de uma ‘graça infinita’, cuja proveniência não pode ser compreendida, nem mecanizada e geralmente é assumida numa esfera transcendente – esta graça é a medida e a regra para a aplicação das leis que organizam a arte. E por isso para Paul Klee, a arte ao ser engrandecida por uma subjectiva disposição interna, transcende qualquer tipo de ordem. 

 

Ana Ruepp