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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PENSAR UMA EUROPA PACÍFICA

  


Por volta de 1715, um padre francês, o abade de Saint-Pierre, publicava uma obra intitulada "Projeto para tornar a paz perpétua na Europa", em que defendia a criação de uma instância europeia política, acima das nações, que asseguraria o governo da paz entre elas e uma sociedade europeia harmonizada. Oitenta anos mais tarde, Immanuel Kant retoma o propósito e o título de "Projeto para a paz perpétua", para adiantar a ideia de que os governos dos povos devem assentar num sistema representativo e com separação de poderes, e as nações formarem uma aliança federal. Surge esta proposta em contraponto à vocação hegemónica da revolução francesa, que Napoleão viria a incarnar. Curiosamente, é depois da derrota do imperador francês, antes e depois de Waterloo que, no Congresso de Viena (1814-15), as quatro potências vencedoras (Rússia, Prússia, Áustria e Reino Unido) discutirão o projeto... Até ao Congresso de Berlim (1878), e deste até à Conferência de Londres (de dezembro de 1912 a agosto de 1913) o Concerto Europeu discutirá e procurará resolver pacificamente questões que vão da vigilância sobre a França à sua integração no grupo, da revolta liberal em Nápoles à independência da Grécia e constituição da Bélgica, do comércio de escravos à repartição colonial da África (situações estas em que Portugal estará diretamente envolvido)... É também a era da constituição da super-Alemanha de Bismarck, do Risorgimento italiano e da redução dos Estados Pontifícios ao Vaticano, do definhamento do império otomano, e a anexação da Bósnia-Herzegóvina pela Áustria-Hungria, da oposição entre esta e Napoleão III, da derrota deste (em 1870) no conflito franco-alemão precedendo a IIIª República e prenunciando a 1ª Grande Guerra. Esta, cujos motivos Barbara Tuchman tão bem explanou em "The Tower of Proud", marca o fim do séc. XIX e de "uma certa Europa". No seu "Le Concert Européen - aux origines de l’Europe (1814-1914)", Jacques Alain de Sédouy encontra nesse tempo uma consciência de comunidade europeia como cultura e civilização comuns e garante da paz. É curioso ver como foi Alexandre I da Rússia um dos seus mentores, e aquele que mais acreditava na cristandade como fundamento da Europa. Interessante também, ver-se como já então se considerava a hipótese da participação turca. A revolução bolchevique, cem anos depois de Alexandre I, implantando a União Soviética e dividindo, na sequência da 2ª Grande Guerra, a Europa em dois blocos, exclui (até quando?) a Rússia do projeto comunitário, enquanto a preocupação em opor, ao fundamentalismo islâmico, um estado muçulmano democrático abre a perspetiva da inclusão europeia da Turquia hodierna. Citando Sédouy, vamos então ao séc. XIX: "É Castlereagh, ministro britânico dos negócios estrangeiros, que correntemente fala de ‘commonwealth of Europe’. É Alexandre I que evoca ‘a grande aliança’ dos Estados europeus. É Metternich que, referindo-se ‘aliança’, fala do «grande sistema pacífico da Europa» e escreve a Wellington em 1824: «Desde há muito que a Europa tem, para mim, o valor de Pátria». São os negociadores do tratado que funda a independência da Bélgica que declaram em fevereiro de 1831: «Cada nação tem os seus direitos próprios; mas a Europa também tem o seu, foi a ordem social que lho deu. É Guizot que, diante da Câmara, a 18 de novembro de 1840, distinguindo claramente a Europa das potências que a constituem, declara: ‘A grande política e o interesse superior da Europa e de todas as potências na Europa é a manutenção da paz em toda a parte, sempre’. É o Congresso de Paris de 1856 que declara a Turquia «admitida a participar nas vantagens do direito público e do concerto europeus». São os participantes no Congresso de Berlim m 1878 que se dizem, no preâmbulo do tratado que assinam, animados de ´um pensamento de ordem europeia´. São os embaixadores das potências em Constantinopla que, nas diligências feitas por ocasião das crises que sacodem o Império Otomano, entre 1880 e 1912/13, falam sempre «em nome da Europa». Outro paralelismo curioso entre aspetos do Concerto Europeu e a presente União Europeia é o da "hierarquia" de Estados. Leia-se esta carta de Frederico de Gentz, braço direito de Metternich, ao príncipe Karadja, em 1818: «O sistema político que se estabeleceu na Europa desde 1814 e 1815 é um fenómeno inédito na história do mundo. Ao princípio do equilíbrio ou, melhor dizendo, dos contrapesos formados pelas alianças particulares, princípio que governou e, por demasiadas vezes, também perturbou e ensanguentou a Europa durante três séculos, sucedeu um princípio de união geral, reunindo a totalidade dos Estados por um laço federativo, sob a direção das principais potências... Os Estados de segunda, terceira e quarta ordem submetem-se tacitamente, e sem que nada jamais tenha sido estipulado a esse respeito, às decisões tomadas em comum pelas potências preponderantes; e a Europa parece enfim não formar senão uma grande família política, reunida sob um aerópago de sua própria criação, cujos membros se garantem, a si mesmos e a cada uma das partes interessadas, o gozo tranquilo dos seus direitos respetivos. Esta ordem de coisas tem os seus inconvenientes. Mas é certo que, se a pudermos tornar duradoura, seria a melhor combinação possível para assegurar a prosperidade dos povos e a manutenção da paz que é uma das suas primeiras condições". Proximamente refletiremos sobre esta questão da organização política da Europa e, antes ainda, na definição do próprio conceito de Europa: como será possível abrir um projeto europeu que traduz uma herança cultural própria da cristandade europeia, mas também se inspira no ideal da paz, a outras nações dispostas a partilhar politicamente aquilo a que Bourlanges chamou «a afirmação organizada de uma interdependência de valores escolhidos»?

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 21.09.12 neste blogue.