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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PERÍODOS NA CRIAÇÃO CAMILIANA

 

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Recordo o Professor do Liceu Camões e vogal da Junta Nacional de Educação, António do Prado Coelho, que numa edição de Manuel Barreira de1950, expõe o seu estudo crítico sobre a obra de Camilo. Registei particularmente a atenção dada à evolução de Camilo relacionada com o seu conceito de heroísmo, longo e conturbado período. Entendi aquela maneira romântica de conceber homem e vida, ambas dominadas por forças divinas que exaltam a visão de grandeza que exclui o comezinho, pois este é o que decepa o berço de onde se ergue o herói.

Julgo ter entendido que nesta perspectiva existe uma radical transformação de valores e de transcendências e emancipa-nos do que é baixamente terreno, e nos expõe às proporções de um destino com significação superior que se impõe ao artista, ao ser que determina em si o eu num método de visão que se impõe obstinadamente a si mesmo. Daqui resulta que, este eu , é o único capaz de fazer surgir o herói a todo o homem de boa vontade e deixando à nossa consideração descortinar o pseudo-herói que não é mais do que o ser que a si mesmo se burla.

Afinal, recordo Kierkegaard, para quem demandar o heroísmo, é ser capaz de «viver na ideia», isto é, de viver a vida em plenitude de sacrifício pelo bem de outrem e se coloque à prova sempre, e faça desse trabalho a sua marca distintiva. Por esta reflexão me surge aquela desesperante impotência sem remédio, aquela estagnação no homem, bem mais capaz de acções fragmentárias e de fugas a si mesmo opondo uma filosofia prática e pragmática até, à luz da qual encontra o seu heroísmo, afinal tão diferente daquele que tentámos definir com um grau de pureza não patética. Assim, quando é que o homem deseja e concretiza o superar-se a si mesmo?, honrando eventuais movimentos volitivos coordenados e harmónicos, não tendo na busca a herói tanto lixo acumulado de qualidades negativas que em si as não detecta.

Julgo que em Camilo e porque não, naqueles todos que se acham diferentes, pode bem caber um largo tempo de vida que corresponderá ao período do orgulho, do exagero deste no inferno e no céu da confusão em que o homem se sangra a si mesmo. A verdade é que nem mesmo o trabalho incessante é criatividade ou originalidade inventiva e rebelde. Nem mesmo o amor deixa de ser uma vontade de comando, afinal tão distante do que nele é ser herói, e herói não por submissão ao que acontece, mas antes por pretender excesso de significado sofrido a um período da vida em que só a humildade é força no beijo.

E é assim, talvez deste modo, que nos surge em 1862 o Amor de Perdição, por mim visto como fecunda promessa de criações futuras. E não é o sentido trágico do herói que detectamos aqui com possibilidades de esclarecer o que quer que seja; de resto, a galhardia da bandeira que se transporta no sofrimento pode ser mera expiação. Paira sim, e não se deixe escapar, aquela nuvem que afirmamos longe de nós e se cola à pele e de onde a viu Pascal e logo disse «somos incapazes quer de certeza, quer de felicidade».

Encontramos agora um outro Camilo que perante a dor se curva reverente e não entende sequer a indiferença dos homens quer à dor quer à morte. Sabe sim, que para a morte se avança sempre, que os planos divinos já não triunfam por si em heroicidade e fé. Recolhe-se e concretiza que a humanização da dor fá-la perder majestade.

E diz-nos o professor da Universidade de Genebra, Georges Mottier «só com a chancela do pensamento criador se pode crescer»

Permitam-me que acrescente um segredo que seguramente Camilo conheceu pelas palavras do herói e do pseudo-herói:

para criar temos de interpretar, relacionar, distinguir, escolher, formar a ideia, isto é intuir sobre o que poderíamos denominar o sentido da vida e nela, sobretudo, o que preside à variabilidade, à mutação, ao conteúdo poético do motivo, que afinal existe , e de primeira linha, de primeira integridade.

O herói afinal comove-se com ele mesmo, atribui-se o julgamento da justiça e de um modo ou de outro fecha assim o coração à aurora de um mundo que ficará por viver. Os outros, enfim, não se cansam de espreitar, investindo-se de pertença magnanimidade. E os outros dos outros e como outros? Poderão ser o embrião de uma diferente criatura?

Os amores heróicos dos deuses gregos com humanos poderão ser a tentativa destes deuses viverem o amor sem o amparo da eternidade. Mas a Noite, o Jogo, a Coisa é o que nos defronta sempre na obstinação do seu silêncio, e nós schopenhaurianos, cheios de perguntas heroínas, cheios do Nada de onde brotam as razões que nos entendam.

Este o meu período de hoje na criação Camiliana, entre mundos e ideia de passagem.


Teresa Bracinha Vieira
2016