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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MIGUEL CARDOSO


Do início, outra vez


I

Foi esta portanto a furtiva impureza que herdámos
sem saber como, este espaço, este canto assim vago,
estes espasmos desmaiados, este tempo, este mundo,
estas arestas, estes pedaços de terra, estes dramas
de inércia e dentes pouco aguçados, os mesmos
rostos rasos ao chão, estes remorsos, estes cafés
onde nos recompomos das derrotas, este modo
de despejar os cinzeiros, estas tardes, este aclarar
da garganta para nada e os rebuçados amarelos
e doces para a tosse, a lucidez, os oscilantes sons
das campainhas, a satisfação ardente dos líquidos
raros, a gradação de intensidade das lâmpadas,
a acidez dos risos, os envelopes bem dobrados,
e os dias sempre os dias outra vez os dias.


II

Certas flores, as mais esfarrapadas.
O vento também. Ou já o disse?
E coisas que ainda não têm nome.


Aquela impressão quando os olhos fecham.
Arriscaria dizer que é de sempre
Este tumulto no pestanejar.


Um dia terei feito as contas à vida.
Mas julgo que muito se passou atrás das costas.


III

Não nos lembramos bem das canções.
Mas fizemos nosso o seu sussurro obscuro


- será pouco mais que a nossa obrigação.


Em tempos a questão era desmurmurar
os sentimentos, enroscar bem a língua
para saborear todo o amargo e o dormente
e o lento e o cuspo e o abrasivo e o asco.
As gengivas em sangue de tanto remoer.
Chega de tanto.


IV

Tanto mais que nos coube
também a metrologia de coisas instáveis
e de utilidade discutível.


Por exemplo, as nesgas, a palidez granulada da alvorada,
os vários modos de encostar o rosto à almofada e assim
sobreviver ao exílio de vez em quando rindo,
os ímans – ou, mais exactamente, o ponto
indiscernível em que a atracção dos pólos
sossega, por instantes, ou melhor,
em que se fixa no equilíbrio dos contrários
– o recorte dos panos atravessados pela luz
ou as saídas necessariamente de emergência
de um certo quarto onde ouvimos os passos
e nos juntámos à multidão. Os gemidos.


Pois coube-nos a observação das multidões,
também a densidade das esponjas ou o chocalhar
luminoso da face enamorada. Outros elementos,
divisões, categorias.


O verbo que descreve
a antecipação do andamento
que se segue, esse


deslizante verbo


V

A nós coube-nos a desmesura, e as coisas
que nela aprenderemos a incomensurar.


Mais uma razão para termos nos dedos
pontas tão estreitas e tão pouco sábias,
e pálpebras assim, efervescentes.
E tudo isto está ainda por estudar.


VI

Este entrever, este antegosto,
este rosto assim
amachucado entre tantos,
risos até, súbitos
súbitos tambores e sustos,
estes estrondos extenuados
de tão pouco.


Que se fodam os densos mistérios
que a razão nos foi deixando
sobre inumeráveis secretárias.


Temos muito com que nos entreter,
outras penumbras.


VII

Ou nem isso.


Lá se escovam os triunfos anteriores,
Meio desbotados, e se reviram os olhos
a custo. Lá se abrem as gavetas
E se colam as visões a cuspo.


Foram-se amontoando futuros.


O que se poderia talvez traduzir


Há zonas de indistinção onde tudo
se joga em mecanismos
de rigor murmurado e eriçado ânimo.
Dobras, vincos.


VIII

Mas talvez nisto haja subtileza a mais.


E que tal assim:
Eis o mundo.
Eis-nos.
Não chegámos a dizer ao que vínhamos.


Somos muitos e por enquanto dispersos.


Antes de mais
e antes do resto.


IX

Coube-nos começar, mas não do princípio.
Coube-nos amarfanhar todos os mapas
(Ainda que os tenhamos desenhado
a canivete, ao de leve, na palma das mãos).


Pelo que o cicatrizar nem sempre ajuda.
Há nisto uma certa poesia, não muito subtil.
E sempre dá algum estremecimento aos apertos de mão.


É mais ranger de dentes que outra coisa,
lançamento de guitas, cordas, fitas
de toda espécie e alguns ganchos em metal
(de que não se conhece bem o propósito)
para sítios um pouco escuros e adversos.


Quem é que se lembra ainda
para que servem por exemplo os ponteiros
desencontrados nesta armadura de latão?
E por aí fora.


X

Convirá acentuar o quanto isto é ainda o início.
Um início: a par do riso, a mais discreta,
A mais comum das utopias.


in Que se diga que vi como a faca corta, 2010


All over again


I

So this was it, this sly impurity unknowingly
inherited, this space, this vague song,
these fainted spasms, these times, this world,
this edginess, these bits of earth, this dramatic
inertia, these not so sharpened teeth, these same
faces, flat against the ground, this remorse, these cafés
in which we recover from defeat, this emptying
of ashtrays , these afternoons, this throat
cleared for nothing and the yellow and sweet
cough lozenges, the lucidity, the oscillating sound
of bells, the burning satisfaction of rare
liquids, the adjustable light of bulb dimmers,
the acidity of laughter, the neatly folded envelopes,
and the days, always the days, yet again the days.


II

Certain flowers, the most ragged.
And the wind too. Have I said it already?
And things still unnamed.


The feeling as the eyes close.
I’d venture to say this tumultuous blinking.
has been forever with me.


One day I’ll have looked back at my life.
But I believe a lot of it went on behind my back.


III

We can’t quite remember the songs.
But we made their obscure humming our own


– no doubt a little more than our duty.


The matter was once the un-whispering
of feelings, the right tongue twisting for
tasting all the bitterness and the numbness and
the slowness and the spit and the abrasive and the revulsion:
bleeding gums due to so much grinding.
Enough is enough.


IV

So much so that we were also
lumbered with the metrology of unstable things
whose usefulness is arguable.


For instance, the gaps, the grained paleness of dawn,
the many ways the face cuddles up to the pillow and thus
the survival from exile with an occasional smile,
magnets – or, more precisely the undeterminable
spot in which pole attraction
eases up, for an instant, or rather,
in which it grasps the balance between opposites
– the edge shaped cloths against the light
or the inevitable emergency of exits
from a certain room where we heard steps
and joined the crowd. The moaning.


For our share was to observe the crowds,
and also the density of sponges or the luminous
jingle of the enamoured countenances. Other elements,
divisions, categories.


The verb describing
the anticipation of the movement
that follows, this


gliding verb.


V

Our share was the excess and the stuff
we learn to un-measure with it.


One more reason to have such narrow
and little-wised fingertips,
and eyelids with such effervescence.
And all this is yet to be studied.


VI

This glimpsing, this foretasting,
this face so
marred among so many others,
even laughter, sudden
sudden drums and frights,
these bangings so exhausted
from so little.


Fuck the dense mysteries
left to us by reason
on countless desks.


We’ve got a lot to entertain us,
other twilights.


VII

Or not even those.


One may brush up previous achievements,
half discoloured, and roll up one’s eyes
with effort. One may open draws
and just about glue up one’s visions.


Futures kept piling up.


Which could probably be translated
as follows:


There are areas of indistinctness where all
bets are placed on mechanisms
of rumoured rigor and bristled encouragement.
Folds, wrinkles.


VIII

But perhaps there’s too much subtlety in all this.


And how about:
Here’s the world.
Here we are.
We didn’t get to say what we were here for.


There are many of us and so far we’re scattered.


Before everything else
and before what’s left.


IX

Our share was to start, but not from the beginning.
Our share was to rumple all maps
(Though we drew them lightly
with a pen knife, on the palm of our hands).


Therefore, healing isn’t always helpful.
There’s a certain but not very subtle poetry in all this.
But it does bring some excitement to handshakes.


It’s a teeth grinding exercise more than anything else,
a throwing of strings, ribbons, ropes
of all kinds and some metal pins
(whose purpose is not quite clear)
into somewhat dark and adverse places.


Who can still remember
what are unsynchronised
hands for, inside this tin frame?
And so on.


X

It’s convenient to stress how much all this is still the beginning.
A beginning: together with laughter, the most discreet,
the most common of utopias.


© Translated by Ana Hudson, 2012
in Poems from the Portuguese