POESIA, SAUDADE DA PROSA
Luís Filipe Castro Mendes cita Manuel António Pina no início de Tentação da Prosa (Exclamação, 2024) - “Poesia, saudade da prosa”, e assim se compreende o ofício da escrita. E Francisco Seixas da Costa diz, na nota inicial: “conhecia-lhe já a prosa, a sua limpidez, a riqueza vocabular, o fluir fácil e elegante no estilo, saído de alguém para quem a produção de textos constitui um óbvio ato de prazer”. E estas crónicas “espelham alguém (…), já sem algumas das ilusões geracionais, mas com notas permanentes de esperança e de otimismo”. E assim há “uma imensa e invejável felicidade” na busca dos acontecimentos e das leituras… “É das coisas miúdas que se fazem os grandes encontros”. A tentação da prosa é assim um exercício de gozo íntimo. Quando lemos: “gostava tanto de ver Samarcanda”, é esse deslumbramento das cidades desejadas, mesmo que apenas na imaginação, que nos enche de curiosidade e que o escritor, que nunca deixa a sua veia poética, vai recordando. E embrenhamo-nos em Atlas escolares, nas rotas míticas, no caminho de Marco Polo, nas cidades de família – Trebizonda, Tombuctu, Mompracém…. Sim, é a pura literatura. Depois, o cronista confessa que ainda é de Paris, que a francofilia lhe entra nos poros, que ouriços e raposas partilham a humanidade e que não esquece “o sino da minha aldeia”, aqui no largo de S. Carlos, de onde Pessoa nunca saiu verdadeiramente. “Gosto de palavras!” e a consequência torna-se clara.
As recordações sucedem-se. “Viena é uma cidade maravilhosa, capital de um império que deixou de existir logo que atingiu o seu apogeu, criando uma pomposa arquitetura cenográfica para perdidos fastos imperiais. Sem dúvida, a reação modernista da Viena de 1900, que deixou os fundamentos da cultura da suspeita de si própria que foi a nossa no século XX e da ligeireza de viver frivolamente por dentro da mais funda angústia, que parece ser o espírito do nosso século XXI, projetou-se bem para além do seu momento histórico. Que seria a modernidade sem Freud, Wittgenstein, Musil, Mahler, Schoenberg?” Aí nos encontrámos, na meditação diante de uma livraria. E vem a defesa dos jornais. “Fazem-nos falta”. E é a procura da verdade que está em causa, mais do que oração do homem moderno em Hegel. No confronto entre o Apocalipse e a promessa, o otimismo da vontade o pessimismo da inteligência, os direitos sociais e a diferenciação positiva. E o diplomata confessa-se, perante um poema de Kavafis: “Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram / E umas pessoas que chegaram da fronteira / dizem que não há sinal de Bárbaros”… Mas a conclusão é desesperada: “E agora que vai ser de nós sem os Bárbaros? / Essa gente que era uma espécie de solução”.
Os livros e os autores aconchegam as angústias: Eduardo Lourenço, como ausente de si mesmo, Eça de Queirós em desencontro com Ramalho, a casa de Unamuno, Teixeira de Pascoais, poeta forte, redescoberto, o olhar impiedoso de Vasco Pulido Valente, e ainda Helder Macedo, Eugénio de Andrade, Fernando Echevarria. E fica sentidamente a memória daqueles que perdemos: Jorge Sampaio, José Manuel Galvão Teles, Leonor Xavier, Jorge Silva Melo, Ana Luísa Amaral e Nuno Júdice. “Escrever é procurar uma cumplicidade com quem nos lê e se não a encontramos, falhamos”. Sentimos esse mistério, devendo perceber porque estamos zangados e porque recusamos a indiferença.
GOM