QUAL É COISA, QUAL É ELA?
O património cultural imaterial está onde menos se espera. As tradições, os hábitos e costumes, o modo de fazer as coisas, a gastronomia – a cada passo encontramos pequenos segredos que explicam o carácter dos povos. José Ruivinho Brasão, meu professor no Liceu de Pedro Nunes e bom amigo, tem-se dedicado à recolha da literatura e das tradições verbais transmitidas pela oralidade. É notável o resultado desse trabalho persistente e insubstituível. Como salientou Arnaldo Saraiva, no que diz respeito às adivinhas, conseguiu reunir o maior número que já alguém recolheu em Portugal, mais de mil, da boca de muitos algarvios, permitindo compreender as questões da oralidade, da poética, da ruralidade e do hermetismo comunitário. E através das adivinhas, chegamos aos provérbios, aos jogos de palavras, aos trava-línguas, ao cerne da sabedoria popular.
Leia-se Adivinhas Portuguesas Recolhidas no Algarve, onde o património imaterial vive na inesgotável tradição oral, não fechada em arcas de registos mortos, mas para ser partilhada em roda de conversas, onde se recria, perdurando no tempo. Os exemplos são múltiplos e obrigam a seguir com atenção a recolha. “À meia-noite se levanta o francês / sabe a hora, não sabe o mês / tem um picão, não é cavador; / tem uma serra, não é serralheiro; / tem esporas, não é cavaleiro; / escava no chão e não acha dinheiro”. Eis-nos diante do galo, o coq francês. O rol é vasto e pleno de graça. “Alto está, / alto mora. / Ninguém o vê, / todos o adoram”. É o sino da igreja, mas há quem formule o enigma, exatamente ao contrário: “Todos o veem, ninguém o adora”. A criatividade não tem limites a não ser a da razão… E há ainda os jogos lógicos que eram apanágio dos serões ou do professor primário que se prezasse. “O barqueiro tinha uma cabra, um lobo e um repolho para transpor para a outra margem do ribeiro. Como é que o barqueiro conseguiria manter intacta a mercadoria, sem que a cabra comesse o repolho e o lobo se baqueteasse com a cabra. Teria de levar primeiro a cabra, depois viria buscar o repolho, traria de volta a cabra, levando o lobo, vindo, por fim, buscar a cabra, para garantir não haver perturbação… A série multiplica-se. “Qual é coisa, qual é ela, / anda sempre a correr, / Não tem mãos, não tem pés, / Bate-te quando quer, / Só a sentes, não a vês?” É o vento, aliás um dos exemplos mais repetidos pela sua subtileza. E “o que corre mais que o vento?”. Também aqui não há mistério, pois é o pensamento que a ninguém pede meças. E há as referências clássicas: “Quanto mais quente ele está, pois mais fresco ele é”. Pela manhãzinha, o padeiro sabe bem que a sua arte se mede nessa prova paradoxal. E quando as horas marcam o nosso dia-a-dia, novamente vem à baila o tempo, um protagonista sempre presente: “São doze meninas, / Cada uma, quatro quartos. / Todas elas, têm meias / e nenhuma tem sapatos”. Os exemplos vão e veem, e não esquecemos Manuel Viegas Guerreiro, que em Querença mantém viva a memória. E lembro as últimas conversas que tive com ele e com Agostinho da Silva, incansáveis perscrutadores do português à solta, sempre amantes devotados da língua: “Em lençóis de fina holanda / E cortinas de carmesim / Está deitada uma madona / Que parece um serafim”. De que se trata, afinal? Da extraordinária língua que falamos e que nos constrói.
Guilherme d'Oliveira Martins