QUE COMIGO FIQUE A PERMANÊNCIA…
Minha Princesa de mim:
Em Quinta Feira Santa, ao cair do dia, celebramos uma festa de despedida que, como um adeus verdadeiramente sentido, não é abandono, mas partilha; não é partida, mas permanência. Ou, como diz um fado português: A saudade é como a luz / que o sol já morto deixou: / é presença, embora cruz, / na alma de quem ficou... Lembrei-te, noutro dia, o Wittgenstein, agnóstico e lógico, a invocar o dito de Kierkegaard: A fé é paixão! Há paixões que nos ganharam o inefável espaço interior, tão profundamente nosso que mal o conhecemos e nunca o sabemos definir. Delas, é certamente a fé a mais temível. Porque nos agarra e toma, e nos faz rever a vida toda. Como Mateus, Paulo, Charles de Foucauld ou Paul Claudel, muitos de nós, inesperadamente tocados por uma evidência imperiosa, apaixonamo-nos. Apaixonamo-nos por um mistério que, no meu encontro com os passos da minha vida, tem o rosto humano de Deus, esse a quem chamo Jesus. E um mandamento companheiro de mim, que nunca me condena quando falho, mas simplesmente insiste comigo: ama os outros teus iguais na condição humana,sobretudo aqueles que são menos amados, com a mesma paixão com que amarias Deus se lá chegasses já! A fé não é uma ideia brilhante, privilégio meu, nem um compêndio de dogmas ou código de condutas para serem universalmente impostos pelos crentes... A minha fé não me pertence, é só dádiva recebida, graça que poderei transmitir apenas pela transparência com que eu for permitindo que ela me trespasse... Nesta noite, acredito que um Deus humano, na véspera da sua morte, ciente da proximidade dessa hora, reuniu os seus amigos e partilhou com eles o seu corpo e sangue, mais do que como sacrifício em holocausto, como compaixão na misericórdia.
Afundas-te, sol,
afunda-te em paz, ó sol!
Sereno e tácito é o teu adeus,
comovente e grave o seu silêncio.
Sonhador e triste o teu olhar amigo,
com lágrimas cintilando em pestanas de ouro;
sobre a fragrância da terra lanças as tuas bênçãos.
E sempre mais profundamente,
cada vez mais meigamente,
sempre mais grave e majestoso,
te afundas no íntimo do éter.
Afundas-te, sol,
afunda-te em paz, ó sol!
Abençoam-te as gentes,
murmura a brisa
e do vapor das medas sobe até ti a bruma;
ondula-te o vento a cabeleira,
e as vagas te refrescam o rosto ardente,
e um leito de água se abre para ti.
Descansa em paz,
repousa em graças!
O rouxinol canta-te sono bom.
Afundas-te, sol,
afunda-te em paz!
Afinal, nunca nos despedimos do sol. Passamos, no escuro, cada noite com ele. E voltamos a acordar juntos. Se assim não fosse, porque me ocorreria esta noite esse poema ao sol poente (An die untergehende Sonne) ,de Ludwig Kosegarten, de que Franz Schubert fez um lied tão bonito: Sonne, du sinkst, sink in Frieden, o Sonne! ? Podia ter-te traduzido sink por mergulha, mas afunda evoca melhor a densidade dessa tragédia que é a incerteza da vida, donde saíremos com o sol, com Cristo que mergulhou connosco no mar escuro e frio da morte. Ao contemplar, na tarde quieta, o sol que se esconde, o lied de Schubert aproxima-me do canto do salmista: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Porque te sinto longe da minha oração, da expressão do meu lamento? Por ti, Deus meu, grito de dia e não me respondes, chamo-te de noite e não me atendes... Mas habitas o santo dos santos, em ti esperaram os nossos pais e, pela sua confiança, os libertaste.
O mistério de Deus é permanente, não se explica, respira-se. A presença inefável de Deus connosco é a sua memória, que repetimos no amor fraterno, na partilha do pão: Jesus tomou o pão, partiu-o e deu-o, dizendo isto é o meu corpo, tomou o cálice do vinho, abençoou-o e deu-o, dizendo isto é o meu sangue. Corpo e sangue dados por vós: fazei isto em memória de mim. Deus não existe para explicar, existe pelo amor connosco. Sobretudo a partir do século das "Luzes", procurou-se retirar Deus da revelação religiosa, colocando-o na perspectiva da especulação filosófica. Voltaire era feroz adversário da Igreja, mas concluía por um Deus necessário à explicação de tudo:
L´univers m´embarasse et je ne puis songer
Que cette horloge existe et n´ait point d´horloger.
Mas já com Feuerbach, Marx e Nietzsche, se proclama a morte de Deus, pois poderá a ciência tudo explicar, e a Deus só recorrem os impotentes humilhados. Com Darwin que, pela própria formulação da sua teoria da evolução, vai perder a fé, o materialismo, como já Diderot suspeitava, parece uma explicação suficiente do nascimento e desenvolvimento do mundo: a matéria inicial, semente única, já potencia a diversificação das espécies. E com a hipótese de um big bang a desencadear a expansão infinita do universo e o afastamento progressivo das galáxias, voltamos a pasmar para o que a nossa razão não sabe explicar: cientistas pensam que o big bang iniciou a marcha do relógio, outros que ele já terá acontecido no tempo. Nas suas Confissões, Santo Agostinho responde, no livro XI, a várias questões sobre a criação e o tempo, algumas delas, aliás, já levantadas, muito antes desse longínquo sec.IV, na Grécia de Plotino ou Platão: Supondo que, desde toda a eternidade, Deus quis que houvesse criação, então porque não será a criatura, ela própria, eterna também? Para o Bispo de Hipona que, aliás, também confessa que continua sem saber bem o que é o tempo, este é criado, concomitantemente ao universo, por Deus:
Não é no tempo que Tu precedes os tempos; se assim não fosse, não precederias todos os tempos. Não, não é no tempo, mas é,sim, da altura da tua eternidade sempre presente, que Tu precedes os tempos passados e que dominas os tempos por vir; pois estão por vir, e, uma vez chegados, tornar-se-ão passado. Tu, pelo contrário, Tu és idêntico a ti mesmo... E neste pôr de sol ardente, eu contemplo, no ocaso do meu tempo, a permanência. Dou-te a mão,
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira