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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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QUE FRATERNIDADE HUMANA?

  
    Visita do Papa Francisco a Lampedusa, Foto: AFP/Getty Images


Várias vezes Eduardo Lourenço me confessou que o grande mistério que gostaria de ver desvendado era o de saber o que Jesus Cristo teria escrito com o dedo no chão, no episódio da mulher adúltera. Esse é o único momento do “Novo Testamento” em que o Filho de Deus escreve. E compreende-se que para o intelectual e o ensaísta fosse muito importante desvendar esse lado oculto do Nazareno. Tal circunstância tem tudo a ver com a personalidade do Papa Francisco, que em vários momentos nos lembrou a importância dessa passagem. “Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra! E inclinando-Se novamente recomeçou a escrever no chão. Eles, porém, quando isto ouviram, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou Jesus com a mulher, que continuava ali no meio…” (Jo, 8, 7-9). Em diversas circunstâncias o Papa Francisco recordou este episódio, não como gesto teórico, mas como exemplo de vida.

A marca da diferença foi o sinal único de um magistério que perdurará por certo, qualquer que seja o desenvolvimento histórico. Serão inúteis as especulações sobre o que irá acontecer agora, a verdade é que presenciámos o lançamento à terra de pequenas sementes, como grãos de mostarda, de simplicidade e de sobriedade. O contraste com os gestos de barbárie, de ódio e de caos que presenciamos é evidente – e sentimos a angústia do Papa nos seus últimos dias de vida perante a inaudita violência  da guerra mundial aos pedaços que, antes de tudo, oportunamente diagnosticou. Com grande coragem defendeu os temas fundamentais de uma cultura humanista: uma Ecologia integral, uma Economia justa, o papel da mulher, uma Solidariedade com os pobres, os excluídos, os migrantes.

A viagem a Lampedusa está na memória de todos. E a palavra todos tornou-se para o Papa uma bandeira que congrega os projetos de renovação, que se tornaram essenciais na Jornada Mundial da Juventude de 2023. Laudato Si’ (2015) e Fratelli Tutti (2020) constituem gritos de alerta que suscitaram contestação de quantos preferem o dogmatismo e a intolerância que o Papa combateu até ao último dia. Só uma cultura respeitadora da liberdade e da responsabilidade, da memória e do conhecimento poderá encontrar caminhos de autonomia, emancipação, dignidade e paz – eis a grande lição de alguém que usou as palavras e o exemplo para fazer um mundo melhor. E esse projeto de responsabilidade e de coragem foi defendido tenazmente em diversos domínios, razão pela qual a sua herança é muito rica. Assim, o seu desaparecimento não é só uma perda para os cristãos, mas uma perda para o mundo.

O encontro com o Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Mohamed El-Tayeb, no Abu Dhabi, constituiu um momento de rara importância no âmbito do diálogo entre as religiões, envolvendo a assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana (4.2.2019), que permitiu a afirmação de uma cultura de paz fundada no respeito mútuo, na liberdade de consciência e na necessidade de uma compreensão mútua baseada no conhecimento e na sabedoria.  Frederico Lourenço faz uma síntese com que concordo plenamente e que subscrevo: “Com Francisco foi-nos dada a visão daquilo que a Igreja poderá ser. Desse ponto de vista, foi um Papa que veio do futuro” (Expresso, 25.4.2025). Todos os sinais do seu percurso e as suas palavras merecem, pois, especial atenção e cuidado. E desejamos que não fiquem no esquecimento ou votadas à indiferença.   


GOM

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