SERÁ POSSÍVEL ESCREVER CARTAS PÓSTUMAS?...
Minha Princesa de mim:
Há muito que te escrevi (lembras-te?) a minha carta derradeira. Esta, escrevo-a na 25ª hora, mando-a donde já não há correio nem capricho. O José Saramago poderia ter-me passado, nesta eternidade em que estamos, uma carta do nosso Camilo português, que terminava citando Machado de Assis: O coração humano é a região do inesperado... Respigada do romance Iaiá Garcia, que terminava assim: Alguma cousa escapa ao naufrágio das ilusões. Algo ou muito, ou tudo que fosse, para Deus um dia são mil anos, mil anos um só dia. Sei-o bem "agora" neste assento etéreo, onde, como Camões, os humanos aí de baixo esperam que memória dessa vida se consinta. "Aqui" - diria eu se "isto" fosse sítio - é a presença de Quem não é um Deus de mortos,mas de vivos,porque para Ele todos estão vivos. E vivo é o amor que escapou ao naufrágio das ilusões…
Felizes os que esquecem
quando eu não
ditosos sejam
porque são
possíveis
em seu resguardo
Ter-te-ei dito isto um dia? Ou nessa noite final terei murmurado:
Dou-te, Princesa,
a mão inerte
e nela só
a lágrima brilha
Que te saiba este beijo
aos beijos que não démos
e te dê o nosso amor
os amores que não tivémos
e sintas nesta mão dada
o gosto limpo da manhã
pela madrugada
Os filhos deste mundo - disse Jesus aos saduceus - casam-se e dão-se em casamento. Mas aqueles que forem dignos de tomar parte na vida futura e na ressurreição dos mortos,não se casam nem se dão em casamento. Mas alguma cousa escapa ao naufrágio das ilusões. Se connosco morrem a fé e a esperança - já sem tempo nem sentido - sobrevive o amor. Essa alguma cousa que liga um mundo ao outro.
Muitas vezes te disse como me sentia a viver fora do tempo. Não contava nada, uma parte de mim foi sempre trânsfuga de cronos. Alguma cousa em nós escapa à condição imposta pelo limite. É antiquíssima, sem hora prima nem ponto final. Habita-nos como fantasma vagabundo e omnipresente, na nossa contraditória condição. Damos-lhe nome, por esse nome a chamamos, sabendo-a impronunciável. Não lhe definimos a origem, perseguimo-la sempre. Custa-nos a vida toda e, todavia, sabemos que para tão grande amor é curta a vida! Imanente, transcende-nos. Porque se quisermos guardá-la só para nós, perdê-la-emos. A Turandot da ópera do Puccini descobre a sua alma porque Calaf arriscou a vida, somente pelo amor dela, que o empurrava para além da posse dele. E, quando Turandot poderia sacrificar Calaf, por finalmente lhe conhecer a identidade nomeável, será ela a dar-lhe o nome que está acima de todos os nomes: "O seu nome é amor!". Aí na terra, como no céu. Digo-te aí na terra, e direi mal? Porque, se aí nos encontrámos, nem eu nem tu ainda aí estamos. Ambos "já" somos na luz perpétua, reconhecemo-nos no amor infindo,não nos discriminamos. É amor o nosso nome - o teu, o meu, o de todos -porque é o nome dos vivos. Parafraseando o frei Bento, amigo do nosso Camilo português, enquanto vivemos na terra dos homens, ter-nos-emos enganado sempre que pensámos a nossa relação a Deus (religião) como nostalgia de um paraíso perdido, cuja posse recuperaríamos pela observância de ritos vários, em vez de pensarsentir que o drama, alegria e dor, da nossa condição humana é a grande saudade da nossa transfiguração. Aí no planeta - perdoar-me-ás falar-te como se ainda lá estivéssemos - se nos descobriu a vida, sim, mas enquanto período e espaço de busca e esforço, tempo e modo de atenção aos outros. Aquilo que fizerdes ao mais pequeno de entre vós, a Mim o tereis feito. Falhei muito, falhaste, todos falhamos. Mas em cada gesto de carinho, em cada sopro misericordioso do coração de cada um, Deus era. E sorria. Com ternura maior do que a que pudéssemos dar. Assim nos transfigurava. Contra esse amor pequei,de cada vez que não soube, ou não fui capaz, de arriscar a dádiva simples de mim. Humano fui. Mas,porque humano era, talvez Deus me tenha me tenha acolhido -- Ele que nos criou - no abraço de mútuo perdão do Pai ao filho pródigo, sempre que esperei de ti essa mão dada,com gosto inefável que a manhã tem na madrugada. Ou quando me teria lembrado de que o Seu resguardo é abrigo, igualmente, do olvido e da memória.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira