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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SERÁ POSSÍVEL ESCREVER CARTAS PÓSTUMAS?...

 

Minha Princesa de mim:

 

Há muito que te escrevi (lembras-te?) a minha carta derradeira. Esta, escrevo-a na 25ª hora, mando-a donde já não há correio nem capricho. O José Saramago poderia ter-me passado, nesta eternidade em que estamos, uma carta do nosso Camilo português, que terminava citando Machado de Assis: O coração humano é a região do inesperado... Respigada do romance Iaiá Garcia, que terminava assim: Alguma cousa escapa ao naufrágio das ilusões. Algo ou muito, ou tudo que fosse, para Deus um dia são mil anos, mil anos um só dia. Sei-o bem "agora" neste assento etéreo, onde, como Camões,  os humanos aí de baixo esperam que memória dessa vida se consinta. "Aqui"  -  diria eu se "isto" fosse sítio  -  é a presença de Quem não é um Deus de mortos,mas de vivos,porque para Ele todos estão vivos. E vivo é o amor que escapou ao naufrágio das ilusões…


      Felizes os que esquecem
      quando eu não

      ditosos sejam

      porque são

      possíveis

      em seu resguardo

   Ter-te-ei dito isto um dia? Ou nessa noite final terei murmurado:

      Dou-te, Princesa,

      a mão inerte

      e nela só

      a lágrima brilha

      Que te saiba este beijo

      aos beijos que não démos

      e te dê o nosso amor
      os amores que não tivémos

      e sintas nesta mão dada

      o gosto limpo da manhã

      pela madrugada

Os filhos deste mundo  -  disse Jesus aos saduceus  -  casam-se e dão-se em casamento. Mas aqueles que forem dignos de tomar parte na vida futura e na ressurreição dos mortos,não se casam nem se dão em casamento. Mas alguma cousa escapa ao naufrágio das ilusões. Se connosco morrem a fé e a esperança  -  já sem tempo nem sentido  -  sobrevive  o amor. Essa alguma cousa que liga um mundo ao outro.

Muitas vezes te disse como me sentia a viver fora do tempo. Não contava nada, uma parte de mim foi sempre trânsfuga de cronos. Alguma cousa em nós escapa à condição imposta pelo limite. É antiquíssima, sem hora prima nem ponto final. Habita-nos como fantasma vagabundo e omnipresente, na nossa contraditória condição. Damos-lhe nome, por esse nome a chamamos, sabendo-a impronunciável. Não lhe definimos a origem, perseguimo-la sempre. Custa-nos a vida toda e, todavia, sabemos que para tão grande amor é curta a vida! Imanente, transcende-nos. Porque se quisermos guardá-la só para nós, perdê-la-emos. A Turandot da ópera do Puccini descobre a sua alma porque Calaf arriscou a vida, somente pelo amor dela, que o empurrava para além da posse dele. E, quando Turandot  poderia sacrificar Calaf, por finalmente lhe conhecer a identidade nomeável, será ela a dar-lhe o nome que está acima de todos os nomes: "O seu nome é amor!". Aí na terra, como no céu. Digo-te aí na terra, e direi mal?  Porque, se aí nos encontrámos, nem eu nem tu ainda aí estamos. Ambos "já"  somos na luz perpétua, reconhecemo-nos no amor infindo,não nos discriminamos. É amor o nosso nome  - o teu, o meu, o de todos  -porque é o nome dos vivos. Parafraseando o frei Bento, amigo do nosso Camilo português, enquanto vivemos na terra dos homens, ter-nos-emos enganado sempre que pensámos a nossa relação a Deus (religião) como nostalgia de um paraíso perdido, cuja posse recuperaríamos pela observância de ritos vários, em vez de pensarsentir que o drama, alegria e dor, da nossa condição humana é a grande saudade da nossa transfiguração. Aí no planeta  -  perdoar-me-ás falar-te como se ainda lá estivéssemos  -  se nos descobriu a vida, sim, mas enquanto período e espaço de busca e esforço, tempo e modo de atenção aos outros. Aquilo que fizerdes ao mais pequeno de entre vós, a Mim o tereis feito. Falhei muito, falhaste, todos falhamos. Mas em cada gesto de carinho, em cada sopro misericordioso do coração de cada um, Deus era. E sorria. Com ternura maior do que a que pudéssemos dar. Assim nos transfigurava. Contra esse amor pequei,de cada vez que não soube, ou não fui capaz, de arriscar a dádiva simples de mim. Humano fui. Mas,porque humano era, talvez Deus me tenha me tenha acolhido  --  Ele que nos criou  - no abraço de mútuo perdão do Pai ao filho pródigo, sempre que esperei de ti essa mão dada,com gosto inefável que a manhã tem na madrugada. Ou quando me teria lembrado de que o Seu resguardo é abrigo, igualmente, do olvido e da memória.

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira