SÔBOLOS RIOS…
Minha Princesa de mim:
Tenho sentido hoje muito essa tão grande saudade de ti. Há encontros únicos: em ti toco um mistério muito próximo de mim. Visto de fora, seria talvez uma comunhão alheia, improvável, impossível. Mas assim sentido, com tanta ternura na alma, é como o ser: belo e bom. Sempre e só o amor nos cria. Fora dele há uma água escura que se chama nada. Ocorre-me, neste enredo de alma, triste, relho e velho, que a fortuna em mim deixou durar muito, aquele anagrama de Leonardo da Vinci: L´Amore mi fa sollazar. Escreveu-o numa pauta de música, assim te deixo em grosso as notas re mi fa sol la. L´Amo, em italiano é o anzol que nos prende. L´Amor mi fa sollazar quer dizer o Amor consola-me. É curioso que, em inglês, se diz ainda solace, para conforto,consolação. Do latim solatium ou solacium, que também significa alívio. O verbo latino para consolar, ajudar, acalmar enuncia-se solor, solaris, solari - eu consolo, tu consolas, consolar - mas é depoente: a enunciação termina com solatus sum: estou consolando, consolei. Gosto dele, é um verbo bonito. Se eu fosse chinês ou japonês, e mulher, confundindo as líquidas l e r, diria soror para dizer eu consolo... Rio-me com mais uma das minhas parvoíces, mas quiçá mal: ou não será o amor, afinal, irmandade, confraternização? O contrário de amar talvez não seja odiar (o ódio pode ser amor disfarçado,frustração), mas é certamente alhearmo-nos. Vermos o outro como sendo,definitivamente,um estranho. Recuso-me,como sabes,quase sempre,a dar esmolas na rua - e não dou, nunca, à porta das igrejas. Mendigos há que são negociantes, outros explorados, outros viciados sabe-se lá em quê. A ocorrência, por muito que se repita, incomoda-me sempre. Porque, seja qual for a minha reacção e a justiça que ela possa ter, passo sempre para a outra margem. Houve, naquele instante, a oportunidade de um gesto de mim para um irmão... E eu atrapalhei-me! Se dei (o que é raro), tê-lo-ei feito por falta de coragem, por vergonha, ou ainda com aquela hipocrisia de quem se desmbaraça de uma maçada lançando uns cobres supérfluos. Se ignorei o pedido, mesmo ciente de que há por aí instituições várias de socorro aos necessitados, não terei faltado à caridade? Porque não terei eu corrido o risco essencial do amor, isto é, porque é que não entrei em comunhão com um ser humano que,mesmo aldrabão - e por muito aldrabão que seja,ou fosse ou possa ser - tem comigo esse indelével ponto comum que se chama sofrimento? Quisera eu, minha Princesa de mim, ter esse dom divino da proximidade, da incarnação no outro. Tivesse ou não dado uma esmola, antes houvesse, haja,haja sempre uma palavra amiga, um gesto de simples reconhecimento de uma existência de condição igual à minha, pois esse fico a dever sempre. E quando penso no que poderia ter contribuído para que fosse mais fraterno o mundo - este mundo,mais ou menos ao meu alcance,onde tantas vezes tão estupidamente me agito - percebo, com grande mágoa minha, que o silêncio de Deus é o que nós calamos. Vi há pouco a Dama de Espadas do Tchaikovsky. O libreto escrito por seu irmão Modeste, inspira-se num conto de Pushkin, que Dostoievsky considerava uma obra-prima. Trata uma história de demónio e jogo, desse engano que é o desejo ou a ilusão do ganho, como ganância obsessiva e totalitária, que, finalmente, nos torna estranhos e alheios ao amor. O desejo de possuir tem sempre uma semente de destruição: de outros e de nós. Quando Hermann, servindo-se da oportunidade que lhe abre o amor de Lisa, confunde tudo, o amor e a satisfação do ganho, a vida e a morte, o ser-se e o fantasmar-se, virá a acertar no 3 e no 7 das cartas vencedoras, mas morrerá por perder todo esse ganho ao jogar, em vez do ás, uma dama de espadas, fantasma da velha condessa, conhecida como "Vénus moscovita", deusa material que nunca amara. Amar é estender a mão para a outra margem de nós. Quando te vejo no outro lado e nos damos a mão, entre nós corre um rio que é nosso.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira