SONETOS DE AMOR MORDIDO
Infanta D. Maria (filha de D. Manuel)
EM JEITO DE ANÚNCIO...
Os "sonetos de amor mordido" não são autobiográficos, nem inspirados por qualquer experiência cronolegível. Antes são fruto de um reflexo ou de uma recitação interior de poemas, cartas, textos vários já lidos algures, sem que eu mesmo consiga lembrar-me sempre de quando ou quanto os li ou de quem os terá escrito. Às vezes, lendo o meu soneto, vou ter à fonte : relendo "a um beijo seiscentista", por exemplo, não só me apercebi de que o tal beijo seria quinhentista, como fui dar com aquele soneto de Camões, que eu incluiria no "ciclo da Infanta Dona Maria", o qual, como sabemos, é mais ideia de intenção do que realidade histórica. Reza assim :
Dai-me uma lei, Senhora, de querer-vos,
que a guarde, sob pena de enojar-vos;
que a fé que me obriga a tanto amar-vos
fará que fique em lei de obedecer-vos.
Tudo me defendei, senão só ver-vos
e dentro da minha alma contemplar-vos;
que, se assim não chegar a contentar-vos,
ao menos que não chegue a aborrecer-vos.
E, se essa condição cruel e esquiva,
que me deis, lei de vida não consente,
dai-ma, Senhora, já : seja de morte.
Se nem essa me dais, é bem que viva,
sem saber como vivo, tristemente;
mas contente porém de minha sorte.
Quando escrevi o meu, não tinha nem este, nem outro de Camões, presente. Mas do subconsciente de mim surgiu-me uma cena, que terei situado no sec. XVI, em que um cavaleiro se curvava, e só de respeito beijava a mão de altiva dama. E quis imaginar a contradição do seu sentimento. Sobretudo o amor que primeiro morde e depois mora...e quando já mora no coração apenas pode ser mordido... (Também acontece que a minha escrita seja devedora não de um texto, mas de uma pintura, um desenho, uma cena de rua ou de teatro).
Ao confessar este convívio com o grande Camões e muitos outros, não pretendo ascender a um retrato de grupo, nem sequer presumir outra familiaridade além da graça de poder escutar - como se me sentisse correspondido - vozes que atravessam o tempo e o espaço, para nos dizerem, de modo tão lindo e acertado, coisas que, nós todos, vivas sentimos no coração. É esse o poder da literatura, e é, esta comunhão, a nossa cultura. Esta não é arquivo, erudição, menos ainda presunção. É um bate-papo íntimo e partilhado, quando a grandeza dos mestres se senta à nossa mesa. Creio que a ideia de alinhar sonetos - cada um deles começando por uma cada letra do nosso alfabeto - me veio quando reli aquele que, adiante, já deixo, apesar de levar só o número 13, por começar com n ... Também então me apercebi de que o amor é mais um dispor-se interiormente à abertura do coração, do que o ter uma história para contar. Por isso, num coração ideal, todos os amores se confundem no amor do Amor. Assim o penseissenti quando, dias depois de o ter escrito, lhe pus o título : A Jesus. E sonetos porquê? Talvez pelo hábito de ler Petrarca, que já ousei traduzir, ou Camões, ou talvez ambos. Quiçá porque, sem querer, me assaltam uns versos, e são decassílabos e, ainda que em rimas diferentemente alternadas, se arrumam num qualquer para-soneto, sempre longe do que eu gostaria de conseguir.
- A JESUS
No azul igual do céu desta manhã,
penseissenti a tua aparição
e pareceu-me a luz do dia vã
ao teu vivo fulgor no coração...
Mais do que imagem, se madona fosses,
és ser espiritual e verdadeiro,
ubíqua presença de amores tão doces
que deles me encho, incho e fico inteiro...
E ao cair da tarde, quando voltares
a inundar-me, e ao céu, da tua luz,
irás de mim levar o que levares,
que então ao próprio dia estarei cego,
insensível ao peso desta cruz,
tão leve é o teu amor que em mim carrego...
Camilo Martins de Oliveira