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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SONETOS DE AMOR MORDIDO

Marriage_A-la-Mode_4,_The_Toilette_-_William_Hogar

«Mariage à la Mode» de Reynolds (cena 4 de 6).

 

21. ADEUS POSMODERNISTA

 

Vi teu gesto distante e entendi-te

tão fora de tudo, longe de mim,

que seria louca loucura assim

ficar, sem fugir também: e fugi-te...

 

Não foi porque perder-te me amofine

nem por receio, ou raiva, ou frustração:

não sei, nem saberá meu coração,

por que razão o amor já não me anime...

 

Ou será que perdemos a memória

das coisas simples que não têm história

e por serem fiéis constroem vidas?

 

Eu digo-te adeus, hoje, balbuciando,

como ausente que não sabe até quando

seremos nós só almas esquecidas...

                   
P.S. A velocidade à qual, nas nossas sociedades, o número de mortos por ano vai superando o de recém nascidos, os casamentos se desfazem ou nem sequer se fazem, o sexo é propagandeado apenas e exclusivamente como ocasião de prazer (e concomitante fonte de receita para quem vende estimulantes), e até o aborto (não penso aqui nos casos em que uma gravidez levante questões sérias de razão clínica ou sanitária, ou psíquica, ou de consideração de violência coerciva e violação de direitos elementares, mas falo do que é decidido sem ponderação da responsabilidade pelos actos, e só por critérios de conveniência) já custa aos contribuintes, anualmente, somas que também são retiradas a pobres e desvalidos - tudo isto nos obriga a um caminho espiritual de regresso à compreensão do amor e da responsabilidade. Ser necessariamente em relação, nenhuma pessoa humana pode agir inconsequentemente, como se aquilo que faz a si só diga respeito. Além de que somos também uma construção da memória, e a nossa densidade humana se cimenta pela lembrança, cuja expressão moral é o compromisso assumido. Há por aí muitos dramas atribuíveis à permissividade com que fomos consentindo o "amor líquido", como lhe chama Zygmunt Bauman... O matrimónio e a família são noções e instituições variáveis na história e na geografia, e os vários tipos definidos conheceram evoluções e crises, conformes às evoluções das mentalidades e das sociedades, às culturas circunstantes. Também surgiram desvios na ordem moral, muitas vezes pela confrontação entre sentimentos, deveres e interesses, como se vê nas cenas de escárnio  do casamento "burguês" (de aristocratas decadentes com novas-ricas) da série Marriage à la Mode, do pintor inglês William Hogarth. Mas os próprios acidentes de percurso foram servindo um caminho de libertação e recusa de considerações outras que não fossem o amor e o livre compromisso entre os esposos. Ora parece que é precisamente isto que, nos tempos hodiernos, se vai desfazendo. Penso, todavia, que não se trata de uma questão essencialmente moral, mas, mais profunda e dolorosamente, de uma desorientação existencial, à qual, aliás, não será estranha a solidão crescente - e concomitante dessolidarização - das pessoas pela materialização dos prazeres oferecidos (onde está a alegria íntima? o convívio?) e pela virtualização da comunicação entre elas. Mas não pretendo analgar aqui essas questões. Este soneto é tosco, é de amor mordido pelo alheamento, que é a forma mais desumana da alienação.

Camilo Martins de Oliveira

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