Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Dizes-me que esperas pela prometida conversa sobre o processo de Joana d´Arc. Sabes que, numa perspectiva histórica, ele é um episódio da Guerra de Cem Anos (1337-1453), mais precisamente do período que se inicia com a concorrência, em França, de uma monarquia anglo-francesa sob Henrique IV e, à morte deste, em 1413, sob o seu filho, o maior dos Lancaster, Henrique V de Inglaterra, que vence a batalha de Azincourt (25 de Outubro de 1415) e encurrala Carlos VI, o rei francês. Este morre em 1422, tal como Henrique V, cujo filho, o VI do nome, é ainda criança de leite. [O pobre enlouquecerá mais tarde e será derrotado, até em Inglaterra, quando a casa de York leva a melhor sobre os Lancaster, na Guerra das Duas Rosas ]. O novo rei de França, Carlos VII, parecia duvidar das suas capacidades e até dos seus direitos. Valeu-lhe a intervenção de Joana d´Arc, desde a libertação de Orleães (8 de Maio de 1429) à sua sagração como rei, na catedral de Reims (17 de Julho). A importância decisiva dessa intervenção é historicamente realçada pela perseguição que à Donzela moverá o duque de Bedford - tio e regente do infante-rei Henrique VI, este, aliás, também coroado rei de França em Notre Dame de Paris, em 17 de Dezembro de 1431 - até a capturar em Beauvais, e a entregar a um tribunal religioso, que a condenará, por crimes de heresia e bruxaria, à fogueira ( 30 de Maio de 1431).
O movimento que a Donzela de Orleães dinamizara continuou, através de batalhas e tréguas, de negociações e conquistas (como a retomada de Paris aos ingleses, em 1436), até que a loucura de Henrique VI e a Guerra das Rosas esmorecessem a presença e, depois, as pretensões inglesas em França. De uma perspetiva política, a aventura de Joana d´Arc desenha-se numa Europa saída do Grande Cisma do Ocidente, com as nações da cristandade divididas entre a obediência aos papas de Roma (Portugal, Inglaterra, Hungria, Polónia, Escandinávia, Veneza e grande parte do Sacro-Império) e os de Avignon (França, os reinos de Espanha e Nápoles, Escócia, principados do Império mais próximos de França), em que a estrutura feudal vai desaparecendo, concomitantemente ao desenvolvimento do comércio e da banca, das cidades e das universidades, esse prenúncio da cultura europeia da Renascença, cujos apoios socioeconómicos haviam surgido com a revolução urbana do século XIII, uma nova civilização. Vão crescendo - e afirmando-se - estados-nações. O século XIII, como já alguém apontou, é também aquele em que o cristianismo deixa de ser uma religião minoritária na Europa. Na verdade, graças sobretudo à missionação das ordens mendicantes (franciscanos, dominicanos, carmelitas), o povo, todo o povo -- mesmo o que, em regiões remotas, se entregava ainda a cultos antigos -- é chamado à religião de Cristo e à sua Igreja. Democratiza-se a cristandade. E para que, em tal alargamento, não se esqueçam ou distorçam as verdades da fé ensinada, insiste-se na pregação da Palavra, na sua ilustração (até teatral, com os autos representados nas catedrais e igrejas), na popularização de devoções simples (como a recitação do ângelus e do rosário), na obrigação de certos actos religiosos (missa, confissão, comunhão, peregrinações...). É neste clima de nacionalismo nascente e de aprofundamento do sentimento religioso que é nada e criada Joana d´Arc. E será por ela reivindicar as "Vozes" (São Miguel, Santa Catarina, Santa Margarida) pelas quais Deus a manda libertar a França dos ingleses, que sobre ela, camponesa analfabeta, conhecida pela sua piedade e bons costumes, cairá a sentença dos inquisidores, doutores e teólogos. O poder político e militar que a captara poderia tê-la logo morto no campo de batalha. Ao fazê-la prisioneira e trazê-la perante um tribunal eclesiástico, antes pretendeu destruir o mito fundador e animador de uma nova nação francesa e assim isolar, ainda mais e por conivência com heresias e superstições, o próprio Carlos VII, que de tímido rei se tornaria, afinal, no vencedor... Mas conseguiu apenas transformar a pastorinha de ovelhas numa condestável que, depois de morta, se foi tornando no símbolo da independência francesa, ao longo de séculos e para arautos e devotos de variegadas origens sociais, políticas e religiosas. Mas não foi linear tal percurso, nem sequer no seio da Igreja católica e francesa: na corte real, como no topo da hierarquia eclesiástica, ou ainda, mais tarde, para o racionalismo humanista do Renascimento -- sem falar na aversão protestante dos huguenotes -- foi-se preferindo, nos séculos XV e XVI, dizer que a vitória da França fora por vontade de Deus, manifestada e realizada através da monarquia autóctone. Vão surgindo umas excepções literárias, vai-se mantendo uma devoção popular, mas predomina essa atitude racionalista de contestação do milagre, pelos séculos XVII e XVIII, mesmo ridicularizando-o, como Voltaire em La Pucelle ou Beaumarchais nas Lettres sérieuses et badines... A reabilitação literária de Joana d´Arc virá do estrangeiro, Princesa, volto assim a falar-te de Schiller e da sua Jungfrau von Orleans.
O drama de Schiller, escrito em Leipzig, em 1801, enaltece a força anímica e o papel decisivo, para a vitória francesa, da Donzela. Mas foge bastante à história contada pela tradição, bem como ao que dela sabemos a partir de documentos coevos. Nesta peça, Joana também mata inimigos em batalha, apaixona-se por um soldado inglês, que derrubara, quando lhe tira o elmo e descobre o lindo rosto, é afastada e presa pela corte e pelo exército francês, para finalmente se libertar, escapar e acorrer ao campo de uma batalha que as forças de Carlos VII perdiam, inverter a situação e morrer heroica e gloriosamente. Tal versão inspirou libretos de ópera, designadamente uma de Tchaikovsky e outra de Verdi, de que já te falei. Nesta, o número de personagens é reduzido, não há amores ingleses, antes uma proximidade afectiva de Joana e Carlos VII, adivinhada e contrariada pelo ciúme do pai dela que, ao vê-la moribunda, depois de ter sacrificado a sua vida para salvar a do rei, implora perdão: Põe a tua mão sobre o meu cabelo branco e lava-me da culpa... A ópera é de 1845, continuamos em pleno romantismo. Além da celebração do 8 de Maio (aniversário da libertação de Orleães em 1429), instituída por Napoleão I, Joana d´Arc será lembrada e invocada, sucessivamente, pelo novo patriotismo da restauração monárquica e do segundo império. Mas será Michelet, republicano e anticlerical, historiador da França, como da sua Revolução, que fará de Joana uma figura heroica e nacional, tal como, já no campo religioso, Monsenhor Dupanloup, bispo de Orleães, começará, por 1850, a preparar o caminho do culto católico de Santa Joana, que será beatificada em 1909, por Pio X, e canonizada por Bento XV em 1920. O patriotismo místico de Bernanos não é galicista, chauvinista ou xenófobo. Atrevo-me a dizer-te, Princesa, que antes é um profundo sentimento de identidade, não racista mas espiritual, definido pela fidelidade à construção histórica de valores comunitários em torno da própria independência. Escreve, nesse texto profético, imediatamente anterior à humilhação inicial da França na 2ª Grande Guerra, Nous autres Français (1938/39): Libertar Orleães, levar o Delfim até Reims, atirar os bretões ao mar, vaidade das vaidades! -- Fazer frente aos doutores, dar respostas insolentes ao Inquisidor da Fé, "entregar-se a Deus em vez de aos homens da Igreja", manter a palavra dada, instituir-se juiz da legitimidade dos príncipes, quando a própria Santa Sé prefere não tomar partido, que presunção sacrílega! Não foi aos homens da Igreja que se confiou a honra francesa... ... Nem a honra, nem a terra francesa foram cometidas à guarda dos homens da Igreja, a nossa terra e a nossa honra são uma só! Pertence-nos esse ser temporal. De mãos cheias! É certo que são coisas perecíveis, concordamos. Que importa? que nos importa que sejam perecíveis, posto que Deus também nos fez mortais, e que só de nós sempre dependerá morrermos antes delas? Não há honra alguma em ser-se francês, nenhuma gloríola. E deixem-me também dizê-lo, uma vez por todas : tampouco há honra em ser-se cristão. Não fomos nós a escolher. «Sou cristão, reverenciem-me», dizem à saciedade os Príncipes dos Sacerdotes, os Escribas e os Fariseus. Antes deveríamos dizer, humildemente: «Sou cristão, rezai por mim!» É interessante entroncar este texto noutro, de Michelet, na sua Histoire de France (Paris, 1876): A acreditarmos num dos seus assessores, ela teria dito que, sobre certos pontos, não acreditava nem no bispo, nem no papa, nem ninguém; que se atinha ao que de Deus tinha. A questão do processo ficou assim posta na sua simplicidade, na sua grandeza, e assim se abriu o verdadeiro debate: de um lado, a Igreja visível e a autoridade; do outro, a inspiração atestando a Igreja invisível... Invisível aos olhos do vulgo, mas a piedosa menina via-a claramente, contemplava-a incessantemente, escutava-a em si mesma, trazia no coração esses santos e esses anjos... Para ela, a Igreja estava ali, ali onde Deus irradiava; alhures, tudo era tão escuro!... Tal sendo o debate, não havia remédio possível: a acusada devia perder-se. Ela não podia ceder, não podia, sem mentir, negar o que tão distintamente via e ouvia. Por outro lado (podia dizer-se), a autoridade continuaria a ser autoridade se abdicasse da sua jurisdição, se não castigasse? A Igreja militante é uma Igreja armada da espada de dois gumes, contra quem? Aparentemente, contra os indóceis. É esta exceção do ser,este primado da fidelidade a Deus sobre a obediência ao reino dos homens, que destaca a santidade e coloca o povo face à interrogação do sobrenatural como destino. A história de Joana d´Arc é universal, mais do que só francesa, mais do que só católica. O insólito tem força própria, a insolência sacraliza-se quando inspirada pela vontade divina. O curioso, aqui, é que a versão anticlerical do processo condenatório de Joana d´Arc, dada por Michelet, protestante de cepa huguenote, mas republicano francês, afastado da confissão e da prática religiosa cristã, nos fala da Igreja invisível ... invisível aos olhos do vulgo, mas a piedosa menina via-a claramente... ... escutava-a em si mesma, trazia no coração esses santos e esses anjos. Surge assim uma dimensão mística, em que, mais tarde, respirará o monárquico católico que sempre foi Georges Bernanos. A grandeza da figura mártir da Donzela de Orleães é inspirada pela graça divina que a destaca em contraste com o magistério eclesiástico que a julgou por influência política, mas a condenou por razões de ordem religiosa, reconhecendo-a culpada de heresia e bruxaria, pois ela, finalmente, não abjurou das "Vozes" que a comandavam. Essa fidelidade da consciência de Joana d´Arc , que a liberta da servidão ao mundo temporal -- mesmo clerical -- irá impô-la ao respeito de muitos alienígenas, desde Anatole France que, na sua Vie de Jeanne d´Arc (1908), celebra o valor histórico e popular da "camponesa ingénua e pura... ... de uma devoção sinceramente visionária", ao britânico Bernard Shaw que, no seu Saint Joan, faz dela protestante, quiçá uma santa protestante. Facto é que, a versão dita "anticlerical" do processo, essa que aponta à Igreja visível, incluindo a Inquisição, a responsabilidade da condenação por motivos do foro religioso, talvez por isso tenha promovido o interesse de muitos pela história de Joana d´Arc, mas, quase sempre, resultou mais em admiração -- ou mesmo culto -- da "Santa" do que em ataques às instituições eclesiásticas. Do lado católico convencional, foi-se pretendendo, quer que o processo fora essencialmente político, ainda que entregue a um tribunal eclesiástico, de traidores vendidos aos ingleses, quer, mais palidamente, o que escreveu um jesuíta do século XX, em nota de missal precedendo o próprio da missa da festa de Sta. Joana d´Arc: Feita prisioneira, vendida, acusada de bruxaria, julgada por motivos políticos por um tribunal religioso, ela foi finalmente condenada à morte. Todavia, basta ler os autos para nos inteirarmos de que as razões invocadas na sentença à morte de Joana foram de natureza religiosa. Não me ocorre qualquer passo de Zola sobre este caso, nem acerca da sua heroína. Será esquecimento, ou ignorância minha, mas também penso que o drama místico de Joana d´Arc, bem como a áurea que ganhou entre gente de diferentes campos políticos e religiosos, não fosse tentação para um analista de estrutura naturalista. É demasiado sobrenatural. Melhor serviu para o mistério lírico, ou oratório, de Paul Claudel e Arthur Honneger, Jeanne d´Arc au Bûcher (1938), que Roberto Rossellini adaptaria ao cinema, com Ingrid Bergman na protagonista (Giovanna d´Arco al rogo, 1954). A actriz sueca devia ser fã da Santa, pois já em 1948 a interpretara no Joan of Arc do Victor Fleming, de que diria, em 1952: Nunca teria aceite aparecer neste filme se antes não tivesse conhecido o Jeanne d´Arc do Dreyer. O filme do mestre dinamarquês -- que foi considerado um dos dez melhores de sempre -- é um grito de revolta contra a injustiça da justiça, mas é, sobretudo, A Paixão de Joana d´Arc. Dispensando a maquilhagem, para dar maior verdade e densidade humana aos rostos que filma em grande plano, toda a pesada atmosfera de um processo - aí narrado com fidelidade aos seus documentos coevos - se impõe ao espectador. Traduzo-te, Princesa, este testemunho de Valentine Hugo, que assistia às filmagens (em 1927): Foi particularmente impressionante o dia em que, num silêncio de sala de operações, à luz pálida de uma manhã de execução, se cortaram rentes os cabelos da Falconetti. A nossa sensibilidade, ainda que sujeita a preconceitos antigos, estava comovida, como se a marca infamante fosse ali realmente aplicada. Os electricistas, os maquinistas, retinham a respiração, e tinham os olhos cheios de lágrimas. A Falconetti chorou mesmo. Então, o realizador aproximou-se lentamente da heroína, recolheu-lhe lágrimas com os dedos e levou-as aos lábios... Marie Falconetti, cuja interpretação é inesquecível, nunca tinha feito cinema, desempenhava o papel de Miche numa bulevardice do teatro da Madeleine. Mas não era Nana. Desde Georges Méliès (em 1900) a Cecil B. De Mille (logo em 1917) ou Otto Preminger (levando ao cinema a Saint Joan do Bernard Shaw, em 1957, com a Jean Seberg), muitos realizadores trataram o tema. Mas para terminar esta carta, venho lembrar-te Le Procès de Jeanne d´Arc do Robert Bresson, que vimos em 1963, quando já tínhamos começado a nossa vida adulta... Fidelíssimo, como Carl Dreyer, às minutas do processo, Bresson procura restituí-lo na sua integridade intrínseca: Joana falava uma língua admiravelmente perfeita. Todo o seu processo é uma obra prima. Propositadamente, não quis tomar liberdades com a história. Os interrogatórios só servem para provocar, no rosto de Joana, as suas profundas impressões, para gravar, no filme, os movimentos da sua alma. O assunto verdadeiro é Joana votada à fogueira, e a sua longa agonia. É também a sua aventura interior e o enigma, não elucidado, dessa maravilhosa rapariga, do qual nunca encontraremos a chave. E, finalmente, o tema é a injustiça tomando a figura da justiça, a razão seca lutando contra a inspiração, a Iluminação. Dou-te a mão, como, há tantos anos, nos teríamos dado no cinema, e deixo-te a pensarsentirmos tudo isso.
O mundo do teatro, na obra de Zola, em Nana, por exemplo, é representado acanalhado, imoral, quase indecente. Eça de Queiroz não será mais caridoso, mas apenas goza a cena e diverte-se. Zola é mais cáustico do que só irónico, irrita-se, despreza, mas, na realidade, vai andando por lá, informa-se, tira, meticulosamente, apontamentos, e vai também pedindo e colhendo informações para os seus romances. Mais virulento enquanto jornalista, em 1868 e, depois, em Outubro de 69, já em vésperas da queda de Napoleão III, ele publica, no La Tribune, artigos danados com a ópera bufa e o teatro de variedades, aliás parodiado pela peça que, em Nana, tornará esta vistosa cortesã, sem talentos dramáticos nem cénicos, na titular de La Blonde Vénus, que é, no romance, o ídolo e a tentação lúbrica do público parisiense : Os nossos fidalgos, os nossos filhos família vivem num riso idiota. Aplaudem as bobadas dos Srs. Offenbach e Hervé, promovem a rainhas umas miseráveis dançarinas de corda que, quais artistas de feira, dão pulinhos nos tablados dos teatros... O artigo de 3 de Outubro de 1869 é uma crítica acérrima, mordaz e sarcástica, à digressão egípcia de La Grande Duchesse de Gerolstein, de Offenbach que, pobre de mim, sempre preso em casa, ouvirei esta tarde: Ladro, assim que ouço a música desabrida do Sr. Offenbach. Odeio aquelas cascalhices, com todos os meus ódios literários. Nunca a farsa estúpida se exibiu com tanto impudor... ...um público de claques que se pelam por uma obscenidade, bem acentuada por um dar de ancas! ... ...Que miséria! no dia em que uma mulher tiver a ideia sublime de se pôr de gatas no palco e desempenhar ao natural o papel de cadela errante, nesse mesmo dia Paris adoecerá de entusiasmo! O romance Nana começa mesmo com cenas do teatro Variétés, onde se estreia La Blonde Vénus, a Nana de que já tanta gente intriga: "Conheces a Nana? Sabes quem é?" Até que ela surge em palco: Nesse momento, as nuvens, ao fundo, afastaram-se, e apareceu Vénus. Nana, muito alta, muito forte para os seus dezoito anos, na sua túnica branca de deusa, com os cabelos compridos simplesmente soltos sobre os ombros, desceu para a rampa em pose tranquila, rindo para o público. E começou a sua grande ária : "Quando Vénus anda na ronda da noite..." Logo ao segundo verso, cruzavam-se olhares na sala... Seria brincadeira? Nunca se ouvira voz tão pífia, conduzida com tão pouco método. O seu director julgava-a bem, ela cantava como uma seringa. Mas, mais adiante, o público parece esquecer-se daquela voz avinagrada, e Nana... Ela continuava a balancear-se, só isso sabia fazer. E já ninguém achava isso feio, não senhor, muito pelo contrário, os homens apontavam os binóculos. E quando ela terminava a estrofe, a voz acabou-se-lhe de vez, percebeu que não chegaria ao fim. Então, sem se inquietar, deu um golpe de ancas, que desenhou uma redondeza sob a túnica fina, enquanto, de cintura dobrada, garganta para trás, estendia os braços. Rebentaram aplausos. E logo ela se virara, voltando para cima, deixando ver uma nuca em que cabelos ruivos punham como que uma tonsura de animal. E os aplausos tornaram-se tremendos. A mim, Princesa, a música de Offenbach tem o condão de indeferir... A vulgaridade dos recitativos, a pobreza das letras cantadas, os repetentes cancãs, os galopes que se agitam sem entusiasmar, tudo isso me entedia... Com a pretensão de as tornar divertidas -- ou talvez mesmo paródias críticas das gentes que se afirmam na sociedade vigente -- os autores retiram-lhes qualquer densidade humana, fazem das suas personagens marionetes sem alma. Zola, que devia acreditar cientemente nas artes como meios de transformação social, desesperava e produzia bílis em excesso...Afinal, não consegui voltar a ouvir integralmente La Grande Duchesse de Gerolstein, que todavia foi o maior (ou quase) êxito de bilheteira de Offenbach, exibindo-se em cinco teatros parisienses, em 1867. Os Contos de Hofmann já se distinguirão das óperas bufas e operetas desse judeu de Colónia (Offenbach era o nome da terra natal de seu pai), depois convertido ao catolicismo e naturalizado francês -- mas as outras obras, por muito que as anime a intenção da crítica social, militar e política do Segundo Império, são, deste, uma farsa inconsequente. Curiosamente, o êxito público-teatral de Offenbach desvanece-se com a queda de Napoleão III. E, dez anos depois do êxito da Grande Duchesse, o júri do Salon recusará expor um quadro de Edouard Manet : Nana. O romance de Zola, com esse título, só será publicado três anos mais tarde, em 1880, mas sendo, o pintor e o escritor, grandes amigos -- e de muita conversa no ateliê daquele -- é natural que ocorresse o nome de guerra da cortesã Louise Duval ( personagem fictícia de L´Assomoir e, depois, de Nana) para intitular o retrato de que fora modelo a actriz, demi-mondaine e amiga de Manet, Henriette Hauser, aliás ruiva como a protagonista do romance. A mulher de Georges Bernanos chamava-se, em solteira, Jeanne d´Arc. Não só por devoção de quem lhe dera o nome, mas por genealogia: era descendente directa do irmão da Donzela de Orleães. Já te falei no Saint Dominique de Bernanos, e só lhe conheço outro ensaio hagiográfico: Jeanne, Relapse et Sainte. Adiante iremos percebendo que é, também, hagiografia à la Bernanos... Já o título nos dá um cheirinho disso: Joana, Relapsa (isto é: reincidente, teimosa, impenitente) e Santa ! Aliás, o culto de Joana d´Arc não é, em França, exclusivamente católico e religioso, antes já Napoleão I restaurara, em Orleães, em 8 de Maio, a festa de Joana d´Arc, abolida pela Revolução, e essa se celebra agora, todos os anos, desde 1920, como outro dia nacional da França, no segundo domingo de Maio. Tem sido tal culto partilhado pelo sentimento nacional que atravessa a sociedade francesa, desde a direita nacionalista, barresiana e maurrasiana, ou simplesmente monárquica, à esquerda socialista, maioritariamente laica, republicana e agnóstica, com notáveis excepçoes, como a do religioso Charles Péguy, de alma católica e partido republicano e socialista. O tal que, no seu drama Jeanne d´Arc, põe a donzela de Orleães a recitar esta oração, na 4ª feira, dia 30 de Maio de 1431, antes de ser conduzida, da sua cela em Rouen, para a fogueira a que foi condenada:
Ó meu Deus,
já que Rouen deverá ser agora a minha casa, escutai bem a minha oração:
Peço-vos que aceiteis esta oração como sendo verdadeiramente a minha oração de mim,
porque logo não estarei totalmente segura do que farei quando estiver na rua... ,
e na praça pública, nem do que direi.
Perdoai-me, perdoai-nos a todos, todo o mal que fiz, ao servir-vos.
Mas sei bem que fiz bem em servir-vos.
Fizemos bem em servir-vos assim.
As minhas vozes não me tinham enganado.
Portanto, meu Deus, tratai de nos salvar a todos, Deus meu!
Jesus, salvai-nos a todos para a vida eterna.
O Santa Joana de Bernanos começa, precisamente, lembrando Péguy, que morreu no campo de batalha da guerra de 14-18: Desde que o querido Péguy se foi para o seu fim -- um, dois -- com o forte bater dos pesados sapatos na estrada -- um, dois -- e o seu lenço aos quadrados a tapar-lhe a nuca -- um, dois -- na imensa poeira do Verão... queríamos que Joana d´Arc pertencesse apenas às crianças. Quem isto escreveu acredita, profundamente, que, como disse Jesus, das crianças é o reino dos céus, porque a fé não pactua com a mentira. A inocência da infância, para Bernanos, responde à pergunta que repetidamente fazemos: Ainda bate o coração do mundo? Mais le coeur du monde bat toujours. A infância é esse coração. Não fosse o doce escândalo da infância, e a avareza e a manha teriam, num século ou dois, secado a terra. É elucidativo reler certos passos da Jeanne, Relapse et Sainte para entendermos, Princesa, para entendermos este trecho da mesma prosa: A maravilha é que, dessa vez, talvez única no mundo, a infância tenha assim comparecido perante um tribunal regular, mas a maravilha das maravilhas é que esse tribunal tenha sido um tribunal de gente da Igreja. Bernanos tem uma posição firme na discussão sobre se o processo de Joana d´Arc ( que a julgou de acordo com todas as regras do direito canónico e a condenou à fogueira, sentença de que a Santa seria reabilitada postumamente, em 1456, pela mesma Igreja...) que opunha os de parecer que se tratava de um julgamento religioso, aos que diziam ser ele político. Eu, nestas e noutras questões, sou -- sabe-lo bem Princesa -- como Bernanos, um anticlerical. Não por tentação laicista, nacionalista monárquica ou socialista republicana. Sou anticlerical de dentro da Igreja, teológico e cristão tradicional. Mas vamos ao tal trecho de prosa: A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Quem dela se aproxima com desconfiança crê que só vê portas fechadas, barreiras e guichês, uma espécie de polícia espiritual. Mas a nossa Igreja é a Igreja dos santos. Para ser santo, que bispo não daria o seu anel, a sua mitra, o seu báculo, que cardeal a sua púrpura, que pontífice o seu hábito branco, os seus camareiros, guardas suíços, tudo o que é o seu mundano? quem não quereria ter a força de correr tão admirável aventura? Porque a santidade é uma aventura, é mesmo a única aventura. Quem, certo dia, o tenha percebido entrou no coração da fé católica, sentiu vibrar na sua carne mortal outro terror que não o da morte, uma esperança sobre-humana. A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Mas quem quer saber o que são santos? Queríamos que eles fossem velhos cheios de experiência e de política, e a maioria são crianças. Ora a infância está sozinha contra todos... ... Todo esse aparelho de sabedoria, de força, de elástica disciplina, de magnificência e de majestade nada é em si mesmo, se não o animar a caridade. Mas a mediocridade aí apenas procura um seguro sólido contra os riscos do divino. Que importa! O mais pequeno rapazinho dos nossos catecismos sabe que a bênção dos nossos homens de Igreja, todos juntos, só trará a paz às almas já prestes a acolhê-la, às almas de boa vontade. Rito algum nos dispensa de amar. A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Aliás, nenhures quereríamos imaginar sequer tal aventura, e tão humana, duma pequena heroína que, num só dia, passa da fogueira do inquisidor para o Paraíso, debaixo do nariz de cento e cinquenta teólogos. «Se chegámos a este ponto», escreviam ao papa os juízes de Joana, « de as bruxas falsamente vaticinando em nome de Deus, como certa fêmea apanhada nos limites da diocese de Beauvais, serem melhor acolhidas pela leviandade popular do que os pastores e os doutores, acabou-se tudo, a religião perecerá, desmorona-se a fé, a Igreja é espezinhada, a iniquidade de Satanás dominará o mundo! ... » E eis que, quase quinhentos anos mais tarde, a efígie da bruxa está exposta em São Pedro de Roma -- é certo que pintada como guerreira, sem tabardo nem túnica fendida! -- e, a uns cem pés abaixo dela, Joana terá podido ver um minúsculo homem branco, prosternado, que era o próprio papa! Como sagazmente observou Jacques Chabot, nas sua notas acerca dessa obra, «Bernanos compôs essencialmente uma oração em forma de poema, Jeanne, Relapse et Sainte liga a reflexão sobre a política e a história a uma contemplação da tragédia da salvação. À sentença maurrasiana "Primeiro a política, ensina-nos a prática de Joana d´Arc", Bernanos substitui o desafio "Poesia e mística primeiro!" E coloca a sua obra sob a dupla invocação do poeta Péguy (ao princípio) e de "Teresinha" (no fim) ». Esta Teresinha é a de Lisieux, do Menino Jesus, a tal que proferiu uma visão que Bernanos nunca abandonou: Tudo é graça! Vai longa, Princesa de mim, esta carta. Mas prometo que, numa seguinte, te falarei ainda do processo de Joana d´Arc, e de diversa gente, desde Michelet a Claudel, ou de Verdi a Honneger. Por hoje, apenas acrescento que, cansado do cancã do Offenbach, acabei por escutar a Giovanna d´Arco, do Verdi, ópera épica, escrita para o patriotismo fervoroso do Risorgimento, em que Die Jungfrau von Orleans (título da peça de Schiller, de 1800, que inspirou o libreto de Temistocle Solera) não morre na fogueira, antes no campo de batalha:
Ecco!...nube dorata m´innalza...
Oh!...l´usbergo tramutasi in ale!...
Addio Terra!... Addio, gloria mortale...
Alto volo... già brillo nel Sol!
Em nuvem de oiro se eleva Joana, com a couraça a transformar-se em asas... E diz adeus à terra e à glória mortal: alto voando, já brilha no Sol! Como tu, Princesa, no coração da minha amizade! { É bonito, não é? Aplausos. Cai o pano.}
O que será que reúne em mim o Nana do Zola com os Dialogues de Carmélites do Bernanos? Talvez um qualquer encontro de misericórdias por sobre fatalidades, numa convergência de olhares díspares sobre o destino de condições humanas em circunstâncias trágicas... Ou quiçá a força dessa contradição que é a coincidência, nas nossas vidas, do pecado e da graça, da aspiração ao bem na obsessão do mal, desse naufrágio da consciência que se abandona, gritando sempre, à tormenta das tentações. Preso por doença persistente, tenho lido e relido muito. Quando paro, escolho um disco em que, por qualquer razão escondida, sinto poder continuar o passeio de uma meditação, mas de olhos fechados, ouvindo música. Voltara ontem à Nana, e quando fechei o livro, esta manhã, logo me ocorreram os Dialogues. Pus a girar os discos da ópera do Poulenc, pondo em música a peça de Georges Bernanos, inspirada na Die Letzte am Schaffot (AÚltima no Cadafalso ) da Gertrud von Le Fort e no guião para cinema (para este, precisamente, escreveu Bernanos os diálogos) de Philippe Agostini e do padre Brückberger, dominicano francês, que conheci na minha juventude. Mas que têm em comum a prostituta Nana e a aristocrata Blanche de La Force (Irmã Branca da Agonia de Cristo) ? Terá a ver com o que a esta carmelita diz outra, a Irmã Constança: Não morremos cada um por si, mas uns pelos outros, ou mesmo uns em lugar de outros, quem sabe? Interroga-se assim, no fim de um dueto entre ambas, mais longo na peça do que na ópera, em que todavia Poulenc põe em música o texto de Bernanos (abreviado) : O que chamamos acaso é talvez a lógica de Deus. Pense na morte da nossa querida Madre, Irmã Branca! Quem acreditaria que lhe custaria tanto morrer, que pudesse morrer tão mal! Dir-se-ia que no momento de lha dar, Deus se enganou de morte, como no vestiário se troca um casaco por outro. Sim, aquela devia ser uma morte para outra, uma morte pequena demais para ela, ela nem sequer conseguia enfiar-lhe as mangas. --- A morte de outra? Que pode isso querer dizer, Irmã Constança? --- Quer dizer que essoutra, quando chegar a hora da morte, se admirará de nela entrar tão facilmente e de nela se sentir confortável... Sabes, Princesa, que a história ali contada se fundamenta na realidade do acontecimento da execução, na guilhotina, de dezasseis monjas carmelitas de Compiègne, em 17 de Julho de 1794, durante o Terror da Revolução Francesa. Mas Gertrud von Le Fort projecta na personagem de Blanche de La Force o drama da sua própria angústia e da fé que lhe dizia que essa angústia seria vencida pela Graça. Branca também era medrosa, tinha medo do medo, e medo da morte, ao ponto de fugir à proximidade do martírio...para regressar, na hora do cumprimento, e ser a última a subir ao cadafalso, cantando: Deo Patri sit gloria, et Filio qui a mortuis surrexit, ac Paraclito, in saeculorum saecula... Bernanos, por outro lado, porá em epígrafe aos Dialogues, na dedicatória dos mesmos, estas palavras do seu romance La Joie: Em certo sentido, vede bem, o Medo é mesmo filho de Deus, resgatado na noite de Sexta Feira Santa. Não é bonito de ver-se -- não! -- ora escarnecido, ora maldito, renunciado por todos... E todavia, não nos enganemos: ele está à cabeceira de cada agonia, ele intercede pelo homem. Nana nasceu num bairro pobre, foi, em criança, servente de uma tia florista. Mas senhora de um corpo cheio de atributos que enlouquecem a libido dos homens em geral e a dos burgueses e aristocratas, mais ou menos idosos ou jovens, mais ou menos ricos ou atrevidos, em especial, vai finalmente ganhando a vida em palcos de teatro de variedades e na prostituição, exercício em que, caprichosa, sabedora e sem escrúpulos nem temores, explora uns, sobretudo os senhores mais abastados e socialmente respeitáveis, e favorece outros, amigos do coração ou amantes passageiros, numa promiscuidade organizada por ela só. Conta-nos Zola uma história pouco verosímil como biografia (tantos parceiros, tantas situações, tantas variantes são muita areia para a camionete de uma só mulher), mas bom retrato do luxo e da luxúria desregrados da sociedade parisiense no Segundo Império. É, quiçá, o romance de Zola que mais me lembra o nosso Eça, por um escárnio latente, um pessimismo descrente de tudo, ou, talvez apenas, pelas páginas sobre as corridas de cavalos em Longchamp, com tantas cenas semelhantes às evocadas por Eça em Os Maias, nas corridas em Belém. Recordo-te alguns passos, do penúltimo capítulo e do final. Encontramos Nana no cenário espampanante do seu palacete, oferecido pelo Conde Muffat -- que ela pervertera -- mas recheado também de luxos pagos por conta de outros amantes ou de simples serviços num prostíbulo. Calça as luvas, vai sair para ir a um hospital visitar Satin, sua velha amiga e companheira de ofício, finalmente sua amante também, agora pobre moribunda. Diz para dois proxenetas de teatro que a foram visitar: « Vou ao hospital... Ninguém me amou como ela. Ah! Temos razão em acusar os homens de falta de coração!... Sabe-se lá! Talvez já não a encontre. Pouco importa, pedirei para vê-la. Quero abraçá-la.» ... Já não estava triste, também sorriu, porque aqueles dois não contavam, até podiam perceber... ... Quedava-se só, de pé, no meio das riquezas acumuladas do seu palacete, com um povo de homens abatidos a seus pés. Como esses monstros antigos, cujo temido domínio estava coberto de ossos, ela punha os pés sobre crâneos; e rodeavam-na catástrofes, a furiosa imolação de Vandeuvres pelo fogo, a melancolia de Foucarmont perdido nos mares de China, a ruína de Steiner, reduzido a viver honestamente, a imbecilidade satisfeita de La Faloise, o trágico descalabro dos Muffat, e o branco cadáver de Georges, em cuja vigília estava Pierre, saído da prisão na véspera. A sua obra de ruína e morte estava feita, a mosca saída do lixo dos subúrbios trouxera o fermento das podridões sociais e envenenara esses homens, só por pousar neles. Tudo batia certo, era justo, ela tinha vingado o seu mundo, os mendigos e os abandonados. E enquanto, em glória, o seu sexo se levantava e irradiava sobre as suas vítimas jacentes, qual sol nascente que ilumina um campo de carnificina, ela conservava a sua inconsciência de animal soberbo, ignorando a sua tarefa, e sempre boa rapariga... ... e saiu, muito bem vestida, para ir abraçar Satin pela última vez, com ar todo juvenil, como se nunca tivesse servido. Nessa altura, Nana despede-se da sua circunstância parisiense, vende mansão e mobília, o recheio todo. Uma fortuna em dinheiro vai permitir-lhe lançar-se na aventura de uma longa viagem pelo Médio Oriente e pela Rússia. Terá amantes no Cairo e seduzirá um príncipe russo, que a cobrirá de joias e mais riquezas. Talvez por se amofinar com ele, regressará a Paris, com vagões cheios de bagagem, e vai logo visitar o menino, seu filho de pai incógnito, que deixara entregue à sua tia florista. O pequeno tem bexigas, morre delas, contagia a mãe. Nana refugia-se então num quarto mobilado, só. Será Rose Mignon, antiga rival na exploração de homens e de contratos no teatro, sua quase inimiga detestada, que a irá ali buscar e a instalará no Grand Hotel, onde, apesar do risco de contágio, a acompanhará e tratará até à morte. Sabedoras da situação, algumas cortesãs irão visitar a moribunda, sempre vigiada por Rose, enquanto os homens, fumando charuto, se ficam pela rua, à porta do hotel, só para terem notícias. Quando Nana está morrendo, agitam-se multidões pelos bulevares, anunciando e aclamando a guerra contra a Prússia de Bismarck, gritando: "Para Berlim, para Berlim!". Esse será então o fim do Segundo Império, com a derrota da França. Rose, na sua corajosa misericórdia, será a última a abandonar o quarto, depois de com água lavar o rosto e as mãos, se vestir para sair, acender um candelabro de vigília, correr os cortinados e murmurar, ao ver, à luz da chama acesa, o rosto descomposto e irreconhecível: "Como ela mudou...como ela mudou!" Zola comenta: Vénus descompunha-se. Parecia que o vírus que ela apanhara nos ribeiros, em cima dos cadáveres tolerados, esse fermento com que ela envenenara um povo, acabara por subir-lhe ao rosto e o apodrecera... O mesmo Zola que, algures, em esboço do romance Nana, muito antes escrevera: O assunto filosófico é este: toda uma sociedade a atirar-se ao sexo. Uma matilha atrás de uma cadela, que não está em calores, e troça dos cães que a perseguem. O poema dos desejos do macho, a grande alavanca que agita o mundo. Só há sexo e religião. É, pois, intencional, a coincidência do apodrecimento mortal de Nana com o estertor final da França, da Paris, de Napoleão III. Todavia, isolada, contrastante, eleva-se, como uma assunção, a piedosa misericórdia de Rose Mignon. Uma formosa flor desabrochou na lixeira. Deus sabe se a presença de Rose à cabeceira da sua agonia, não terá confortado Nana, quando de morte vestia... Nem nós sabemos se Rose terá pensado que Nana talvez morresse por ela... Como disse a carmelita: Não morremos cada um por si, mas uns pelos outros, ou mesmo uns em lugar de outros, quem sabe?Sabes tu, Princesa de mim, como frequentemente me acontece contemplar esse grande mistério da unidade da condição humana, da nossa comum dignidade, do inalienável valor divino do humano. Numa perspectiva teológica, o cristianismo chama-lhe comunhão dos santos: reunidos para formar o corpo místico de Cristo, cujo sacramento é a eucaristia -- reconciliação, comunhão, acção de graças -- vivemos, uns pelos outros, na economia da salvação. Digo-te isto agora, pensando que Zola talvez fosse menos amargo e corrosivo, se, no seu tempo, tivesse deparado menos com uma igreja clerical que pregava penitências e indulgências, e reclamava para si o poder de atribuir ou apontar pecados e culpas e dispensar castigos e absolvições, traçando percursos salvíficos, ou condenatórios, individualizados... Simbolizando isso mesmo, anda, sub-repticiamente, por Nana, a personagem de Théophile Venot, advogado aposentado, devoto e metediço, que vai aconselhando, perdoando, limando arestas, tentando recompor, disfarçar ou fazer esquecer situações pecaminosas, para, pelo menos, salvar as aparências ad majorem Dei gloriam... Como seria Zola se, invertida a cronologia, tivesse podido descobrir, lendo Léon Bloy ou Bernanos, a sobrenatural misericórdia que, pela calada, vai vigiando as nossas vidas. Deixo-te, Princesa, este sentimento -- talvez desejo -- de que, na hora da nossa morte, seja ouvido o miserere em que pedimos que o nosso medo seja vencido pela misericórdia... Camilo Maria
Nesta, finalmente, te falo do caso Dreyfus. Sobretudo pelo que ele nos convida a examinar em atitudes nossas que, generalizando suspeitas ou antipatias, ou estendendo preconceitos, acabam por nos levar a juízos temerários e injustos. Para além do bom senso, da prudência e da justiça, a nossa propensão a desunir, dividir, separar e excluir, condenar e abominar, leva-nos a rotular os outros, ou o diferente, conferindo entoações e sentidos pejorativos a designações de identificação que, ainda por cima, vão alcançar e abranger pessoas e grupos que suspeitamos e pretendemos agredir, mais do que defini-los conformemente à realidade: pretos, padres, comunistas, maçons, judeus, eis alguns dos muitos exemplos desses temerários e injustos vocativos... Nomes circunstanciando conceitos mal definidos em nebulosas mentais, correspondentes, o mais das vezes, a frustrações ou ódios particulares. Injúrias. Insultos que apenas resultam no aumento de tensões e afrontamentos, concomitantemente à diminuição da lucidez e capacidade de diálogo. Resumindo: uma irresponsabilidade, a que, mais vez, menos vez, nem sempre fugimos... Nas cartas que te vou escrevendo, Princesa - como noutros textos que publiquei - por várias vezes me referi, pensando na circunstância actual da "globalização", a essas questões, condicionantes do diálogo e da convivência, que acima menciono. Tal como insisti na importância da identidade, da consciência de si, para ser possível, no respeito mútuo da diferença do outro, todos sabermos do que falamos e em que termos o devemos fazer. Este domingo, curiosamente, as leituras bíblicas contam-nos o episódio da queixa que os discípulos fazem a Jesus, por terem visto um homem, que não era do grupo deles, expulsar demónios. Ao que o Mestre responde: Não o proibais, porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de mim. Quem não é contra nós é por nós. O bem e a razão não são monopólio de um grupo só, ou de uma só religião. Também Moisés, outro judeu, quando Josué, seu dedicado servidor, lhe disse que outros profetizavam, e ele devia proibi-los, respondeu: Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o povo fosse profeta, e que o Senhor infundisse o Espírito sobre todos! A diferença de identidades não exclui ninguém da comum dignidade humana, nem dos planos de Deus. Mas sobre a definição da identidade...falaremos noutro dia. Hoje, curiosamente também, li uma entrevista ao historiador britânico (mas francófonoe francófilo) Sudhir Hazareesingh, de quem recentemente falei, sobre o receio de perda de identidade francesa que hoje atravessa o discurso dos pensadores gauleses, da direita até à esquerda. Transversal. A dado passo, afirma ele: Há uma tendência muito actual para diabolizar tudo o que é "outro"... ...Tudo o que é "outro" é representado como uma ameaça para a "identidade francesa", essoutro sendo, quer o estrangeiro (a Alemanha, os EUA, o mundo árabe e muçulmano), quer o minoritário (as feministas, os homossexuais, os imigrantes, etc.). Ainda curiosamente, fui dar com outro entrevistado, o historiador francês Patrick Boucheron, que adianta: Uma poderosa interpelação política exorta os historiadores a tranquilizar-nos sobre a antiguidade, a consistência e a clausura da nossa identidade. Face a este veneno contemporâneo, que pode a história?... ... A procura apaixonada da identidade é contrária à própria ideia de história, essa ciência da mudança social, que conta a maneira como os homens e as mulheres, em sociedade, se tornam senhores do seu destino. Contrariamente ao que afirmam os apóstolos da identidade nacional, a história não é providencial: nada está previamente escrito. Quando a história se deixa apanhar numa armadilha identitária, limita-se ao "já escrito", consente nessa teologia do inevitável que é a catástrofe por vir. O único pensamento crítico válido, é compreender que outras opções são possíveis. A história continua porque está continuamente aberta. Não se contenta com o que foi, mas permanece acolhedora a possíveis porvir. Essa será, talvez, a única lição da história: a certeza de que a cada momento se inventou algo que não estava previsto... Penso que Émile Zola, no caso Dreyfus, também percebeu isso. Para além da defesa da inocência de um homem ( mesmo que este fosse um pedante, rico e femeeiro) que, aos olhos de muitos, simbolizava a nova burguesia francesa, com o seu luxo exibicionista, a sua insensibilidade social, e a falta de escrúpulos que a levou a tantos escândalos, financeiros e outros, havia que apontar o dedo a uma classe militar e política, cúmplice dessa mesma burguesia, e que, para se safar do intolerável escândalo da alta traição cometida no seu seio (espionagem em favor do inimigo alemão), entendeu sacrificar um dos seus que, por ser judeu, seria bode expiatório mais facilmente aceite pela opinião pública. Despachava-se, assim, o processo e... não se falava mais no assunto! O culpado -- que, evidentemente, nunca poderia ser um oficial "francês de gema" -- era "outro", intrinsecamente estrangeiro, malevolente e indigno de confiança. Não se identificava com a França, era um estranho. Edouard Drumont, por muito que detestasse as classes dominantes - e corajosamente tivesse levantado, bem mais do que Zola, o seu protesto contra a carnificina repressiva da Comuna - não se libertava do seu complexo antissemita: o judeu, e o seu gosto pelo Dinheiro, envenenava as virtudes autênticas da França. Errou. Foi em Maio de 1896, no Figaro, como já te disse, que Zola começou a contestar publicamente a campanha antissemita de Drumont, e só em finais desse ano ele melhor conhecerá, na sequência de um encontro com Bernard Lazare (autor de Une erreur judiciaire. La vérité sur l´affaire Dreyfus), o processo judicial que, em 1894, condenara à deportação, por espionagem em favor da Alemanha, do capitão de família judia. Mas só em Novembro de 1897, depois de ter notícia da descoberta, pelo tenente-coronel Picquart, de provas incriminatórias de Esterhazy (o culpado, que ainda será absolvido antes de ser finalmente condenado), Zola iniciará uma série de artigos no Figaro, questionando as acusações contra os judeus, incluindo no caso Dreyfus. Terá de interromper essa campanha naquele jornal, dar-se-á conta, também, da sua relativa ineficácia, no meio do marasmo geral perante a ebulição antijudaica, o que o levará a mudar de tática e, na sequência da absolvição de Esterhazy pelo conselho de guerra, em 11 de Janeiro de 1898, publicará, em toda a primeira página do jornal L´Aurore, no dia 13, a sua carta ao Presidente da República, Félix Faure, sob o veemente título J´Accuse...! O jornal logo vendeu 300 mil exemplares! E, é claro, o governo logo moveu uma acção em tribunal contra Zola, por insultos às forças armadas, etc., tendo o escritor sido condenado, por crime de difamação, a um ano de cadeia e três mil francos de multa. Só que a agitação começara, e o caso passou de simplesmente judicial a político, ganhando foros de interpelação à consciência moral da França. Substituiu-se a pena de prisão por exílio em Londres, que durou de Julho de 1898 a Junho de 1899. Neste mesmo mês, no dia 3, dois dias antes do regresso de Zola a França, é anulada a sentença que condenara Dreyfus em 1894. Mas o capitão só será reintegrado em 1906, já depois de ter assistido à vitória eleitoral da esquerda radical nas eleições de 1902 e, a 5 de Outubro desse ano, às exéquias de Émile Zola, falecido em 29 de Setembro. Todo este processo e a sua circunstância estão eivados de intenções, actos e factos, tristes e sórdidos: falsificaram-se documentos e provas, suicidaram-se falsificadores, tramaram-se intrigas e escamotearam-se revelações; mesmo depois de anulada, em 1899, a sentença de 1894, logo em 1900, as Câmaras do Parlamento aprovaram uma lei amnistiando todos os envolvidos no processo, isto é, misturando os culpados, tardiamente acusados, julgados e condenados, com os inocentes, que já haviam pago pelo que não tinham feito, incluindo nestes o tenente-coronel Picquart que, por ter levantado o véu lançado sobre a culpabilidade de Esterhazy, iniciara o caminho da salvação da honra do exército francês. (O que não impedira, antes entusiasmara, os perseguidores a julgarem-no por falsificação de provas, quando mostrou que o autor do memorando entregue aos alemães fora, efectivamente, Esterhazy). O polemista e justiceiro Zola, jornalista e escritor de combate, fora sobretudo um romancista romântico e naturalista que, em vinte romances, compusera, com genealogias e hereditariedades minuciosamente preparadas, o percurso de uma família pelo Segundo Império : os Rougon-Macquart. Nessa saga convivemos com uma época e uma sociedade dominadas pelo oportunismo, pela ganância, pela luxúria, em que sobressaem, aqui e ali, algumas personagens com outra densidade espiritual, talvez por isso mesmo desaparelhadas, desadaptadas, quase como os Misfits de Arthur Miller, ou os de This side of Paradise do Scott Fitzgerald, no desfazer do sonho americano. Agnóstico, Zola iniciará -- como em carta anterior te conto -- a redacção dos seus Quatre Évangiles, no exílio, em Londres, uma espécie de regresso laico a valores cristãos... Tenho pena de não conseguir achar, hoje, aqui, na floresta dos meus livros, cópia do texto original de El Mal del Siglo, de Miguel de Unamuno, mas leio umas notas, já velhinhas, de leitura minha. Ocorre-me o mesmo por contraposição à coragem e ao sonho do Zola que, apesar de tudo, acredita ainda na possibilidade de vidas conduzidas por valores e esperança. O texto de Unamuno que ora recordo -- e que anuncia o grande Del Sentimiento Trágico de la Vida (1911) -- data de 1897, sofre também dos males de fim de século, e contra eles procura igualmente reagir. Refere, curiosamente outra vez, de acordo com os meus apontamentos, o eloquente suicídio do "poeta nihilista" Antero de Quental, como símbolo da vaidade de todas as coisas e da morte eterna como única saída. Mas, contrapondo-o de outro modo a Zola, registei nas minhas notas um passo de Unamuno, que, apesar de traduzido por mim, não andará longe do original: Mesmo que a razão se tenha tornado ateia, o coração continuou a ser cristão, e é do coração que jorra a fé. Devemos esperar mais duma alma cristã arrancada ao ateísmo do que dum deísta cristianizado... ... a razão deísta acaba por afogar Deus no mundo e dissolvê-lo. Deus não se prova, não pode provar-se, sentimo-lo. Deus não é racional, é cordial... ... É abandonando a Razão e a Vontade que procuraremos o Amor. Deus é amor, e o amor é mais forte do que a morte... ...Uma só coisa é necessária: a fé, que é amor. E o amor é justiça. Georges Bernanos também foi jornalista e escritor de combate. Nascido numa família da média burguesia francesa, católica, conservadora e monárquica, herdou valores tradicionais e uma visão do mundo que pretendia arrumá-lo no quadro desses valores. Mas foi sempre fiel ao mandamento novo, tal como Unamuno acima o formula. Foi isso que o ajudou a também nunca perder nem esperança, nem coragem, a falar com liberdade interior e independência. Tarde se fez romancista, mas as suas histórias contam-nos a exigente aventura da graça de Deus na vida dos homens, têm heróis que são padres, são habitadas por forças obscuras mas sempre presentes, como em Dostoievsky. Acaba aqui, Princesa, este passeio que, de mãos dadas com Zola e Bernanos, eu dei contigo. Ou talvez não acabe, e por novos horizontes se vá prolongando... Dou-te a mão
Sabes bem que, muitas e muitas vezes, me tenho interrogado - e vou escrevendo - sobre o preconceito e a intolerância, a antipatia e a divisão, a exclusão e a perseguição. Temendo não ver a trave que me tapa a vista, enquanto aponto o argueiro que irrita o olho de outrem, pensei amiúde, como cristão e católico, porque diabo haveríamos de pensar que, por ser a verdadeira religião, a nossa seria superior às outras... A alegria da fé na boa nova anunciada por Jesus devia levar-nos, humildemente, à gratidão pela revelação recebida e ao gosto natural de querer partilhá-la com todos. A alegria -- e sobretudo essa alegria do evangelho, que traz sentido e liberdade à nossa vida -- é comunicativa, despertadora, sente-se como dádiva recebida e partilhada, não se impõe por qualquer manifestação de superioridade, demonstração de força ou de hierarquia de louvor a Deus. A maravilha da mensagem actual do papa Francisco é a alegria simples da fé no amor igual de Deus por todos nós. Para Deus não há cristão, budista, muçulmano, agnóstico, ateu, nem tudo o mais diferente, há, cristalinamente, o que pratica a misericórdia e ama o seu irmão. No seu discurso à Assembleia Geral da ONU, o papa falou do respeito devido à dignidade humana, à liberdade, igualdade e fraternidade de todos e cada um. Mas tal não foi uma declaração retórica, pois Francisco lembrou os direitos económicos e sociais que sustentam essa dignidade, e falou em Deus, pátria, trabalho e família. Vê tu bem, Princesa, como os gritos de guerra, de um e de outro lado, não são necessariamente afrontamentos exclusivistas. No concerto social, acima da teimosia em impor princípios próprios, nas formulações ideológicas que lhes der o tempo e o modo, só ganhamos todos com a procura do sentido da dignidade e da justiça que, em paz, nos deve construir. Drumont, que Bernanos admirava, era coevo de Zola, opuseram-se sobre a question juive e o caso Dreyfus. Não vou fazer-te aqui uma análise de casos, nem sequer disso a que, em França e na Europa, há séculos dá pelo nome de antissemitismo. Antes procurarei olhar contigo - e tentar ver - para o pensarsentir com que, por exemplo, Drumont/Bernanos, de um lado, e Zola, do outro, encararam certas realidades e acontecimentos. Talvez nos surpreenda uma subjacência comum de liberdade e coragem de pensamento e elevado sentido de justiça. Reagindo ao livro de Drumont, La France Juive, Zola publica, em Le Figaro, de 16 de Maio de 1896, um texto intitulado Pour les juifs, de que cito uns passos: Já não é um padre que o jornal almoça pela manhã, mas um judeu, o mais gordinho, o mais florido que se possa arranjar. Almoço tão medíocre como o outro, e pelo menos tão tolo. Com razão, compara a estupidez gratuita do antissemitismo à do anticlericalismo. Adiante: Eis aqui o meu contínuo espanto, que tal regresso de fanatismo, que tal tentativa de guerra religiosa, tenha podido produzir-se na nossa época, na nossa grande Paris, no meio do nosso bom povo. E isto nos nossos tempos de democracia, de tolerância universal, quando, por todo o lado, se declara um movimento para a igualdade, a fraternidade e a justiça!Estamos a tentar destruir fronteiras, sonhar com a comunidade dos povos, reunir congressos de religiões, para que os padres de todos os cultos se abracem, sentirmo-nos todos irmãos pela dor, querer salvar-nos a todos da miséria de viver, elevando um único altar à piedade humana! E aparece um punhado de loucos, de imbecis ou de habilidosos, que todas as manhãs nos gritam: "Matemos os judeus, comamos os judeus, massacremos, exterminemos, voltemos às fogueiras!" Eis o que se chama saber escolher a hora certa! E nada seria mais estúpido, se nada fosse mais abominável! Em La Grande Peur des biens pensants, Bernanos, não só presta homenagem a Drumont, como reconhece a dívida moral e intelectual que para com ele tem. O autor de La France juive é, para ele, um exemplo de independência de espírito e de coragem, num país saído da revolução, e onde, desde o Directório à monarquia de Julho, as grandes dinastias da nova burguesia se mantêm no poder, e aí ficarão durante o Segundo Império e a República que lhe segue. É contra a ditadura do Dinheiro, o esmagamento do velho povo francês, incluindo esse que, anarcossindicalista, a comuna de Paris também integra, que Drumont -- aquele que não aceita e, em período de mal entendidos, equívocos, oportunismos à direita e à esquerda, defende, mantém, proclama o ponto de vista do homem livre -- se ergue. Escreve Bernanos: Quando tiver acabado a leitura desse livro, parece-me que qualquer homem de boa fé convirá em que o velho escritor de La France juive foi menos obcecado pelos Judeus do que pelo poder do Dinheiro, de que o Judeu era, a seus olhos, símbolo ou, por assim dizer, a incarnação... E, noutro passo: "Sem dúvida", escreve Edouard Drumont em Le Testament d´un antisémite, "à primeira achega somos tentados a divertirmo-nos com o belo impudor com que essa gente escarnece os seus eleitores, trai os seus juramentos, mente às suas promessas, explora e mistifica de vez em vez cada partido, para arranjarem mais prazer e luxo"... ...Tal é essa revolta da consciência, da generosidade, da honra, de que nasceria toda a obra de Drumont. Antes de fazer, dia a dia, no seu La Libre Parole, o processo do Judeu, ele fez o processo da sociedade sem entranhas sobre a qual o Judeu fermenta. Era necessária essa grande voz, essa voz de bronze, para romper o pacto vergonhoso do silêncio. Ele fez o processo do seu tempo com tal medida no desprezo, tão alta piedade, tanta abundância de provas, que ninguém tentará uma reabilitação. Tenta-a ele, a seus riscos e perigos, sozinho, livre. No fundo, Georges Bernanos, patriota e conservador da identidade e valores tradicionais, também pensava na reconciliação do povo e do Estado, unidos contra a opressão do dinheiro. Como em monarquias históricas... Joseph Jurt, apresentando La Grande Peur des biens pensants na Bibliothèque de laPléiade, observa que, mesmo sem acentuar tanto o problema judeu, Bernanos retoma a tese do autor de La France juive, mas sublinha que "o antissemitismo expresso em La Grande Peur nada tinha a ver com o antissemitismo hitleriano", e cita Bernanos: Nenhum dos que me deram a honra de ler-me pode julgar-me ligado à horrenda propaganda antissemita que hoje se desencadeia na imprensa dita nacional às ordens do estrangeiro... ... Se agradar ao Sr. Hitler desonrar neste momento a causa que o meu velho mestre serviu, isso que importa? Não degrada o nacionalismo a ideia de Pátria, e o militarismo militar a tradição militar? O general Franco e suas Excelências a ideia da Cruzada? Quem tenha lido Les Grands Cimetières sabe que caso faço de políticos e assassinos. Parece-me, Princesa, que o modo flâneur da minha peregrinação, uma vez mais, atirará o caso Dreyfus para outra carta. Mas, lembrado do indignado protesto de Drumont contra a desumanidade da repressão da Comuna de Paris pelo exército, ou do de Bernanos contra os linchamentos de esquerdistas espanhóis pelas falanges, deixo-te um texto bonito de Émile Zola que, quiçá, os outros dois escritores franceses não desdenhariam subscrever, e o próprio papa Francisco, com a sua caridade, entenderia: Começaram com a própria existência das sociedades. Diante dos males inevitáveis, que qualquer ordem social engendra, houve sempre homens simples, enamorados do sonho de uma felicidade sem mistura, que, sinceramente convencidos da possibilidade de um paraíso terrestre, acreditaram que bastaria regressar à natureza e, assim, destruir o estado de coisas convencionalmente estabelecido. E quanto mais belo era o seu sonho, mais intenso era o seu desejo de felicidade humana, mais ardentemente proclamavam a necessidade de demolir. A teoria anarquista continuou sempre, ora silenciosa, quase idílica, refugiada na alma dos sonhadores; ora barulhenta, exaltada, ameaçadora, no cérebro dos homens de acção. É sobretudo no fim das civilizações, no momento em que um mundo em declínio vai dar lugar a um mundo novo, que ela bruscamente rebenta. Porque, nesse momento, os erros sociais desvendam-se aos olhos dos mais indiferentes, as convenções parecem artificiais, a desigualdade mais não é do que injustiça. Então, esses seres de que falamos, feridos na sua alma verdadeiramente boa, de todos os males que em sonho tantas vezes curaram, apenas têm um desejo: matar o efeito matando a causa, isto é, suprimir o mal suprimindo a sociedade que o engendra. Publicadas em Le Figaro de 25 de Abril de 1892, estas palavras levam-me a pensar que só procurando em harmonia a justiça social nos é possível gerir a utopia. E consola-me sentir o papa Francisco ter insubmissa fé em Deus...e nos homens!
Começo a escrever-te esta, perguntando-me já se nela caberá toda a conversa que, na minha peregrina cabeça, imagino ter contigo. Caminhei, longa e demoradamente, de mãos dadas com o Zola do caso Dreyfus e o Bernanos da guerra de Espanha. Sem preconceitos nem partidos, atento apenas à verdade interior que deve inspirar a honestidade intelectual com que olhamos para os factos e para os confrontos humanos. Lembrei-me muito dessa afirmação do monárquico Bernanos: Há uma burguesia de esquerda e uma burguesia de direita. Não há povo de esquerda nem povo de direita, há só um povo. E logo me ocorreu que esse sopro anima o Pas pleurer, romance de memórias de Lydie Salvayre, prémio Goncourt de 2014, filha de republicanos espanhóis refugiados em França, e que escreveu este livro entrelaçando as recordações de guerra de sua mãe, Montserrat Monclus Arjona, doméstica, com as de Bernanos em Les Grands Cimetières sous la lune... Traduzo-te aqui o resumo dos factos da guerra civil espanhola, que ela faz naquela obra: A deceção do povo espanhol perante as medidas dilatórias tomadas pela jovem República e as vacilantes vontades do seu Presidente,
o denegrir furioso dessa República por uma Igreja insolentemente poderosa, provida de bancos insolentemente poderosos e de empresas insolentemente poderosas,
a associação mafiosa do episcopado com os militares e as classes possidentes, a fim de melhor defender os seus próprios interesses,
o seu santo furor face às apressadas reformas conduzidas pelo governo para estabelecer a laicidade e o casamento civil,
o seu desejo fanático de travar contra essas reformas uma Guerra Santa em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
a raiva desesperada da grande burguesia perante a criação de um imposto progressivo sobre o rendimento, aumentada pelo ódio dos grandes latifundiários perante eventuais confiscos,
a sua aversão feroz ao socialismo e ao seu sulfuroso igualitarismo e o susto com a ideia de que o povo pudesse revoltar-se,
a revolução ardentemente desejada pelas esquerdas radicais desde a violenta repressão pelo governo das greves de 34 na região das Astúrias,
todos estes elementos resultaram na divisão da República una e indivisível em dois campos (cada um deles puxando a si a História para a confiscar em seu proveito): de um lado uma frente dita popular composta das diferentes esquerdas que bem cedo se entrebateram para acabarem por se entredestruírem, e do outro uma frente dita nacional formada pelas direitas coligadas, das mais respeitáveis às mais extremas, surdas à voz de um povo exausto por décadas de miséria, e que recusavam inclinar-se perante a nova república obtida por sufrágio universal.
Há neste texto sumário uma intuição iniciadora dessa interrogação que é, afinal, o sentimento de justiça. Porque, contrariamente ao vulgo, fazer justiça não é dar razão às razões de um vencedor, é procurar - e dever - dar a cada um o seu direito. Quem não entender isso nada poderá compreender do cristianismo. Até o perdão concedido é - no final de contas - o reconhecimento, também, da culpa ou falta ou imperfeição de quem perdoa. Recordando citações de Bernanos, que te traduzi em carta anterior, há um só pecado, e um povo só. Os fins nunca justificam os meios, as eventualidades não nos justificam nem condenam. A estas horas, o papa Francisco, vindo de Cuba, está nos EUA, e aí se confronta com uma direita conservadora (até há quem pense que ele é comunista!), que, curiosamente, sendo sobretudo de raiz fundamentalista protestante e puritana, lembra certas intolerâncias católicas, que se vão repetindo e de que é, com grande sacrifício de vidas humanas, de espírito de justiça e caridade cristã, lamentável exemplo o comportamento da maioria do episcopado espanhol durante a guerra civil. A única sanção do cristão é o amor do humano, dignidade e vida, sem o qual não existe amor de Deus. Não sei, Princesa, se perceberás bem o que te digo, através deste trecho dos Grands Cimetières que aqui transcrevo porque, mutatis mutandis, reflecte o que eu mesmo, quiçá homem de direita, em circunstâncias várias penseissenti:
Por ingénuas que sempre tenham sido as gentes de direita, ou poderoso o instinto que as leva a infalivelmente escolher as causas e os homens desde logo fadados para a impopularidade, talvez hoje me concedam que a guerra de Espanha perdeu o carácter de uma explosão do sentimento nacional ou cristão. Quando, na primavera passada, tentava prepará-los para certas decepções, riram-se-me na cara. Agora, já não se trata de explosão, mas de incêndio. E um incêndio que já dura há dezoito meses começa a merecer o nome de sinistro, não acham? Vi, vivi em Espanha, o período pré-revolucionário. Vivi-o com um punhado de jovens falangistas, cheios de honra e de coragem, cujo programa eu não aprovava inteiramente, mas que era animado, tal como o seu nobre chefe (José-Antonio Primo de Rivera, 1906-1936), porum sentimento violento de justiça social. Afirmo que o desprezo que eles professavam pelo exército republicano e os seus estados-maiores, traidores do seu rei e do seu juramento, igualava a sua justa desconfiança de um clero perito em negociatas e disfarces eleitorais efectuados a coberto da Acción Popular e por interposta pessoa, o incomparável Gil Robles. Perguntar-me-ão "Que aconteceu a esses rapazes?" Meu Deus, vou dizer-vos! Não chegavam a quinhentos em Maiorca, na véspera do pronunciamento. Dois meses depois, eram quinze mil, graças a um recrutamento desavergonhado, organizado pelos militares interessados em destruir o Partido e a sua disciplina. Sob a direcção de um aventureiro italiano chamado Rossi, a Falange tornara-se na polícia auxiliar das Forças Armadas, sistematicamente encarregada das tarefas baixas, enquanto aguardava que os seus chefes fossem executados ou aprisionados pela ditadura, e os seus melhores elementos despojados dos seus uniformes e atirados à tropa. -- Mas, como diz Kipling, isso é outra história. Seja onde for que o general do episcopado espanhol ponha agora o pé, a mandíbula duma caveira fechar-se-á sobre o seu calcanhar, e ele terá de sacudir a bota, para se libertar! Boa sorte para Suas Senhorias!
Para Bernanos, escritor católico, monárquico (toda a vida o foi), catalogado à direita (e oriundo da Action Française), a visão de crimes cometidos em nome de Deus e da Pátria não é moralmente sustentável sem protesto firme e arriscado da sua consciência cristã. Nas ilhas Baleares, onde mora, ele sabe que "os cruzados de Maiorca" nome que dá aos franquistas, vão, pela calada da noite, às casas das famílias a quem roubarão maridos e pais e filhos, para os levar, com prisioneiros feitos nas trincheiras, "como gado até à praia", onde os fuzilam "sem pressa, besta a besta" e, na presença de padres que lançam absolvições in hora mortis, "os amontoam -- gado absolvido ou não -- " e regam com gasolina, para os queimarem. E, com a santa fúria de uma consciência cristã, acrescenta: É bem possível que essa purificação pelo fogo tenha então revestido, em razão da presença dos padres de serviço, um significado litúrgico. Infelizmente, só dois dias depois vi esses homens negros e lustrosos torcidos pelas chamas, e dos quais alguns mostravam na morte poses obscenas, capazes de entristecer as senhoras de Palma e os seus distintos confessores... Bernanos sabia bem -- e disse-o -- que, do lado republicano, se cometiam também muitas barbaridades: sacrificaram-se inocentes, violaram-se freiras, assassinaram-se padres. Mas esse terrorismo não se escondia, expunha-se. Escândalo maior, para ele, enquanto e porque católico, era a pretensa justificação de outro terrorismo, igualmente nojento, perpetrado com a bênção da hierarquia da Igreja espanhola, e que era depois negado ou ocultado pelos seus autores. Mandava a hipocrisia que culpados fossem só os outros...A estatura moral de Bernanos constrói-se pela sua íntima fidelidade à sua fé cristã, que o leva a pôr sempre acima de simpatias e opções ideológicas ou políticas o valor universal da caridade -- que não é uma esmola, mas sim o respeito devido à dignidade de todos e qualquer ser humano. É esse resistente amor a Deus através dos homens que distingue Bernanos do católico Claudel que apoiava o franquismo em tudo, ou do comunista Neruda, adorador de Estaline, que comungava com os sequazes bolcheviques no ódio aos cristãos e também às outras esquerdas espanholas. Disse-te, Princesa, que esta conversa não caberia numa carta. Antes de me despedir, deixa-me todavia dizer-te que Hannah Arendt, na sua análise das origens do totalitarismo, tem um capítulo sobre o caso Dreyfus. Como aperitivo da próxima carta, deixo-te umas citações... Para ela, o caso Dreyfus é muito mais um caso político do que propriamente um processo judicial: Quando Dreyfus morreu, em 1935, a imprensa, por medo, não comentou a questão. Só os jornais de esquerda voltaram a referir-se à inocência de Dreyfus, enquanto os de direita retomaram as acusações de culpa. Ainda hoje, mesmo que em menor escala, o caso Dreyfus divide politicamente a França. Tal como a guerra de Espanha teima em continuar a ser pomo de discórdia entre espanhóis, ela que dramatizou o confronto entre oposições e partidarismos europeus: de nacionalistas e internacionalistas, socialistas e capitalistas, anarquistas e comunistas... Mais ainda do que ter prefigurado a 2ª Grande Guerra, essa em que a aliança táctica entre as potências que, mais tarde, sustentariam os dois blocos opostos da guerra fria derrotou os totalitarismos nazi e fascista que haviam apoiado a rebelião franquista. O diabo é, literalmente, aquele que divide, separa. Por isso mesmo, os representantes da Igreja visível -- sobretudo aqueles que são seus pastores -- não devem esquecer-se de que Deus une, pelo amor. Não persegue nem agride, antes vai em busca e acolhe as ovelhas transviadas. A Igreja não é de esquerda nem de direita, não tem partido ou facção política, deve só procurar promover o diálogo e o respeito mútuo. Mas vamos então aos anunciados passos de Hannah Arendt, que julga ter o prejuízo causado a um só judeu (Dreyfus) em França levantado mais indignação em todo o mundo do que todas as perseguições a judeus alemães uma geração depois. E acrescenta: Os protagonistas do caso pareciam ter saído das páginas de Balzac: de um lado, os generais classistas procurando freneticamente encobrir os do seu grupo e, do outro, o adversário deles, Picquart, com a sua honestidade tranquila, clarividente e algo irónica. Paralelamente, estava a malta indefinida dos parlamentares, cada um deles receando o que o vizinho pudesse saber. O presidente da República, conhecido cliente dos bordéis de Paris; e os juízes que tinham o processo em mãos e funcionavam em função da sua promoção. Logo a seguir, o próprio Dreyfus, um oportunista, gabarola, falando muito da fortuna familiar e de mulheres... ... E que dizer de Zola, cheio de exaltado fervor ético, atitudes patéticas e fúteis, como quando, em vésperas do exílio em Londres, declara ter ouvido a voz de Dreyfus a pedir-lhe esse sacrifício? Pessoalmente, penso que Zola sofreria , talvez, desses arrebatamentos retóricos très XIXème siècle, mas mesmo assim -- quiçá discordando de Bernanos -- respeito e admiro a sua declaração de 21 de Fevereiro de 1898: Dreyfus est innocent, je le jure. J´y engage ma vie, j´y engage mon honneur. Penso que cumpriu. Poderei discordar de coisas que ele disse ou escreveu, sobretudo sei que não teríamos a mesma perspectiva de olhar o mundo, mas nada disso retira ou diminui o respeito que me merece o seu livre pensamento e a sua coragem. Fica para outra carta. Beijo-te a mão
O erro de muitos padres, mais zelosos do que sábios, é suporem a má fé: «Vocês já não acreditam, porque crer vos incomoda.» A quantos padres ouvi falar assim! Não seria mais justo dizer: a pureza não nos é receitada como um castigo, é uma das condições misteriosas mas evidentes - atesta-o a experiência - desse conhecimento sobrenatural de nós mesmos, de nós mesmos em Deus, que se chama fé. A impureza não destrói esse conhecimento, aniquila-lhe a necessidade. Já não acreditamos, porque não desejamos acreditar mais. Já não queremos conhecer-nos. Essa profunda verdade, a nossa, já não nos interessa. E é bonito dizermos que os dogmas que, ontem, obtinham a nossa adesão, continuam presentes no nosso pensamento, que só a razão os afasta, isso que importa? Na realidade, não possuímos mais do que aquilo que desejamos, pois que para o homem não há posse total, absoluta. Já não nos desejamos. Já não desejamos a nossa alegria. Só em Deus nos poderíamos amar, e já não nos amamos. Nem nunca mais nos amaremos, neste ou no outro mundo, eternamente... ... Escrevi isto em grande e plena angústia do coração e dos sentidos. Tumulto de ideias, de imagens, de palavras. A alma cala-se. Cala-se Deus. Silêncio. Traduzo-te estes passos do Journal d´un Curé de Campagne, Princesa, ouvindo ainda as Rosenkrantz Sonaten do Biber. Viajei de Zola a Bernanos, de cura a cura de aldeia, partilhando essa interrogação da nossa solidão sobre o mistério de nós, que fatalmente sempre nos conduz a essa encruzilhada do desejo e do amor... O padre de Bernanos nada tem a ver com o tema polémico e literariamente exploradíssimo do celibato, do conflito entre os deveres do sacerdócio e as forças da natureza, de que trataram tantos romancistas, médicos e fisiologistas, um destes, aliás, o dr. Jean-Ennemonde Dufieux, dando a um livro seu, publicado em 1854, um título que resume bem o fundo da questão: Nature et Virginité: considérations physiologiques sur le célibat religieux. Parece-me ainda que, sendo tão vulgar o assunto, nem sequer fará muito sentido suspeitar ou atribuir plágios de romances ou autores. No badalado cotejo de O Crime do Padre Amaro com La Faute de l´Abbé Mouret, esquece-se quase sempre que, não sendo evidentemente alheio ao pretenso carácter antinatural do celibato, nem à alegada artificialidade e hipocrisia da lei canónica, Zola escreve sobretudo um conto de exaltação da natureza primitiva: o próprio parque dos amores, chamado Paradou, é uma metáfora do Paraíso (Paradis) do livro do Génese, e mesmo o "suicídio" da jovem amante grávida -- que é desespero de causa, por perceber que o regresso do padre ao dever religioso o rouba ao amor dela -- processa-se num quarto fechado, onde a pobrezinha se fechou, rodeada de flores silvestres, cujo perfume inebria e mata... Enquanto que o livro de Eça é apologeticamente anticlerical, e uma crítica feroz de uma sociedade provinciana e beata, onde o pecado tem mais a ver com o egoísmo, a intemperança, a luxúria das pessoas -- ou, ainda, com a sua ganância, carreirismo e falsas aparências -- do que com qualquer desafio às leis determinantes da natureza. A crítica social tem aí a boca do palco, Eça não se demora em descrições de êxtases carnais, como Zola, por exemplo, no relato do advento do desejo de Sérgio, com Albina mergulhado na ternura telúrica, genética, da vegetação do Paradou: Sei que és o meu amor, vens da minha carne, aguardas que te tome nos meus braços, para que nos tornemos num só... Sonhava contigo. Estavas no meu peito e eu dava-te o meu sangue, os meus músculos, os meus ossos. Não sofria. Tiravas-me metade do meu coração, com tanta doçura, que era para mim uma volúpia partilhar-me assim. Procurava o que tinha de melhor, de mais belo, para te lo abandonar. Se tivesses levado tudo, ter-te-ia agradecido... E teria acordado quando saíste de mim. Saíste pelos meus olhos e pela minha boca, bem o senti. Estavas toda quentinha, toda perfumada, tão acariciante, que foi o próprio estremecimento do teu corpo que me ergueu. Sérgio refere-se à recuperação da sua saúde, cuidada por Albina, a quem seu tio Pascal, médico, o confiara, depois do abalo que, na sequência de uma oração mística a Nossa Senhora, o prostrara. Talvez por esse paralelo estabelecido entre a devoção à Virgem, mulher ideal, e a amante, mulher real, Barbey d´Aurevilly, entre outros críticos do romance, tivesse dito: É o naturalismo do animal, posto, sem pudor e sem vergonha, acima do nobre espiritualismo cristão!... Não creio que, neste tempo de coisas baixas, se tenha escrito algo que, no conjunto, nos pormenores e na linguagem, fosse tão baixo como La Faute de l´Abbé Mouret (in Le Constitutionnel, 20 de Abril de 1875).Mas dizia-te eu, Princesa, que o cura do diário de Bernanos respira outro ar, ainda que vivendo neste mundo, entre as gentes. Mesmo se nunca falasse de Deus, de Cristo, de Maria ou de todos os santos, sempre adivinharíamos nele o homem religioso, livre e despojado, humilde, sofredor e sensível, esse que aí está, para servir. Em carta enviada, de Palma de Maiorca, em 6 de Janeiro de 1935, a Robert Vallery-Radot, escreve Bernanos: Comecei um belo velho livro de que, penso eu, vais gostar. Resolvi fazer o diário de um jovem padre, à sua entrada para uma paróquia. Vai buscar o meio dia às catorze horas, desenrascar-se como quatro, fazer projectos miríficos, que falharão naturalmente, deixar-se, mais ou menos, enganar por imbecis, viciosas, ou sacanas, e, quando pensa que tudo está perdido, terá já servido a Deus, na medida exacta em que pensava ter-lhe prestado um mau serviço. A sua ingenuidade terá vencido tudo, e morrerá tranquilamente de cancro. O Journal foi certamente o livro que mais intimamente o seu autor gostou de escrever. Pensossinto, Princesa, que Georges Bernanos conseguiu aí a sua mais profunda meditação sobre o mistério da vida cristã. Em carta a sua irmã, ainda em Janeiro de 1935, confessa: Aliás, o livro que neste momento escrevo compensa-me das minhas penas. Creio que o sobrenatural corre em cheio por ele. É um pouco idiota falar assim do que fazemos, mas parece-me que dou um abanão às almas... ... Vejo erguer-se, a pouco e pouco, à minha frente, um rosto inesquecível, e tudo tento para o pintar com toda a minha fé e todo o meu amor. Que olhar, dia e noite, sobre o meu! Esse padre não vive em obsessão do pecado da carne, nem de qualquer outro individualmente perseguidor, menos ainda no zelo de regulamentos canónicos. Tem sobre o drama da condição humana, como sobre a luta de Jacó com o Anjo, ou sobre a economia do pecado e da graça, o olhar mortificado de Cristo na cruz, a dor que perdoa, regenera e é mãe da alegria. Como a heroína de La Joie, também ele, na hora da sua morte, professará, como Bernanos ele mesmo, essa verdade intimíssima ao coração de Santa Teresinha do Menino Jesus: Tudo é graça! Regista no seu diário o que disse a Chantal, nobre paroquiana revoltada contra o conde seu pai e a sua madrasta: Não passo de um pobre padre, muito indigno e muito infeliz. Mas sei o que é o pecado. Você não sabe. Todos os pecados se assemelham, há um só pecado. Não lhe estou a falar numa língua obscura. Estas verdades estão ao alcance do mais humilde cristão, desde que ele queira vir cá buscá-las. O mundo do pecado faz frente ao mundo da graça, como a imagem reflectida de uma paisagem à beira de uma água escura e profunda. Há uma comunhão dos santos, há também uma comunhão dos pecadores. No ódio que os pecadores têm uns aos outros, no desprezo, eles unem-se, abraçam-se, agregam-se, confundem-se, e um dia não serão, aos olhos do Eterno, mais do que esse lago de lama sempre viscosa sobre que passa e volta a passar em vão a imensa maré do amor divino, o mar de chamas vivas e rugidoras que fecundou o caos. Quem somos nós para julgar o pecado de outrem? Quem julga o pecado, torna-se num só com ele, desposa-o. Quanto a essa mulher que você odeia, você acha que está muito longe dela, mas afinal o seu ódio e o pecado dela não passam de dois rebentos do mesmo ramo. Que importam as vossas zangas? gestos, gritos, nada mais... só vento! A morte, seja como for, em breve vos devolverá à imobilidade, ao silêncio. Que importa isso tudo se, já a partir de agora, vós estais unidos no mal, apanhados na ratoeira do mesmo pecado -- uma mesma carne pecadora -- companheiros -- sim, companheiros! -- companheiros para a eternidade. Já olhámos,Princesa,para outros retratos de padres feitos por Zola.Não te falei de outros ainda, que serão a maioria, por não lhes ter achado densidade espiritual: são exemplos desse cleroque, aos olhos das gentes, sobretudo urbanas, da segunda metade do século XIX, influenciava, na sombra dos confessionários, as consciências femininas, e, na urbanidade dos salões burgueses, a condução da res publica, as distribuições de favores e nomeações. A literatura da época está cheia deles, certamente por haver muitos assim. Também por isso, são em regra enaltecidas as excepções, pese embora o "castigo" que as diferentes novelas frequentemente lhes reserva: eis a figura do justo e do inocente perseguidos. Há ainda aqueles casos de clérigos fanáticos que, insensíveis à fragilidade humana, trovantes condenam os erros e pecados dos outros. Mas não é desses todos que cabe falarmos aqui, em cartas amigas, com alguma intimidade e muita confiança. A nossa conversa não é de análise social nem de crítica de costumes, antes tem a ver com esse companheirismo de todos na condição humana... Chego assim ao padre Pierre Froment, que perde a fé, mas mantém uma piedade muito humana e atenta aos outros. Uma das últimas personagens criadas por Zola, o próprio nome -- Pedro Trigo -- é um anúncio: primeiro papa e pão. Um novo cristianismo? Sou tentado a imaginar que o seu autor, no fim da vida, se entusiasma com o projecto espiritual de um cristianismo laico, sem padres nem igreja. (Estarei a pensar em Tolstoi?). Pierre Froment surge, não só como eixo da trilogia das cidades (Lourdes, Rome, Paris são os títulos dos três romances escritos, sob a referência abrangente de Les Tois Villes, em 1894, 96 e 98, respectivamente) mas será ainda o pai de Mathieu, Luc, Marc e Jean, criados para autores dos "evangelhos" (Les Quatre Évangiles) : Fécondité, Travail, Vérité, este 3º já póstumo (1903), os dois outros publicados em 1899 e 1901, três e um ano antes da morte de Zola. O 4º nem esboçado ficou. Os valores que neles se defendem -- no conturbado período da viragem do século XIX para o XX -- são próprios do humanismo cristão da Igreja Católica: fecundidade da família, trabalho honesto, amor da verdade. Porque terá, então, triunfado tanto afastamento, tanta surdez entre o mundo moderno e a Igreja clerical? Porque terá havido tanto arremesso recíproco de queixas e acusações? Se Bernanos estivesse hoje aqui, conversando comigo, talvez juntos fizéssemos a mesma pergunta: teremos esquecido aquela sublime lição de Jesus de que quem nunca pecou lhe atire a primeira pedra? Só uma Igreja humilde, Princesa, poderá despertar nos outros a memória evangélica... Dou-te a mão.
Quando, sozinho na sua cela, e tendo tempo para amar, ele se ajoelhava na tijoleira, todo o jardim de Maria crescia à sua volta, com altas florações de castidade. O Rosário deixava escorrer entre os seus dedos uma guirlanda de Ave entrecortada de Pater, como guirlanda de brancas rosas misturadas com lírios da Anunciação, flores sangrentas do Calvário, estrelas da Coroação. Avançava a passos lentos, ao longo das sendas perfumadas, parando a cada dezena de Ave, repousando no mistério a que ela correspondia; quedava-se perdido de alegria, de dor, de glória, à medida dos mistérios agrupados em três séries: os gozosos, os dolorosos, os gloriosos. Lenda incomparável, história de Maria, inteira vida humana, com sorrisos, lágrimas e triunfo, que ele revivia de uma ponta à outra, num instante. Primeiro, entrava na alegria, nos cinco mistérios sorridentes, banhados nas serenidades da alba: eram a saudação do anjo, um raio de fecundidade deslizando do céu, trazendo o desfalecimento adorável da união sem mácula; a visita a Isabel, por clara manhã de esperança, na hora em que o fruto das suas entranhas pela primeira vez dava a Maria esse estremecimento que faz empalidecer as mães; o parto num estábulo de Belém, com o longo cortejo de pastores vindo saudar a divina maternidade; o recém nascido levado ao Templo, pelos braços da parturiente, que sorri, lassa ainda, já feliz por oferecer o seu menino à justiça de Deus, aos abraços de Simeão, aos desejos do mundo; finalmente, Jesus crescido, revelando-se perante os doutores, no meio dos quais sua mãe o encontra, satisfeita com ela e consolada. Depois, após essa manhã de tão terna luz, parecia a Sérgio que o céu bruscamente se cobria. Já só andava sobre espinhos, feria os dedos nas contas do Rosário, curvava-se ao pavor dos cinco mistérios de dor: Maria agonizando em seu filho no jardim das Oliveiras, recebendo com ele as chicotadas da flagelação, sentindo na própria fronte o rasgão da coroa de espinhos, carregando o horrível peso da cruz, morrendo a seus pés no Calvário. Essas necessidades do sofrimento, esse atroz martírio duma Rainha adorada, por quem ele teria dado o seu sangue como Jesus, causavam-lhe uma revolta de horror, que dez anos das mesmas orações e dos mesmos exercícios não tinham podido acalmar. Mas as contas continuavam a correr, uma clareira súbita se abria nas trevas da crucifixão, a glória resplandecente dos cinco últimos mistérios rebentava com uma alegria de astro livre. Maria, transfigurada, cantava o aleluia da ressurreição, da vitória sobre a morte, da eternidade da vida; assistia, de mãos estendidas, derrubada de admiração, ao triunfo de seu filho, que se levantava ao céu, por entre nuvens de ouro franjadas de púrpura; ela reunia à sua volta os Apóstolos, saboreando, como no dia da conceição, o braseiro do espírito de amor, descido em chamas ardentes; era por sua vez raptada por um voo de anjos, como arca imaculada arrebatada sobre asas brancas, suavemente deposta no meio do esplendor dos tronos celestes; e aí, numa claridade tão brilhante que apagava o sol, Deus coroava-a com as estrelas do firmamento. A paixão tem uma só palavra. Dizendo, umas atrás das outras, as cento e cinquenta Ave, Sérgio não as repetira uma só vez. Esse murmúrio monótono, essa palavra incessantemente igual que revinha, semelhante ao "Amo-te" dos amantes, ganhava, de cada vez, um significado mais profundo; demorava-se nela, falava infindavelmente com a ajuda de uma única frase latina, conhecia inteiramente Maria, até que, escapando-se-lhe das mãos a última conta do Rosário, se sentiu desfalecer ao pensamento da separação.
Começo, Princesa, esta carta por uma longa tradução de uma das mais sentidas interpretações do Rosário de Nossa Senhora, que jamais li. Só te digo que, ao reler este texto, fui pôr a tocar Die Rosenkrantz Sonaten de Heinrich von Biber, ao violino de John Holloway, acompanhado por Davitt Moroney e o trio Tragicomédia. Estas sonatas são igualmente uma meditação sobre a história cristã da salvação do mundo por Jesus Cristo, Deus incarnado em Maria. A saudação do anjo Gabriel à Virgem (Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum) é o anúncio desse resgate, repetido ao longo da recitação do Rosário e compreendido ao longo da vida da mesma Maria, em Cristo, com Cristo, por Cristo. Mas se te falo agora nisto, é porque o texto que acima traduzi não foi escrito por qualquer Padre ou Doutor da Igreja, nem tampouco por algum cristão devoto, mas por Émile Zola, escritor agnóstico, com obra condenada no Index Librorum Prohibitorum da Santa Sé... Ainda por cima, respiguei-o do romance La Faute de l´Abbé Mouret, em Portugal sobretudo recordado por paralelismo com O Crime do Padre Amaro do nosso Eça de Queiroz. Sérgio, no trecho que aqui destaquei, é precisamente o padre Mouret. Mas em próxima carta conversaremos sobre os dois romances, em que crimes semelhantes ou pecados iguais se verificam, ainda que em distintas circunstâncias, e não sendo exactamente coincidentes as linhas das perspectivas por que são analisados. Hoje, deixa-me só realçar o cuidado com que um romancista laico descreve uma experiência íntima de recitação do Rosário por um padre católico, e até a acuidade com que entende a essência de uma oração repetitiva. Fossem quais fossem as finalidades de Zola -- e a elas iremos em carta onde te falarei dele e de Eça -- , não podemos negar-lhe o mérito de querer saber mais sobre aquilo que descrevia... Nesta carta, Princesa, viajo até ao Saint Dominique, de Bernanos, não só pela simples razão da tradição católica atribuir a este santo do século XIII, mendicante e pregador, a vulgarização da recitação do Angelus (ou da avé Maria) sobre a meditação dos mistérios da salvação cristã. Aliás, os frades dominicanos ou pregadores, por estudiosos e universitários que fossem, sempre usaram, no hábito que os vestia e identificava, um rosário de contas pendurado no cinto... Mas também me ocorreu -- nem sei bem porquê -- que Bernanos talvez tivesse gostado dessa meditação de Zola sobre o Rosário, apesar de não ser grande admirador do "veneziano". Quando escreve o Saint Dominique, ele ainda não rompeu com Charles Maurras, e está mesmo confuso com a condenação da Action Française, pelo arcebispo de Bordéus e, logo depois, pelo próprio Vaticano, porque pensa que talvez os seus apoiantes católicos tenham culpas na descristianização dos valores do movimento. Naquela breve biografia do fundador da Ordem dos Pregadores, Bernanos não faz trabalho histórico, antes procura penetrar o espírito de um missionário que quis entender o mundo do seu tempo e defendeu a pobreza e o despojamento, mas sempre insistiu na função primordial do estudo e do debate, não só no combate às heresias -- que não se devia fazer pela espada -- mas na construção intelectual da renascença europeia que se anunciava no século XIII. É essa capacidade evangélica de entendimento e abertura ao mundo que impressionou o maurrasiano em debate íntimo sobre a sua própria fidelidade à causa política a que aderira e à que devia à Igreja a que pertencia. Finalmente, será a profunda fé nos valores cristãos do evangelho que o levará a romper com a Action Française, em 1932, tal como o fortalecerá na sua corajosa e frontal crítica do incondicional apoio da hierarquia espanhola à causa franquista, anos logo depois.
Isto que te escrevo é, singelamente, uma carta de confidências, nada tem de elaborado ou sistemático. E pensossinto que, quanto mais amigo se for, mais e melhor se lê nas entrelinhas do que fala ou escreve. Sobre essa capacidade evangélica de superação de nós próprios, da nossa circunstância e dos nossos pertences, diz-me muito este passo do Saint Dominique, que aqui traduzo: Eis que tudo é fresco, tudo é puro, tudo é novo, tudo se esforça para o alto, como a universal ascensão da alba. É a ordem dos Pregadores , essa grande avidez da ciência e ainda esse grande desejo de instaurá-la em Cristo. É a ordem dos Pregadores, essa impaciência sagrada que, na pequena cela, aos pés do Crucifixo, leva Domingos a rugir como um leão: a gemitu cordis sui rugitus solebat emittere. É a ordem dos Pregadores, esse grito do apóstolo que, em tempos de fome, vende o que de mais querido tem: os seus livros: «Como podeis estudar por peles mortas quando os vossos irmãos morrem de fome?» É, finalmente, a ordem dos Pregadores, a sublime inquietação do subprior obscuro que, em plena floração da vida monástica, em vão procura uma regra à sua medida e não a encontra. Tão semelhante aos outros homens -- e, aos olhos de Deus e dos seus anjos, novo, propositadamente criado, único! Por muito meticuloso que tivesse sido na apreensão e análise de doutrinas, ritos, liturgias e comportamentos católicos, Zola nunca iria dar o passo que o levaria a viver, na alma, a exigência de uma fé cristã partilhada. Ao que lhe parecia hipocrisia -- pela contradição que o próprio funcionamento clerical opunha ao espírito evangélico -- foi ele opondo a frieza insensível de um racionalismo naturalista. Mas porque procederia assim? Por maldade? Ou só por obediência à lógica determinista dos conceitos e métodos que perfilhava? Maldade não seria, há muitos exemplos da sua propensão à justiça, à defesa dos desamparados... Quanto ao seu cientismo ou positivismo, valha o que valesse, é natural que a ele se apegasse, no seio de uma sociedade que se organizava na protecção dos possidentes e poderosos, e onde a hierarquia católica ou a "Igreja" clerical os apoiava ou junto deles se refugiava. Haveria, sim, uma resposta às legítimas interpelações de Zola: e se quiseres, Princesa, ler Bernanos -- que, repito, não era seu coevo nem admirador - de fio a pavio, talvez entendas o que quero aqui dizer: em S. Domingos de Gusmão, no cura de aldeia, como na heroína de La Joie, a graça que cada um recebe nada tem a ver com qualquer imposição aos outros, qualquer exercício de poderes deste mundo, mas é, tão simplesmente, a humildade com que nos interrogamos sobre o amor de Deus por todos.
Será por ter lido aquele trecho da epístola de São Tiago ( A religião pura e sem mancha, aos olhos de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo ), que me ocorreu este passeio com Zola e Bernanos? Ou, por estranho que pareça, mas quiçá possas sentir ao longo destas minhas cartas, como foi possível eu caminhar de mãos dadas - e sem saber a quem dava a esquerda ou a direita - com dois grandes escritores, bem diferentes, dos tais que fui relendo desde a minha juventude, sendo um, além de arauto do naturalismo literário, um republicano laico, corajosamente envolvido em causas políticas de sua convicção, defensor do capitão Dreyfus contra a conspiração antijudaica que o condenara, e, o outro, católico conservador, que foi sequaz de Charles Maurras e admirador desse líder do antissemitismo francês, Edouard Adolphe Drumont que, no seu jornal La Libre Parole, foi acusador de Dreyfus? Zola viveu entre nós de 1840 a 1902, o seu libelo J´Accuse, em defesa do militar judo-francês, foi publicado no Aurore de 13 de Janeiro de 1898, oito anos antes da reabilitação judicial e reintegração de Dreyfus no exército francês, em 1906. Bernanos nasceu em 1888 e morreu em 1948, trinta e cinco anos depois de ter assinado, no jornal integralista L´Avant-Garde de Normandie, um artigo intitulado Zola ou l´Idéal, no qual, ainda que menosprezando o romancista, a quem, aliás, se refere como ao "Veneziano" (designação que os nacionalistas franceses, na senda de Barrès, utilizavam para sugerir que, sendo de ascendência transalpina, Zola não poderia ser um autêntico patriota francês), fala de uma homenagem que, ao mesmo escritor republicano, membros da juventude laica tinham querido prestar em Paris: Podemos rir-nos desses jovens devotos que, no domingo, no Grand Palais, procuravam um Deus: concedo que são estúpidos, mas mostram fervor: procuram, fora de si mesmos, um ideal a servir, e um mestre que o incarne... Reconhece-se aí a vocação -- e o respeito dela nos outros -- do homem que se supera por esse olhar acima ou além dele. Ainda que, quiçá por maior afinidade espiritual, eu possa preferir Bernanos a Zola, em ambos admiro o amor à verdade, a coragem, ou ousadia não convencional, na procura da justiça -- precisamente pela atenção aos injustiçados, que em Bernanos profundamente se identifica com essa revolta que é a compaixão de Cristo. Monárquico, aproximar-se-á da Action Française, como que por nostalgia da ordem histórica que construiu a França; católico, não romperá com esse movimento, nem com Charles Maurras, quando o mesmo é condenado pela Igreja, em 1926, mas fá-lo-á depois, por considerar que o nacionalismo integralista deste e o seu crescente apoio aos fascismos europeus violam o espírito tradicional do próprio pacto monárquico. Confessará : Não foi o pensamento do Sr. Ch. Maurras que me ligou à Monarquia. Eu nunca fui republicano. Aliás, muito antes dessa ruptura, ocorrida em Maio de 1932, Bernanos tivera de comparecer perante o "conselho de guerra" da Action Française, por ter apoiado, independentemente, uma tentativa de restauração da monarquia em Portugal... em 1912!
Tal independência deve-se à sua profunda fidelidade aos superiores valores da sua fé cristã, bem como à sua Igreja católica e à monarquia histórica, em cujas tradições ele foi sempre inspirando o seu humanismo. Só assim se explica também a sua admiração por Édouard Drumont, que ele tanto cita no título III (Au regime de la viande crue) do seu contestatário La Grande Peur des bien-pensants, onde encontramos os primeiros fundamentos de Les Grands Cimetières sous la lune, obra em que Bernanos - que, de início, simpatizara com o movimento nacionalista espanhol de Primo de Rivera, e até tinha um filho (Yves) na Falange - se insurge contra as repressões perpetradas pelas forças falangistas, designadamente a partir do esmagamento, em Outubro de 1934, pela guardia civil e os mouros do general Lopez Ochoa, da insurreição popular e comuna das Astúrias. Aí, chegará mesmo a escrever, com atrevida, violenta, ironia: Excelências, Vossas Senhorias definiram perfeitamente as condições da Ordem Cristã. E mesmo ao ler-vos, compreendemos muito bem que a pobre gente se torne comunista. Tal mensagem dirigia-se à hierarquia da Igreja espanhola - que ia abençoando e absolvendo todas as campanhas e represálias anti bolchevistas e anarquistas (incluindo as que, pela sua desumanidade vitimavam inocentes) - era um grito sentido de revolta de um coração acima de tudo cristão de verdade.. Pelas mesmas razões, seu filho Yves se desilude da falange e a abandonará. Mas Bernanos, já antes, naquele título III de La Grande Peur estabelecera um paralelo com a Comuna de Paris (1871), por onde andou, observando e escandalizando-se, aquele antissemita da direita dura que foi Drumont, para quem, aliás, a grande beneficiária da "Revolução" fora a nova burguesia que, depois de espoliar dos seus bens a Igreja e a nobreza histórica, explorava e reprimia a plebe. Vejamos alguns dos seus textos, transcritos por Bernanos: Não foi a Burguesia que fez passar, para cima da colectividade, todos os encargos que dantes incidiam sobre as propriedades que ela adquirira por alguns papeis amarrotados? A remuneração do clero, a assistência pública, a instrução primária, todos os serviços que outrora eram pagos pelas propriedades vendidas durante a Revolução recaíam sobre a maioria, e os compradores de bens nacionais ficavam com os domínios, enquanto o Estado tomava para si as obrigações, isto é, as punha às costas de todos os cidadãos... ...Deus disse ao homem: «Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto». Não lhe disse: «Ganharás pelo teu trabalho, não só o pão, mas os prazeres, os deboches, o luxo, os carros, as equipagens de caça dos Schneider, dos Halphen, dos Menier». Disse ao homem: «Transpirarás» -- o que, afinal, é suportável, mas não lhe disse: «Viverás fechado numa atmosfera mortífera, esgotarás as forças do teu corpo, esvaziarás as entranhas e queimarás o sangue para produzir açúcar ou algodão». E Drumont já denuncia a obsessão da produtividade, esse nosso conhecido vício de considerar o homem como sendo, sobretudo, um factor de produção. A nossa boa e santa Madre Igreja, encarregada por Nosso Senhor Jesus Cristo de ser uma providência visível na terra e de organizar tudo pelo melhor, tinha ainda, enquanto pôde, suavizado na prática a execução da lei de Deus. Meiga condutora das almas, e simultaneamente governanta vigilante das coisas temporais, nunca teria permitido que o trabalho ganhasse o carácter que hoje lhe vemos. Só procurava ocasiões para dar férias e feriados; primeiro, tinha os seus cinquenta e dois domingos, depois os dias santos, as romarias. Íamos ao túmulo de S. Germano, S. Lopo, Sto. Humberto, conforme a região. Bebíamos ao altar o vinho de S. Remígio, que torna as mulheres fecundas, e, como ainda hoje se faz no Auvergne, dançava-se na estalagem ou no prado, depois da romaria. O marido, de regresso a casa, entretinha-se honestamente com a mulher e fazia-lhe filhos lindos. O desenvolvimento da nova burguesia pós revolucionária, oportunista e endinheirável, industrial, banqueira e camaleónica, é assunto da grande literatura francesa do século XIX, de Balzac a Zola, passando por Flaubert e outros. Na sucessão da Revolução de 1789 e do terror, inscreveram-se repúblicas, impérios e restaurações monárquicas, sobre um fundo de profundas mutações sociais e demográficas, de afrontamentos ideológicos, políticos e outros: conservadores e contestatários, monárquicos e republicanos, católicos e anticlericais, religiosos e maçons, agnósticos ou ateus, etc.. Foi o século de Proudhon, Marx, S. Vicente de Paula, Pio IX (Syllabus) e Leão XIII (Rerum Novarum), Bismarck e Garibaldi, da revolução industrial e da fé científica, da agonia do antigo regime, da desarmonia do campo e da cidade... A saga dos Rougon-Macquart, do Zola, reflecte isso tudo pela perspectiva do naturalismo, pela óptica da hereditariedade fisiológica e pelo darwinismo social. Mas tem passos de extrema ternura por pessoas humanas e de sentido protesto contra o seu desamparo. Já nos seus esboçados Portraits de prêtres, o escritor -- que o Vaticano recusou receber, mesmo com Leão XIII -- manifesta como que saudade da figura do padre, pastor bondoso e bem intencionado, em que ele já não acredita, por considerar que as atribulações sociais e a Igreja aliada aos grandes do mundo a condenaram a desaparecer. Hoje em dia, como sabes, Princesa, muitos, nessa mesma Igreja, reconhecem os benefícios que para ela advieram da sua separação do Estado, e vão paulatinamente celebrando as bem-aventuranças, o abraço aos desamparados, esse supremo valor da compaixão com Cristo, que não é de direita, nem de esquerda. É, deve ser sempre conservador no respeito da dignidade humana, sempre progressista no esforço de o incarnar no modo do tempo. Mas deixa-me terminar esta primeira carta do meu passeio que te conto, com os tais retratos de padres. Em Zola, o padre de Villeneuve, nascido em família da velha nobreza provinciana e arruinada, vive em Paris, num subúrbio proletário, em solidão e pobreza. Dá aos mais necessitados aquilo que tem, chega a ceder, a um casal zaragateiro, o seu relógio, para que o ponham no prego. Será então acusado de assédio sexual ou de hipócrita e interesseira intromissão "missionária" na vida dos pobres do bairro. A hierarquia não o apoia, censura-o. Ele apela à conversão do povo miúdo e este ridiculariza-o. O breve conto termina assim: Sente então que o povo das cidades escapa completamente à Igreja. Está periclitante no seu sonho de despertar a fé da multidão e de tornar essa fé na base da sociedade moderna. Meu Deus, terão chegado tempos novos? ter-se-á de procurar o que é verdadeiro noutro lado, já não no dogma católico tal como até hoje pretenderam pô-lo? Crescem as suas dúvidas,, torna-se mais furioso o seu combate interior. Está no cimo da ribanceira por onde rebolam padres apaixonados e inteligentes, nos quais desperta o livre pensamento e que são arrancados à Igreja, sem que se façam soldados úteis do progresso. Ficam a sangrar, amachucados, devoram-se a si mesmos. Noutro conto, outro padre, o cura de Villeverte, já muito velhinho, insiste e consegue, à força de teimosia, ser recebido pelo seu bispo que, concentrado nas possibilidades de vôos mais altos da sua carreira eclesiástica (e política), mal o atende. E, todavia, aquele ancião caminhou até lá seis léguas, a pé, para que lhe fossem concedidas as ajudas indispensáveis à reparação da sua igreja aldeã, roída pelos anos e as tempestades. Diz ao bispo : Monsenhor, não o peço para mim, mas para Deus... E recebe esta resposta: Já lhe disse que não posso fazer nada! Deixe-me sossegado, não vê que estou atarefado? Só me resta, nesta primeira carta, e já que te trouxe retratos de padres, traduzir-te o último passo do Diário de um cura de aldeia do Bernanos: Odiarmo-nos é mais fácil do que pensamos. A graça é esquecermo-nos. Mas se todo o orgulho em nós tivesse morrido, a graça das graças seria amarmo-nos humildemente a nós mesmos, como qualquer dos membros sofredores de Jesus Cristo. Imenso é o mistério da condição humana. Dou-te a mão