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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Éric Rohmer é incapaz de trabalhar sobre o eterno.


No texto Architecture d’Apocalypse, que Éric Rohmer escreveu para a revista Cahiers du cinéma, em 1955, lê-se que a arquitetura (ao contrário da pintura, da música e da literatura) não pode nunca deixar de responder ao seu destino principal e às necessidades que lhe dão origem - servir e proteger - em todos os lugares e para sempre: “Elle est bien un art, toutefois, puis qu’elle n’a pas oublié non plus sa prétention à satisfaire notre amour du beau.” (Rohmer 2010, 70)


As obras que a arquitetura produz são, na sua génese, muito diferentes daquelas produzidas pelo pintor, pelo poeta ou pelo músico. O pintor, o poeta e o músico produzem como que um espelho do mundo, tão distorcido quanto se quer. As produções concebidas pelo arquiteto fazem parte integrante do próprio mundo e estão entre todas as outras coisas. O arquiteto, aos olhos de Rohmer, não refaz a natureza, mas enriquece-a com uma nova ordem equilibrada e simples, com novos elementos belos e úteis e também com um renovado olhar: “Par œuvre architecturale, j’entends, non pas le monument «en soi», offert dans un écrin à l’appétit du touriste, mais tout l’ensemble des «arts décoratifs», toute la masse des objets usuels, dans la mesure où ils se flattent de ressortir à l’esthétique. Ainsi la carrosserie d’une automobile, le tracé d’une rue entrent bien plus sous ma rubrique que telle colonne commémorative.” (Rohmer 2010, 71)


O cinema, para Rohmer, também constrói a sua ficção com a própria realidade. É uma nova organização do que já existe e promove um tipo de contemplação sem nostalgia, nem qualquer tipo de posse - apesar de alterar a nossa relação com a natureza, porque o ato de fotografar ou de filmar altera certamente proporções e distorce a escala.


Para Rohmer, as grandes e intermináveis planícies, as cadeias montanhosas e o infinito do mar só produzem em nós todo o seu efeito se houver alguma adição humana. Por isso, para Rohmer, a perfeita harmonia está na simultaneidade e na coincidência da natureza com o trabalho humano. Essa harmonia imperfeita é a verdadeira porta de entrada para a compreensão da autêntica ordem divina. A genuína arquitetura também manifesta em si o desejo de encontrar o eterno, o divino e o intemporal através da sua incompletude e da sua falha. A visão arquitetónica da vida é uma visão para sempre imperfeita, provisória e temporal.


Rohmer pensa que a vida perfeita e completa não é tema para nenhuma narrativa. O infortúnio e o tédio, esse sim deve ser a matéria primeira da arte, deve ser a sua principal substância.


Rohmer escreve que uma grande esperança nasceu com o advento da arquitetura moderna - a esperança por um mundo novo feito na extensão do nosso prazer e da nossa sede pela liberdade. Mas Rohmer considera que o arquiteto que começa do ‘zero’ e que que rompe com todas as tradições, se esquece que todas as formas e motivos que nos rodeiam foram moldados por um longo trabalho de várias gerações e por muitos anos de uso, inspirados também pelos lugares que nos circundam. Os novos materiais permitem sim mais e novas possibilidades mas as novas criações da ciência e da tecnologia pertencem a uma espécie diferente daquela a que pertencem os produtos que vêm da terra. As novas criações podem tornar-se em criações monstruosas e por isso cabe-nos a nós amaciar, aclimatar e moldar as formas à imagem daquilo que nos rodeia. Para Rohmer, a verdadeira forma é sempre orgânica e é sempre conformada pela natureza.


“Être modernes: oui. Encore faut-il que nos constructions actuelles fassent bon ménage avec les anciennes. Être modernes: bien sûr. Mais ce goût que nos contemporains éprouvent pour le passé, n’est-il pas un fait spécifiquement moderne?” (Rohmer 2010, 77)


Ser moderno, para Rohmer, passa por abraçar a tecnologia, mas passa também, certamente por olhar para o passado e aprender com aquilo que está para trás de nós. Rohmer chega mesmo a dizer que se o nosso amor pelo passado terminasse, quantas fábricas fechariam as portas e quantos hotéis estariam à espera em vão por turistas! Naturalmente, em todos nós existe uma curiosidade pela coisa antiga e pela história - talvez por uma qualquer aversão à esterilidade ou talvez como prova da nossa incapacidade em estar completamente satisfeito com o nosso próprio tempo.


Rohmer acredita que o mal dos arquitetos modernos talvez assente num grande equívoco que alguns filósofos defendem, ao afirmarem que a ordem é o princípio básico para que o belo se estabeleça - e essa ordem a que se referem está sempre relacionada com uniformidade e não com diversidade. A natureza, sem dúvida, ensina-nos que, pelo contrário, a ordem está na variedade e não na monotonia. Rohmer não defende como antídoto o culto desesperado pela diferença. Rohmer defende como solução a norma clássica. Na sua opinião a regra clássica é a única capaz de suportar a particularidade, a exceção e o individual.


Foi através do amor pelo cinema que Rohmer chegou ao seu interesse pela arquitetura e pelo mundo que o rodeia. É da própria vida e da natureza crua que o cinema deve ser composto e por isso só o ato de filmar, entre todas as artes, deve ser capaz de ser o verdadeiro reflexo do seu próprio tempo.


Rohmer escreve que infelizmente a nossa admiração pela arte depende de uma visão e de uma crença desmedida de que o espírito humano terá um progresso ilimitado rumo à perfeição infinita. Rohmer é incapaz de trabalhar sobre o eterno. Rohmer prefere perder-se na visão de um mundo finito e incompleto no tempo e no espaço, um mundo onde cada particularidade conta e contribui para o funcionamento de um conjunto, de um ciclo.


Nada é mais pobre do que a ideia de repetição perpétua ou a ideia de uma pretensa perfeição encontrada ou ainda a ideia do constante e do propositadamente diferente. Rohmer acredita ser muito mais emocionante a finitude das nossas criações ao serem constantemente incompletas e superadas pelas próximas. Rohmer finalmente acredita que não é impossível ser clássico e moderno em simultâneo - ao amar-se o seu próprio tempo abre-se sempre a possibilidade de unir o passado e o presente através do espaço.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Os filmes de Éric Rohmer são mapas cinematográficos.

 

O texto Mapping Rohmer: Cinematic Cartography in Post-War Paris de Richard Misek (Misek 2012, 53-67) assegura que nos filmes de Éric Rohmer, a cidade, é o meio por excelência, que promove o ser humano como um ser que anda no meio de outras pessoas.

É através de Richard Misek que se descobre que em 13 dos 25 filmes de Rohmer, feitos entre os anos 1960 e os anos 2000, há personagens que se deslocam a pé em Paris, de comboio, e ocasionalmente de carro. Os filmes de Rohmer mapeiam a cidade de Paris e assim se concretizam movimentos a várias velocidades, em rede, entre ruas e entre transportes. O espaço urbano é delineado pelos movimentos geograficamente precisos das personagens. E Misek revela que Rohmer chega mesmo a afirmar que um filme deve evidenciar uma relação directa do ser humano com o espaço que habita.

Para Misek, os filmes de Rohmer podem assim ser considerados mapas cinematográficos. O cinema de Rohmer é centrado nos actores com movimentos mínimos da câmara. Os actores ocupam pontos específicos no mapa da cidade e/ou deslocam-se de um ponto para outro. Rohmer filma movimentos usando enquadramentos amplos e estáticos. A câmara de Rohmer só se movimenta para seguir os passos das personagens. Não é a câmara que determina as linhas na cidade – são os actores que o fazem. Câmara, pessoa e espaço formam as ferramentas básicas do projecto cartográfico de Rohmer.

Rohmer não reconstrói o espaço urbano e nem amplia o que é excepcional. Rohmer segue as suas personagens que se movimentam ao longo de ruas, que se deslocam de comboio, que se demoram nos cafés, nos restaurantes, em praças e em parques. Rohmer está sempre topograficamente correcto e não há evasões inexplicáveis pelo espaço da cidade. Segundo Misek, todos os filmes de Paris apresentam continuidade topográfica. Em cada filme, cada etapa da jornada das personagens pode ser transcrita para um mapa. Nos filmes de Rohmer temos uma percepção de Paris tal como entendida e vivenciada pelos parisienses.

Rohmer revela os caminhos das personagens pelas ruas de Paris - e estes fazem parte de longas linhas de movimento que se estendem até aos subúrbios, através dos transportes. Essas linhas de movimento mais longas e menos vagarosas são motivadas economicamente– as personagens deslocam-se para irem para o trabalho. Os movimentos espaciais das personagens pela cidade estão ligados às trajectórias narrativas dos filmes. À medida que as personagens se movem no espaço ligam-se a outras personagens – sobretudo nas ruas, nos parques, nos cafés, nos restaurantes, nos transportes. Sempre que a narrativa exige, as representações cinematográficas do espaço divergem na fidelidade geográfica. Por exemplo, as deslocações entre os subúrbios e a cidade são condensados porque dizem respeito a pouca interacção social. Rohmer dá sobretudo mais importância às deslocações das personagens no centro da cidade, porque é aí que acontecem as conexões sociais. O instinto de Rohmer é de uma forte lógica geográfica, porém a correspondência exacta entre a experiência cinematográfica e a o espaço físico nem sempre contribui para a clarificação de uma narrativa.

Por isso, segundo Misek, a aproximação de Rohmer ao espaço urbano, em movimento, equilibra as tensões que existem entre documentação e reconfiguração, simplicidade e complexidade, rapidez e demora, mapa e caminhada, tridimensionalidade e bidimensionalidade – porque na verdade é assim que o ser humano se relaciona com o espaço – quando se percorrem as ruas de uma cidade nunca a totalidade é apercebida. A leitura de Misek explica que os filmes de Rohmer revelam a importância da cidade (Paris) como espaço de encontro, sublinhando que é possível mapear todos os espaços percorridos pelas personagens nos seus filmes – como acontece, por exemplo, no filme La Femme de l’Aviateur (1980). Para Misek, Paris é a cidade por excelência de Rohmer, é o centro de tudo, e é apresentada através de uma rede complexa de pontos e linhas, algumas geograficamente precisas e outras mais simplificadas.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

O cinema e a arquitetura.


“Les productions de l’architecte font au contraire partie intégrante du monde même, ce sont des choses parmi les choses, dont l’ambition n’est pas de refaire la nature, mais l’enrichir d’acquisitions nouvelles (...) Par œuvre architecturale, j’entends, non pas le monument «en soi», offert dans un écrin à l’appétit du touriste, mais tout l’ensemble des «arts décoratifs», toute la masse des objets usuels, dans la mesure où ils se flattent de ressortir à l’esthétique." (Rohmer 2010, 906-7)


A propósito da intrínseca relação do cinema com a realidade, Éric Rohmer diz que no mundo atual vive-se rodeado de uma paisagem semi-artificial - não existem espaços intocados. Por isso, na sua opinião, a arquitetura faz naturalmente parte da realidade do mundo - existe desde sempre e em todo o lado - é mais uma coisa entre muitas outras coisas.


Rohmer acredita que o cinema e a arquitetura podem contribuir para ordenar a paisagem ao detalhe de modo a contribuir para o máximo deleite do olhar.


A arquitetura e o cinema proporcionam algo diferente de uma atração impensada perante uma paisagem, porque se afirmam sempre na ordem subjetiva.


O cinema e a arquitetura não pretendem transcender a natureza, querem sim acentuar a beleza do maravilhoso mundo físico.


As vastas planícies, as montanhas e o infinito do mar nunca produzem um efeito total sobre nós - a não ser que seja evidente a adição humana. O sentimento de perfeita harmonia entre a natureza e a forma construída pelo ser humano é talvez a única e a melhor porta de entrada para a compreensão da ordem divina. (Rohmer 2010, 935)


Luís Urbano, no texto ‘Discurso Direto’ (em Histórias Simples. Textos sobre Arquitetura e Cinema. Rutura Silenciosa, 2013) escreve que o cinema permite ver a arquitetura de uma forma semelhante àquela que experimentamos quando percecionamos o espaço, e que se relaciona com o movimento. Urbano explica que a nossa perceção da arquitetura não é uma coisa inerte. A arquitetura é sim entendida por cortes (montamos a arquitetura, na nossa cabeça, por partes) e através do som.


Em News from Home de Chantal Akerman (1977) o som de Nova Iorque faz-nos pertencer aquele lugar - não muitas vezes, em cinema, se ouve o verdadeiro som das cidades, (às vezes ensurdecedor) - e sobrepõem-se até às palavras das cartas que estão a ser lidas.


A arquitetura real, construída e visível, é essa que interessa ao cinema - porque cada pequena coisa concreta se deve destacar e deve ter a capacidade de evocar o todo. O cinema também se vai construindo através de cada bocado da arquitetura.


“Um espaço interior
criei
nestes poemas
onde estalam os móveis
e os sentidos
onde as ideias
a meia-luz
respiram
e a vida
as imagens
não se refletem
só nos vidros.”

António Reis em Poemas Quotidianos (Tinta da China, 2017)


Para Luís Urbano, o cinema e a arquitetura têm a capacidade de juntar coisas diferentes, de maneira a criar um significado comum ou um novo significado. A relação entre a arquitetura e o cinema só faz sentido pelo meio da metáfora. Os cineastas têm a capacidade de contar uma história através da arquitetura e têm o poder de controlar completamente tudo o que se passa nela - a maneira como entra a luz e o modo como o espaço é ocupado. Os arquitetos não têm essa capacidade de controlo total, por mais que queiram e ambicionem.


A arquitetura conta uma história através daquilo que representa (transporta iconografias, simbologias, identidades, tipologias, modos próprios de construção). Porém a grande qualidade da arquitetura, em relação ao cinema, na opinião de Luís Urbano, é a capacidade de permitir que todas as histórias aconteçam no seu interior. O cinema também conta uma história e mostra uma realidade, mas ao mostrá-la em partes pode atribui significados diferentes a essa realidade e até pode tornar visível e evidente uma realidade que não se vê.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Cinema - subjetividade e transcendência


"Objectivity would be to record what’s going on in the street and even then you wouldn’t see everything.", Agnès Varda, 1962 (Kline 2014, 5)


Em Le Celluloïd et Le Marbre (1965) de Éric Rohmer, o pintor Victor Vasarely afirma que toda a ação que leva à entropia e que caminha para a não informação, pertence à desordem, e tudo o que é construtivo em método e em objetivo pertence à ordem. Por isso, na sua opinião, pode ordenar-se a desordem da natureza no cinema e assim propor uma obra de arte totalmente válida e perfeitamente organizada. Vasarely acredita que o cinema é assim uma organização do real que consegue juntar valores extremamente distintos - valores plásticos, cénicos, sonoros, mas também musicais, cinéticos e rítmicos. O cinema é uma obra totalmente aberta sobre o mundo.


Já o escultor César Baldaccini explica que a cultura não se espalha só através dos livros, mas também através das imagens e o cinema permite em grande medida que isso seja possível. Para este escultor, o cinema é deste modo, um meio, é um instrumento que permite materializar uma forma de olhar, de selecionar, de reinventar e de mostrar o que não é visível para muitos. O cinema é muito real, e diz respeito à vida do dia a dia e por isso pertence a todos.


De facto, no texto Architecture d’ Apocalypse (1955) Éric Rohmer escreve que o cinema constrói a sua ficção com o real. Na sua opinião, o cineasta é assim um demiurgo, é alguém que encontra um princípio que ordena elementos preexistentes. O cinema é assim uma espécie de criação que acontece em segundo grau - acontece não através do contacto primeiro com a matéria (como acontece com o pintor). Para Rohmer o cineasta tem em mãos uma tarefa paradoxal, que é a de construir a maior verdade através do mais poderoso efeito da mentira.


Agnès Varda em entrevista a Pierre Uytterhoeven, Agnès Varda from 5 to 7 (1962), também explica que a pura objetividade não existe em cinema: “Objectivity would consist in a series of general uncontrolled shots without any editing” (Kline 2014, 5). Objetividade em cinema implica sempre uma forma específica de subjetividade.


Joaquim Sapinho em entrevista a Paula Moura Pinheiro (Câmara Clara, RTP2, 11.11.2012) afirma que ao fazer cinema a realidade sobrepõe-se sempre à imaginação - é o espaço e as evidências do espaço que criam uma história. O cineasta é a testemunha do que já está construído. A natureza é a mediadora entre o ser humano e o divino. A natureza é a própria manifestação divina. Para Sapinho, o filme é um trabalho realmente documental. É a articulação de documentos da realidade no sentido de criar perspetivas e ângulos sobre aquilo que se está a testemunhar, de modo a serem reveladores de uma perturbação e de uma perplexidade. O principal problema do cinema está em filmar aquilo que não se vê, o interior de algo não se pode filmar diretamente. Sapinho diz que ao cinema interessa só filmar o invisível. E a realidade é uma manifestação absoluta do invisível, é a única coisa que se sabe acerca do que não aparece m. Por isso o transcendente não está no nada, no silêncio, no vazio, no puro e no limpo mas sim em tudo, no cheio, no barulho, no movimento constante, em toda a vida concreta. Aquilo que aparece, aquilo que se manifesta e se vê é já o transcendente. O ato de filmar é uma constatação dessa transcendência. A câmara é o meio por excelência que permite aceder ao invisível. Mas o mais paradoxal é que a câmara vê exatamente o que se está a ver, é um ato aparentemente inútil, a não ser que seja usada para constatar o que existe, para fazer sentir que esta vida é a única vida que há e que esta vida é tudo.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Entretiens sur le Béton e o equilíbrio ideal entre o artificial e o natural.


Entretiens sur le Béton
de Éric Rohmer (1969), é composto por entrevistas, ao arquitecto Claude Parent e ao teórico urbanista Paul Virilio, conduzidas por Louis Paul Letonturier e François Loyer, onde se expõem as possibilidades expressivas do betão armado - de modo a contrapor a generalizada hostilidade pública em relação à arquitetura brutalista.


Através desta entrevista, Rohmer contribui para o debate sobre modernização da arquitetura, que sucedeu à Segunda Guerra Mundial e que mobilizou cidadãos, os arquitetos e urbanistas. (Schmid 2015, 10).


Entretiens sur le Béton
apresenta uma reflexão pertinente sobre as novíssimas formas do betão - o betão foi o material que, por excelência, possibilitou o uso das formas puras, na emergência do modernismo. O arquiteto Claude Parent e o filósofo Paul Virilio, são assim chamados e entrevistados, para com a sua experiência, explicarem as qualidades plásticas e excecionais do betão e tentarem por isso afirmarem poesia nas grandes novas formas do betão à vista.


Rohmer, com este programa, proclama fé nos novos materiais, através do testemunho de Parent e Virilio. A beleza difícil dos novos materiais (que apareceram após Revolução industrial) endereçados e apresentados no documentário Métamorphoses du Paysage (1964) é aqui esquecida, porque nesta entrevista, é explorada a potencialidade estética e estrutural do betão. (Schmid 2015, 11)


A entrevista tenta assim resgatar beleza a um material, normalmente associado a formas construídas assépticas e sem alma. Segundo Parent e Virilio, o betão representa uma nova maneira de fazer arquitetura, porque unifica e permite a continuidade do espaço - ao passado pertence o uso do betão numa perspetiva meramente estética e decorativa. Ao apresentar fluidez, ritmo e a possibilidade de construir formas simples, o betão apresenta-se como sendo o primeiro elemento plástico, na história da arquitetura, antes mesmo do aparecimento do plástico, porque representa a possibilidade do movimento infinito - onde chão, parede e teto estão em constante comunicação e se unificam.


Para Parent e Virilio, nem Le Corbusier foi capaz de utilizar o betão nas suas maiores capacidades e de forma expressiva. O betão é mais vivo do que a pedra, pela sua flexibilidade e pela sua capacidade de se ligar ao que rodeia, adquirindo uma cor e uma textura diferente ao longo do tempo. Para Virilio, o betão é comunicação, é liberdade, significa movimento livre. É o novo lirismo arquitetónico.


Nesta entrevista, Virilio e Parent, acreditam que a arquitetura sobretudo deve permitir a deslocação espontânea do ser humano - é muito mais do que uma fachada e vai muito mais além do que o mero funcionalismo. E o betão pode ser esse veículo do ser humano tão desejado na arquitetura.


Na opinião de Virilio, a torre de vidro moderna representa uma arquitetura puramente visual. O betão tem a capacidade de permitir outras soluções urbanas mais dinâmicas, para além da vertical - deve possibilitar uma arquitetura que é suporte de vida. A verticalidade é estática, é a negação do dinamismo urbano e humano.


Para Virilio, a arquitetura do passado é uma arquitetura meramente protetora, que dá muita importância à cobertura e à fachada. A época contemporânea é a época da infraestrutura, do nível, do chão, do suporte e o betão reforçado tem aqui um papel fundamental, porque apresenta grandes capacidades de trabalhabilidade e de resistência.


Segundo Virilio e Parent, existem dois tipos de arquitetura a da proteção (críptica e primitiva) e a arquitetura infraestrutural (que é a arquitetura do suporte e do lugar humano, da deslocação e da circulação sociológica). A arquitetura contemporânea deve ser pois exterior e infinitamente contínua. O betão flui e permite fluir e está na base da reorientação do futuro. É uma matéria táctil e viva.


Schmid no artigo Between Classicism and Modernity (2015) argumenta que a visão de Rohmer, acerca da arquitetura moderna, em Entretiens sur le Béton, é mais uma vez ambígua, sobretudo a seu ver, por causa da insistência de Parent e de Virilio ao sublinharem e elogiarem a plasticidade e tactilidade das estruturas de betão - até considerando estas estruturas muitíssimo superiores à leveza e à estética transparente da arquitetura de Mies Van der Roher. Virilio não acredita no modelo da torre transparente como solução urbana e Rohmer, nesta entrevista, permite claramente demonstrar que o betão é uma estrutura tão especial que pode até revolucionar o desenho urbano modernista, apenas através da redefinição da sua infraestrutura.


Schmid diz que a ambiguidade de Rohmer também se manifesta nas imagens dos bunkers, porque em nada esclarecem o tipo de arquitetura que Parent e Virilio acreditam como solução. Se estivermos bem atentos e informados acerca da teoria de Parent e de Virilio, da fonction oblique (teoria que afirma rampas, ângulos e diagonais como definidores do desenho do espaço e que assim permitem uma continuidade infinita, onde público e privado se misturam e a superfície da cidade é fluída) reconhecemos que os bunkers só são mencionados pelos entrevistadores, por em nada esta ser a arquitetura representativa do betão, nem a arquitetura que defendem. O bunker representa a arquitetura epidérmica, de proteção por excelência e que se relaciona com as mais primitivas e já ultrapassadas formas construídas. Virilio afirma que estamos na era da infraestrutura e é para isso que o betão em muito pode contribuir, ao permitir reorganizar a cidade em camadas e em fluxos contínuos e infinitos.


Neste debate, Rohmer permite que a visão de Parent e Virilio, acerca de uma arquitetura do betão ambígua, contínua, fluída, dinâmica, orgânica e circulatória, tome conta do debate. Parent e Virilio fazem-nos acreditar no betão como sendo o material por excelência capaz de negar a arquitetura isolada, estática, artificial, epidérmica, encenada e petrificada da modernidade. Esta entrevista confirma o interesse de Rohmer em fazer coexistir equilibradamente o artefacto e o natural, o divino e o humano (Margulies 2014, 163). E Parent e Virilio mostram que isso poderá ser possível com uso sábio do betão.

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Éric Rohmer, a arquitetura e o urbanismo moderno.


O artigo Between Classicism and Modernity de Marion Schmid (2015) explora o olhar crítico de Éric Rohmer sobre as formas e soluções arquitetónicas e urbanas, estáticas e encenadas, da modernidade. Para Schmid, o cinema de Rohmer oferece sempre uma reflexão acerca da relação inerente e necessária entre o ambiente construído e a experiência vivida.


Schmid objetiva no seu artigo, através dos documentários e dos filmes, apreender a complexidade da relação de Rohmer com a arquitetura e o urbanismo moderno. O propósito de Schmid é o de elucidar qual a relação entre a teoria, o documentário e a ficção e o pensamento de Rohmer acerca da mudança que as cidades sofreram ao longo do último século. Por isso revela que a atitude ambivalente de Rohmer, em relação à arquitetura moderna, se deve à tensão subjacente entre o classicismo e a modernidade e que acaba por caracterizar toda a reflexão e prática criativa do realizador.


Schmid escreve que Rohmer acredita que o cinema, ao contrário das outras artes, contém em si uma relação intrínseca e privilegiada com a realidade. Enquanto que as outras formas de arte, em meados do século XX, se moviam progressivamente em direção à abstração e se tornavam cada vez mais auto-reflexivas, o cinema foi e é o único meio capaz de apreender a vida, em tudo o que habitualmente fica retido ao ser capturada pelas outras artes. Para Schmid, o cinema não reprime a aspiração Rohmeriana de beleza e verdade. Já as outras artes, ao afastarem-se da natureza, abrem a possibilidade ao cinema de ter um papel redentor, que salva e que liberta - porque o filme pode ter a capacidade de voltar a ligar os espectadores às dimensões espirituais e ontológicas da existência humana.


Schmid revela que Rohmer acredita que a arquitetura é a arte que mais se aproxima do cinema. Talvez por isso se justifique o acentuado interesse de Rohmer pelas questões urbanas e da arquitetura, em muito do seu trabalho iniciado, em meados dos anos sessenta do século passado. Nomeadamente, os pequenos filmes realizados para a televisão francesa, permitiram a Rohmer o ideal campo experimental onde temas, ideias e técnicas foram testados num contexto mais espontâneo.


Embora Rohmer aceite o potencial da arquitetura moderna, na medida em que tenta criar um mundo à medida do homem livre, Rohmer assume-se também cauteloso, sobretudo no que diz respeito ao isolamento e à perda de experiência genuína que as habitações urbanas modernas podem apresentar.


Métamorphoses du paysage
(1964) concretiza a batalha, que Rohmer travava, entre o clássico e o moderno. Este documentário pedagógico traça, ambiciosamente, a transformação radical que a paisagem sofreu desde o despertar da Revolução Industrial. Para Schmid, Rohmer tenta aqui sensibilizar a audiência para a beleza difícil da arquitetura industrial, sem se indicar claramente uma posição contra ou a favor. Este filme é uma solicitação para se encontrar, nesta transformação, a ocasião para uma reflexão mais profunda e poética. Abre-se, assim, a possibilidade de explorar as capacidades subjetivas e filosóficas do cinema através de um tema desafiante: ‘the viscous, grimy underbelly of modernity.’ (Schmid 2015, 5)


Num mundo governado por relações de causa e efeito, onde o resultado é mais valorizado do que o processo, Rohmer argumenta que a poesia abdicou do uso do seu domínio privilegiado, a linguagem figurativa - em particular a metáfora. E por isso o cinema tornou-se no único refúgio capaz de salvar aquilo que é mais real, verdadeiro e mais poético. Métamorphoses du paysage desafia a sensibilidade estética do espectador, abrindo os seus olhos para a beleza paradoxal das paisagens industriais, que à primeira vista podem parecer sem forma, inacabadas ou caóticas.


Entretiens sur le béton, realizado em 1969, é composto por entrevistas ao arquiteto Claude Parent e ao teórico urbanista Paul Virilio, onde se avaliam as possibilidades expressivas do betão armado, contrapondo a generalizada hostilidade pública em relação à arquitetura brutalista. O filme televisivo Le Celluloïd et le Marbre (1965) explora a perspetiva inversa, onde praticantes das outras artes são aqui chamados a fornecer a sua perspetiva acerca do cinema, através de uma análise que relaciona este meio com a sua capacidade em responder às necessidades do cidadão moderno.


Finalmente, é na série de quatro documentários, realizados para a televisão, que Rohmer traça um retrato complexo das Villes Nouvelles - atendendo a questões do urbanismo e da arquitetura moderna e que efeitos têm sobre os seus habitantes. É conhecido o interesse de Rohmer pela preservação e manutenção de Paris histórico sem construções novas, nem destruições. Daí a relevância das Villes Nouvelles, porque representam a oportunidade de uma ‘Paris paralela’, que possibilita o descongestionamento e que mantém intocável e central a cidade histórica.


Rohmer deseja intensamente reproduzir a realidade tal como é, porque é através do verdadeiro que se revela o poético e a dimensão que nos transcende. Um filme para Rohmer deve salientar sempre a relação direta entre o ser humano e o espaço construído, entre a arquitetura e a vida.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


L’ami de mon amie
e o subúrbio como utopia.


«When he was asked ‘Why are you interested in architecture?’, Rohmer gave two main reasons: ‘First, I want to be classical, but I want to be modern, too, so I undertook to show the architecture of our time. Second, for my television program Le Celluloid et Le Marbre (1966) (…) I had met architects who interested me a great deal. It was they who put me in contact with persons involved in the development of the new towns, in particular Cergy, Évry, Le Vaudreuil, and Marne-la-Vallée.» (Baecque e Herpe 2014, 381)


No filme L’ami de mon amie (1987), Éric Rohmer situa a história em Cergy-Pontoise, que é uma aglomeração urbana dos arredores de Paris, uma cidade totalmente independente, com vida e forma próprias. Parece ser uma cidade ideal, para trabalhar, habitar, circular e cultivar o corpo e o espírito. Rohmer apresenta esta Ville Nouvelle, como sendo o oposto de um mero complexo imobiliário banal de periferia, cidade-dormitório, lugar onde as pessoas nunca se encontram e onde a vida lhes pesa.


«…c’est un peu comme un village, ici. Ça m’est dejá arrivé de retomber sept fois sur la même personne, alors que je lui ai déjà dit bonjour une première fois.», Fabien em L’ami de mon amie (Rohmer 1999, 134)


O interesse de Éric Rohmer pelas questões de planeamento e ambiente urbano, ficou marcado pela série Ville Nouvelles, de cinco episódios, que realizou entre 1974 e 1975, para a televisão francesa: Enfance d’une Ville, La Diversité du Paysage Urbain, La Forme de la Ville e Le Logement à la Demande.


Cergy-Pontoise é, em L’ami de mon amie, um mapa de encontros. É uma cidade que parece não necessitar de Paris para existir. Marne-la-Vallée já tinha aparecido em Les Nuits de la Pleine Lune, como sendo um vivo testemunho da herança moderna. A visão, dada por Éric Rohmer, acerca de Cergy-Pontoise é a de uma cidade utópica. Há uma tentativa de recriar uma cidade pura, estéril e prometedora. É apresentada como um modelo novo de cidade, cheio de optimismo, constituído por uma comunidade jovem urbana que reside, estuda, trabalha e se movimenta, sem cessar. Rohmer define Cergy-Pontoise, como sendo um grande lugar onde as ruas e as praças se cruzam constantemente. E parece ser, uma cidade que oferece quotidianamente trabalho e lazer, vida natural e artificial, realidade criada e idílica, centro comercial paradisíaco e lugares reais de encontro.


«Alexandre: Vous vous plaisez à Cergy?

Blanche: Oui, beaucoup.
Alexandre: Evidemment, avec les quinze chaînes de télévision, les lacs, les tennis, bientôt le golf, les deux théâtres, on aurait du mal à s’ennuyer! Je plaisante, mais moi aussi je ne me trouve pas trop mal ici.
Blanche: Moi, je ne me sens faite ni pour la grande ville ni pour la province.
Alexandre: Moi, je me sens fait pour la très grande ville. Ici, je me trouve beaucoup mieux intégré à l’immensité du Grand Paris que si j’habitais au fin fond du premier arrondissement. Mon champ d'action porte sur toute l'étendue de la mégapole parisienne. Je me déplace sans cesse, du Nord au Sud, de l'Est ou à l'Ouest. Je suis l'homme des mégapoles. » (Rohmer 1999, 124-25)


No livro Eric Rohmer, de Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina lê-se que como unidade urbana, Cergy-Pontoise se apresenta singular e oferece três possibilidades a Rohmer:

  • Desenho urbano de linhas espaciais geométricas e muito próximo da natureza;
  • Facilidade em fundir profundamente as personagens com o espaço em que se movem, enriquecendo assim a ficção. Possibilitar a existência de sítios para trabalhar, para habitar, para lazer e para férias;
  • O desenho espacial nítido, serve uma estrutura narrativa franca e transparente. Uma nova cidade parece trazer novos costumes e uma nova moral. Esta nova arquitetura determina trajetos precisos, e contribui para a história das personagens. (Heredero e Santamarina 1991, 242)


O centro de Cergy-Pontoise parece ser polifuncional e dedicado às interacções (com lugares sociais de encontro e de comércio, recuperando a ideia de praça e de rua); aos transportes (a estação do comboio parece estar na praça central); à universidade; ao poder central (câmara municipal); às torres de escritórios e à habitação (com as residências de aparência neoclássica); ao lazer (parque e piscina). O centro comercial de Cergy parece oferecer espaços de consumo local e ocasional, cuja escala é a de bairro e aparece como peça central, sendo espaço importante para encontros ocasionais, mas determinantes entre Fabien e Blanche.


As zonas periféricas de Cergy, no filme parecem ser dedicadas aos espaços verdes e às antigas aldeias. A favor do espaço verde, Cergy parece ser uma cidade aberta a todos, rodeada de ar, sol, lagos (onde Fabien e Blanche fazem windsurf), parques, florestas e espaços para desporto. Fabien explica a Blanche que até os populares vindos dos arredores passam aqui as suas horas livres e os fins-de-semana.


«Soleil. Espace. Verdure.

Les immeubles sont posés dans la ville derriére la dentelle d’arbres.
La nature est inscrite dans le bail. Le pacte est signé avec la nature.», (Le Corbusier 1959, 45)


Cergy-Pontoise parece existir, assim, em perpétua atmosfera solarenga e saudável (a história do filme desenrola-se no verão). É uma cidade que parece não ter barreiras. O espaço verde aparece sem fim e vê-se continuamente pelas janelas do apartamento de Blanche. Os caminhos parecem sempre livres, sem obstáculos, nem congestionamentos.


«Filmed by Éric Rohmer, the new towns have something idyllic about them. » (Baecque e Herpe 2014, 397)


Todas as personagens, em Cergy-Pontoise, têm um poderoso sentido de permanecer e de querer pertencer àquele lugar. Sentem-se participantes ativos da cidade. Os diferentes espaços, no filme, são vistos de maneira a identificarem-se com cada personagem – pois cada uma vive num determinado e específico lugar, reflexo de si própria. Por isso, Cergy parece ser capaz de conter diversas e variadas formas que garantem sempre lugares de encontro e de interesse comuns.


E assim, seguimos Blanche, pelos lugares de Cergy, que mais se identificam com a sua personagem – trabalho na Câmara Municipal, almoço na cantina, piscina, residência de aparência aristocrata, as compras, as deslocações e os tempos livres (ténis, windsurf nos lagos, caminhadas pelas grandes zonas verde, pela margem do l’Oise).


«In Cergy, probably as in any new town, there is a certain mediocrity in the construction of the buildings. (…) painting and facing are not always up to snuff, the materials are artificial, and the trees are not big enough or full enough. (…) Life in Cergy was organised around an obsession with being contemporary. Above all, one has to be optimistic, never see life otherwise. It amused me to show that in a fable in which there was a touch of irony, without aggressiveness. And I'm not sure that when they came out the spectators all wanted to go live in Cergy. » Eric Rohmer (Baecque e Herpe 2014, 398-9)


Porém, na verdade, o filme também dá a entender que a realidade de Cergy-Pontoise não é assim tão perfeita. Projetada entre 1981-85, Cergy constitui-se uma das Villes Nouvelles planeadas pelo governo francês nos arredores rurais de Paris, ainda sob domínio ideológico, surgido no período pós-guerra – para descongestionar centros urbanos, controlar comunidades na periferia e oferecer habitação social. As Villes Nouvelles são inevitavelmente densamente urbanizadas e é a influência de Paris que estrutura todo o seu tecido urbano. No filme, ainda existem atividades que só Paris oferece, sendo esta cidade um cenário de fuga para Blanche.


Segundo Antoine de Baecque e Noёl Herpe, no livro Éric Rohmer: A Biography, Cergy-Pontoise, no filme, apresenta-se uma cidade ambígua. Rohmer dá uma visão irónica da realidade ao não filmar propositadamente a banalidade de uma cidade concreta, como por exemplo não mostra os blocos de habitação altos e em massa, para poder assim revelar o que entende por cidade ideal. Cergy concretiza-se então como um todo falsamente neutro, indiretamente crítico e de felicidade monótona.


«Imposing yet inviting, public but private, classical in spirit yet resolutely modern in execution, Les Colonnes de Saint-Christophe presents a world of contrasts. » (Klanten et al. 2019, 110)


As formas pós-modernas confirmam, em relação a Paris, uma dependência histórica. O passado de Cergy tem de ser simulado por formas construídas que fazem lembrar palácios. Paris é ainda centro, com os seus objetos simbólicos. (Ghirardo 1996, 149). O esquema urbano, Les Colonnes de Saint-Christophe (1985), projectado por Ricardo Bofill, onde Blanche habita, apresenta uma praça monumental, com um marco de referência – a Torre do Belvedere. A forma impositiva e cénica do conjunto dá a impressão de se tratar de uma muralha defensiva, que protege uma cidade no seu interior (Klanten et al. 2019, 110).


Bofill ao projetar para as Villes Nouvelles, afirma um «clássico moderno» através da concepção de uma habitação social com sentido e importância - para que a arquitetura seja, agora sim, capaz de exaltar, para se tornar rica em simbologia e cheia de significado. Bofill ao procurar referências na arquitetura neoclássica (no projeto de John Wood, para o Royal Crescent, em Bath) propõe numa escala colossal, um modo de viver artificial e teatral. Bofill traz, para o quotidiano, elementos formais de palácios aristocráticos e até mesmo dos templos e anfiteatros gregos, acreditando que numa sociedade a posição social e o poder político são determinantes. Bofill deseja, com o poder das suas formas monumentais, puramente visuais e de imitação, exaltar o estatuto do indivíduo, como se isso fosse capaz de eliminar problemas de segregação social e de falta de condições de vida (como o desemprego e a pobreza). (Ghirardo 1996, 150)


Ana Ruepp