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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


I. ÍNDIA (O PLANO DA)


Se há verdadeiros fantasmas na história portuguesa, eles estão representados por Nuno Gonçalves nos Painéis de S. Vicente, verdadeira chave do que podemos designar de Planos das Índias. No capítulo sétimo da «Crónica dos Feitos da Guiné», Gomes Eanes de Zurara apresenta cinco motivos para as navegações atlânticas. Antes de mais, lembra que o Infante D. Henrique não só manteve uma frota para defesa de Ceuta, mas também realizou o corso nas costas do Mediterrâneo. E quais as razões para o interesse da costa africana? O desejo de conhecer a terra que estava para além das Canárias e do Cabo Bojador; a vontade de encontrar cristãos e portos seguros para estabelecer relações comerciais; a possibilidade de trazer para estes reinos mercadorias que haveriam bom mercado, avaliando com rigor o poderio islâmico naquelas paragens africanas; por outro lado, o Infante, nunca tendo encontrado na Cristandade aliado que o acompanhasse na guerra contra o poder mouro, desejava saber se em África haveria algum Príncipe cristão que se dispusesse a ajudá-lo em tal empresa; finalmente, haveria que dilatar da fé cristã em novos territórios, ganhando para ela «todas as almas que se quisessem salvar». Zurara escrevia em 1452-53, em vida de D. Henrique, com acrescentos após a morte deste. Deteta-se a presença do Presbítero João (Preste João), rei mítico, primeiro localizado na Ásia, como refere o «Livro de Marco Polo», e depois em África, na Etiópia, onde se sabia haver a tradição cristã copta muito marcada. Só no reinado de D. João II se pode falar de Plano da Índia. E é neste sentido que o rei envia a missão de Afonso de Paiva e de Pêro da Covilhã ao Cairo e ao Mar Arábico. Depois de sinais contraditórios, desde a alusão aos cristãos nestorianos na Ásia até à comunidade de S. Tomé no Kerala, no sul do subcontinente indiano, tudo foi alvo de cuidadoso escrutínio, chegando-se à informação sobre a Etiópia. Mas quando há Plano da Índia? Até 1460 é muito cedo, pelas informações trazidas pelo Infante D. Pedro na viagem europeia, há, todavia, a compreensão de que o comércio mediterrânico e o domínio geoestratégico da Terra Santa são cruciais. E Zurara dá-se conta da necessidade de um plano económico e político que prolongue o espírito de cruzada. A queda de Constantinopla, cabeça do Império Romano do Oriente (1453), dá importância acrescida à demanda do Mar Arábico pela costa de África… O apelo do Papa Calisto III (1455) para uma cruzada contra os turcos, depois da queda de Bizâncio, não teve sucesso, o que reforçou a opção portuguesa de concentrar meios na rota africana. No muito curto reinado de D. Duarte (1433-1438), ocorre a passagem do Cabo Bojador (1434) e o desastre de Tânger (1437), tendo em 1441 tido sucesso a primeira operação comercial com aquisição de escravos. Em 1444 é atingida a Costa da Guiné. Contudo, só um terço dos navios que navegavam na área pertenciam á iniciativa do Infante. Em 1455 a Bula do Papa Nicolau V concedia ao Rei de Portugal a propriedade exclusiva das terras e mares conquistados ou a conquistar… Depois da morte do Infante (1460), chegados os portugueses à Serra Leoa, dá-se o arrendamento pela coroa ao mercador de Lisboa Fernão Gomes da exploração da costa africana – 100 léguas em cada ano. É o tempo da Costa do Ouro e da Mina, num momento em que a intervenção do Estado abranda, até pelo envolvimento de D. Afonso V na guerra da sucessão de Espanha (1475-76), sendo retomada a exploração direta só com o Príncipe Perfeito. Entretanto, o acesso ao Golfo das Guiné permite o comércio da malagueta, do marfim, do ouro e dos escravos – que irão permitir a sustentabilidade económica das navegações. É o confronto entre caravanas e caravelas. O reinado de D. João II (1481-1495) marca uma viragem significativa na estratégia da expansão marítima – com as políticas do segredo e do «mar fechado». Houve avanços comerciais mercê da aprendizagem do regime de ventos, do cálculo da latitude pela inclinação solar e do controlo costeiro do Sul do Atlântico. «Tempos de coruja, tempos de falcão» é o lema prático do Príncipe Perfeito. A centralização política, a limitação dos poderes da alta nobreza (com as mortes do Duque de Bragança, D. Fernando, e do Duque de Viseu, D. Diogo), a aliança com Castela, o casamento do herdeiro com a filha dos Reis Católicos, a ideia de uma economia dominante na Península Ibérica que pudesse ser base sólida de um Império universal – eis as bases da política de D. João II. Trocavam-se os bens obtidos na costa de África pelo trigo de Marrocos e das ilhas e pelas mercadorias da Europa, onde se recebiam têxteis, tapetes, cavalos e latão. Em 1482 é fundada a importante feitoria de S. Jorge da Mina, entreposto para o financiamento das navegações… Depois das expedições de Diogo Cão até ao Zaire e da chegada de Bartolomeu Dias ao Cabo da Boa Esperança, tendo sido trazido um emissário do Rei do Congo (1487), decidiu D. João II destacar os dois enviados para alcançarem a Etiópia e a Índia. Afonso de Paiva morreu, mas Pêro da Covilhã viajou pelo subcontinente indiano, pela Pérsia e pela África Oriental, fixando-se na Etiópia, onde mais tarde partilhou informações…. Há diversos mistérios por desvendar relativamente à interrupção das navegações depois de 1488. A lista de razões é conhecida: teriam sido resistências cortesãs visando beneficiar o comércio do Norte de África? Seria um tempo de espera para melhor preparação? Seria uma antecipação ou prevenção da eventual chegada de Colombo às Caraíbas? Seria a previsão de um conflito gerado pela reivindicação de conquistas perante o Papa aragonês Alexandre VI? O certo é que o casamento do Príncipe D. Afonso com D. Isabel filha dos reis católicos gorar-se-ia com a sua trágica morte (1491). E o Tratado de Tordesilhas (1494) torna-se necessário já não para regularizar as influências no Atlântico Norte, mas para definir a divisão do Mundo. O avanço do meridiano para ocidente de Cabo Verde até 370 léguas, envolve novos enigmas: seria o Brasil já conhecido? Teria Duarte Pacheco Pereira feito o reconhecimento do território? A segunda viagem à Índia capitaneada por Pedro Álvares Cabral aponta nesse sentido. Em 1495 o Rei morre no Alvor e em 1497 retomam-se as navegações. Que buscam os navegadores com Vasco da Gama? Na fórmula repetida: cristãos e especiarias. E João de Barros relata o essencial - «e porque D. Manuel com estes reinos e senhorios, também herdara o prosseguimento de tão alta empresa como seus antecessores tinham tomado – que era o descobrimento do Oriente por este mar Oceano – quis logo no primeiro ano do seu reinado acrescentar à Coroa deste reino novos títulos. Sobre o qual caso (…) estando em Montemor-o-Novo teve alguns conselhos gerais em que houve muitos e diferentes votos e os mais foram que a Índia não se devia descobrir». Mas o Rei decidiu avançar!

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O DESLUMBRAMENTO DA ARTE CRISTÃ EM GOA

  


Regresso sempre com gosto a Goa, cidade que invoca uma história extraordinária, na qual o diálogo de culturas constitui a chave da sua existência e da sua perenidade. A civilização indo-portuguesa não se confunde nem com a cultura portuguesa, nem com a cultura hindu, é uma realidade própria com uma identidade singular. Quando passeio em velha Goa no largo campo que hoje está longe do que foi no seu auge, lembro as longas filas de gente de várias culturas e religiões com extensão de cerca de nove horas de espera para homenagear S. Francisco Xavier, homem santo para cristãos, hindus e muçulmanos. É um caso único que não conheço noutra parte do mundo.


“Quem viu Goa não precisa ver Lisboa”. Assim se dizia no século XVI, perante a maravilhosa cidade do Índico, singular encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente. Porto, onde havia “grande trato de muitas mercadorias de todo o Malabar, Chaul e Dabul, do grande reino de Cambaia…”, no dizer do cronista. A memória de Afonso de Albuquerque, de Garcia de Orta, de Camões, de Francisco Xavier ou de Fernão Mendes Pinto, e as tradições ancestrais dos povos do território preenchem a realidade multifacetada de um património cultural singular, que constitui uma identidade própria, complementar das várias referências que lhe deram origem. Assim se compreende como a herança, a memória e a cultura têm características próprias múltiplas que não podem confundir-se com qualquer ilusão unificadora ou autossuficiente. O Museu de Arte Cristã de Goa, criado em 1994, celebrou 29 anos de existência numa cerimónia inolvidável. É um projeto da Arquidiocese de Goa e Damão e a sua constituição deve-se à convergência de vontades entre a Fundação Calouste Gulbenkian e o Indian National Trust for Art and Cultural Heritage de Nova Deli. Apresenta-se a arte indo-portuguesa em todo o seu esplendor, reunindo uma coleção única de Arte Cristã de influência indiana. São cerca de cem obras de arte icónicas, que identificam de modo muito especial uma identidade religiosa própria, abrangendo pinturas, esculturas em madeira e marfim, têxteis, livros, metais preciosos e mobiliário. E não esquecemos o trabalho realizado por Maria Helena Mendes Pinto, de saudosa memória. O Museu encontra-se agora melhorado e enriquecido, como demonstra o magnífico catálogo, coordenado por Natasha Fernandes, com textos do Padre Avinhash Rebelo, Nascimento de Souza, Maria Fernanda Matias, Walter Rossa, Jason Keith Fernandes e Ranjit Hoskote. Como afirmou o Cardeal D. Filipe Neri Ferrão, o projeto de reorganização e de valorização museográfica do Museu de Arte Cristã deveu-se a uma cooperação inédita entre o Ministérios da Cultura da República da Índia e de Portugal e da Fundação Gulbenkian – instituição que acompanhou o Museu ao longo da sua existência, especialmente nos momentos-chave da sua vida e do seu crescimento.


O Museu de Arte Cristã nasceu em Rachol, em Salcete, nas margens do rio Zuari, e aí esteve até 2001, tendo sido transferido para Convento de Santa Mónica, edificação marcante que assume uma posição particular no contexto da arquitetura religiosa de Goa por ter sido o único convento feminino do território. O monumento de grandes dimensões localiza‑se na bela encosta norte do Monte Santo, no lado ocidental de Velha Goa, perto do antigo Convento de Nossa Senhora da Graça, sobranceiro ao Rio Mandovi e à estrada que liga Pangim à velha cidade. A Igreja de Santa Maria, contígua a Santa Mónica, é um exemplo único no panorama da arquitetura religiosa cristã de Goa, como igreja de um convento feminino. O convento impressiona pelas suas dimensões e grandiosidade, tanto mais que é dos poucos de Velha Goa que se mantêm em boa parte intacto. Na sequência da visita do então Presidente Emílio Rui Vilar, em 2005, e da disponibilidade de apoio técnico, a Fundação Gulbenkian elaborou e ofereceu ao Museu, em 2015, o projeto de renovação que incluiu arquitetura, museologia e museografia, seguindo as mais recentes orientações internacionais na matéria. Deu-se assim continuidade a uma cooperação antiga, realizada em nome da salvaguarda de um património cultural de grande valor civilizacional. É um maravilhoso conjunto de peças, avultando o monumental tabernáculo proveniente da Catedral de Nova Goa com a representação de um pelicano que significa o sacrifício de Cristo no Calvário. Cada uma das peças que se apresentam constitui exemplo de um fecundo encontro da arte e da sensibilidade de culturas diferentes, que se completam, numa memória viva e numa síntese de memorável significado. O Cardeal D. Filipe Neri Ferrão não escondeu o seu contentamento perante as obras de arte que exprimem uma fé viva e ancestral, que é sinal de uma cultura genuína e própria que nos encanta.


GOM

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Traduzo para ti um trecho do Vasco de Gama (Paris, Fayard, 1997) de Geneviève Bouchon, só porque, tendo sido escrito por uma historiadora francesa, traz outro sabor a uma história que todos conhecemos... Diz assim:

 

   A escala de Melinde permaneceria na memória coletiva portuguesa como momento privilegiado da história das descobertas. O acolhimento reservado aos portugueses pelo sultão foi logo atribuído à «vontade de Deus» que o inspirara. No dia de Páscoa, era a esperança reencontrada depois de tantas desventuras. Durante os nove dias de duração da escala, os homens da tripulação puderam regalar-se com laranjas doces, refastelar-se com carnes e legumes deliciosos, que os jardins da vizinhança, regados por noras, profusamente dispensavam. Comparavam a cidade à vila portuguesa de Alcochete, com as suas muralhas, as suas casas altas brancas de cal, sobre um fundo de palmeirais despenteados pelos primeiros ventos da monção nascente.

 

   Tudo lhes falava da Índia: as especiarias, os têxteis e os homens. Pela primeira vez descobriam a rede tecida à volta dela, de que Melinde era uma das extremidades. A maioria dos seus habitantes era bantu mas, quando a cidade se animava ao cair da noite, no porto se cruzavam também com árabes de turbante que andavam em tronco nu, com a parte baixa do corpo envolta num longo pano de algodão ou de seda. Encontravam também mercadores da Índia, esses chamados gujarates, nome que em breve se tornaria familiar aos ouvidos portugueses, pois em todo o lado os encontrariam. Vinham a Melinde buscar ouro, âmbar e marfim, que trocavam pelos seus algodões, cobre e mercúrio. Quatro navios estavam ancorados no porto, por conta de cristãos do Malabar. Os portugueses não queriam acreditar nesse novo signo da Providência, depois das falsas alegrias de Moçambique e dos dececionantes encontros de Mombaça. Mas parecia mesmo tratar-se aqui de verdadeiros cristãos, membros da Igreja de São Tomé Apóstolo. Eles próprios tinham vindo saudar os portugueses, que se maravilharam ao ver homens de pele escura que não eram africanos. Eram mais pequenos e mais magros, e traziam grandes barbas e longos cabelos atados nas costas nuas. Exprimiam-se numa língua com acentos metálicos, que os intérpretes dos portugueses não entendiam. Recusavam comer carne de vaca, mas prosternaram-se diante de uma imagem de Nossa Senhora que o capitão-mor lhes apresentou para verificar a sua fé. Alguns sabiam algumas palavras de árabe e deixaram entender que não vinham de Calecute, mas de Cranganor, onde de facto existia uma importante comunidade cristã. Também souberam pôr o capitão-mor de sobreaviso contra a "malícia" das gentes de Melinde.

 

   O guião de Geneviève Bouchon é o nosso cronista quinhentista Fernão Lopes de Castanheda (História dos descobrimentos e conquista da Índia pelos Portugueses, 9 volumes, Coimbra, 1924-1933).  Facilmente compreenderás com que pena, agora, eu não possa ter o texto aqui à mão. Já te disse que não sou historiador, nem tenho outras pretensões do que trazer-te comigo a umas voltas que nos façam pensar... Antes de te convidar para um passeio por este relato - que tem que se lhe diga - deixo-te a narrativa - que Camões canta, depois de trazer ao episódio Mercúrio, por Vénus enviado a avisar o Gama -  quando a armada zarpara de Moçambique para Mombaça: Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece, /  Dizendo: fuge, fuge, Lusitano, / Da cilada que o Rei malvado tece, /  Por te trazer ao fim e extremo dano. / Fuge, que o vento e o Céu te favorece;/ Sereno o tempo tens e o Oceano, / E outro Rei mais amigo, noutra parte, / Onde podes seguro agasalhar-te... ///... Vai-te ao longo da costa discorrendo / E outra terra acharás de mais verdade / Lá quase junto donde o Sol, ardendo, / Iguala o dia e noite em quantidade; / Ali tua frota alegre recebendo / Um Rei, com muitas obras de amizade, / Gasalhado seguro te daria / E, para a Índia, certa e sábia guia... ///... E como o Gama muito desejasse / Piloto para a Índia, que buscava, / Cuidou que entre estes Mouros o tomasse; [os de Mombaça, donde foge] / Mas não lhe sucedeu como cuidava, / Que nenhum deles há que lhe ensinasse / a que parte dos céus a Índia estava; / Porém dizem-lhe todos que tem perto / Melinde, onde acharão piloto certo.  // Louvam do Rei os Mouros a bondade, / Condição liberal, sincero peito, / Magnificência grande e humanidade, / Com partes de grandíssimo respeito / O Capitão o assela por verdade, / Porque já lho dissera deste jeito / O Cileneu em sonhos, e partia / Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia... ///... Quando chegava a frota àquela parte / Onde o Reino Melinde já se via / De toldos adornada e leda de arte / Que bem mostra estimar o Santo dia. [o Domingo de Páscoa] / Treme a bandeira, voa o estandarte, / A cor purpúrea ao longe aparecia; / Soam os atambores e pandeiros; / E assim entravam ledos e guerreiros. // Enche-se toda a praia Melindana / Da gente que vem ver a leda armada, / Gente mais verdadeira e mais humana / Que toda a doutra terra atrás deixada. / Surge diante a frota Lusitana, / Pega no fundo a âncora pesada. / Mandam fora um dos Mouros que tomaram, / Por quem sua vinda ao Rei manifestaram. Continuaria, sem qualquer cansaço, mas tão só com alegria, a ler-te, Princesa de mim, muitos mais trechos de rimas do nosso Camões. Acontece-me, com alguma frequência, sentindo-me em estado de abandono, agarrar-me à escrita tão bonita de Luís de Camões ou de Frei Luís de Sousa. Deste, leio e releio passos da Vida do Arcebispo Dom Frei Bartolomeu dos Mártires. Do poeta, as líricas e Os Lusíadas. Nunca percebi como foi já possível achar-se maçadora, dura de roer, aquela crónica e a epopeia, cuja leitura sempre me proporcionou momentos de intenso prazer, esse gosto inefável oferecido pela plasticidade da língua portuguesa. As oitavas que acima transcrevi relatam um acontecimento, mas de modo a que o leitor possa saboreá-lo, como se o visse e ouvisse, e ainda entendê-lo "por dentro", inserindo-o na circunstância e na sua história próxima, deixando adivinhar expectativas, apreensões, receios e alegrias. E eu leio essas estrofes a cantarem- me na alma, foram compostas e escritas há 450 anos numa língua que, hoje ainda, eu festejo como muito minha... Meu também, isto é, como se para mim fora escrito, sinto este passo do capítulo XX (Do cuidado com que acudia aos pobres e dos hospitais que ordenou na cidade...) do Livro I da Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires -  escrita por aquele que em pleno século XIX, Almeida Garrett considerou o mais perfeito prosador da língua, em discurso ao Conservatório Real:

 

   Parecerá por ventura, a quem ler com cuidado o que vamos escrevendo deste prelado, que a quem andava tão ocupado nas cousas espirituais não lhe poderia ficar tempo, nem ainda memória pera o governo das temporais, e é engano, porque não se prezava de menos diligente e cuidadoso em acudir às necessidades corporais dos pobres, do que o era em remediar as espirituais de todos. Atrás fica dito como, tirado o pouco que despendia em sua casa e o que montavam os salários dos oficiais de justiça, tudo o mais se entesourava nas mãos dos pobres, que era o mesmo que passa-lo ao Céu por elas, como dizia a Daciano o glorioso mártir S. Lourenço, em cujo dia vamos escrevendo. Agora é lugar de dizermos a ordem com que o fazia. E frei Luís de Sousa (que, "no mundo" fora D. Manuel de Sousa Coutinho) conta-nos então o cuidado, o rigor, a ordem assente na atenção prestada a cada pessoa, com que o arcebispo (que, tal como o seu biógrafo, também era frade dominicano) ia acudindo aos mais necessitados, que até em sua casa acolhia: Costumava dizer o arcebispo que em sua casa só ele era o estranho e os pobres eram os verdadeiros e naturais senhores dela. Saboreia, Princesa de mim, esta palavra, dita por quem - vimo-lo acima - entesourava nas mãos dos pobres a riqueza que recebesse, o mesmo Bartolomeu que, menininho ainda,  em casa de seus pais, na freguesia dos Mártires, em Lisboa, acolheu um pobre que lhes batera à porta: Encarou no pobre todo risonho, todo alegre, debatendo-se pera ele, e festejando-o com as mãozinhas, boca e olhos, como se fora um dos mais conhecidos de casa; e enquanto o pobre se não despediu, não desviou os olhos dele, nem deixou de o estar agasalhando com aquelas inocentes mostras... A língua portuguesa tem maneiras, ora profundas, ora bonitas, de dizer. Estas que para aqui trouxe, fui busca-las ao século XVI e primórdios do XVII. Guardei-as como sussurra António Nobre : Teu coração dentro do meu descansa / Teu coração desde que lá entrou / E tem tão bom dormir essa criança / Deitou-se, ali caiu, ali ficou.

 

    E quiçá seja o coração também a pátria da nossa pátria, residência de um intimíssimo pensarsentir a pertença ou a comunhão com coisas e pessoas, passadas, presentes e desconhecidamente futuras. Afinal, a identidade nacional por ventura existirá apenas nessa comunhão de cada um no sonho ou na realidade de algo que todos sentem em uníssono (como quando cantamos o hino ou gritamos "Viva!") mas cada qual representa a seu jeito. Só nesse presente ela existe, sempre a fazer-se, sempre proposta. Nos textos que acima dou ao teu sentido, encontro propostas para a nossa nação de cada dia: aprender a olhar os outros pelos frutos, e não pelo preconceito, pela descoberta do que as diferenças podem fazer umas pelas outras; ganhar o espírito inato da justiça, não vendo nos indigentes encargos, fardos pesados, mas irmãos amáveis e libertadores, e, dando a cada um o seu direito (Ulpiano: Justitia est jus suum cuique tribuendi), entesourar riquezas espirituais. Muitas vezes me recordo ensinamentos cristãos da nossa tradição, que ainda hoje animam tantos gestos de solidariedade espontânea do povo português... Identidade nacional como mística fraterna, que qualquer português-novo é chamado a abraçar. Nunca como gloríola mitológica. Disso, sim, teremos de falar, Princesa. E talvez tenha de dizer-te de mim, português antigo e meio-português por nascimento, a caminho dos oitenta, com mais de metade da vida passada lá fora, e todavia querendo ser, nos dias de hoje, um português de agora...

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira