Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Raul Solnado no Centro Nacional de Cultura em 2002
ATORES, ENCENADORES (XX) BREVE EVOCAÇÃO DE RAUL SOLNADO NO TEATRO, NO CINEMA, NA ÓPERA por Duarte Ivo Cruz
Evocamos aqui Raul Solnado na perspetiva e na circunstância do cinquentenário do Teatro Villaret, por ele fundado em 1964 e onde estreou em 1965, há exatos 50 anos, com “O Impostor Geral”, adaptação do clássico “Inspetor Geral” de Gogol, “transformado” num espetáculo musical de excelente qualidade. O registo cómico que dominou grande parte da carreira de Solnado não excluiu obviamente a dramaticidade direta ou implícita de uma longa atividade de ator - encenador, e ainda menos, a expressão direta da excecional comunicabilidade com o público em papéis cómicos como em papéis trágicos, no teatro de revista como no teatro declamado, na rádio, no cinema e na televisão.
E vem a propósito evocar também o programa ZIP ZIP, realizado semanalmente no Teatro Villaret a partir de 1969 para a RTP, numa produção conjunta com Fialho Gouveia e Carlos Cruz. Foi de facto um grande momento do espetáculo em Portugal, na simbiose de produção artística direta e de jornalismo televisivo.
E já referi o desdobramento que o Teatro Villaret efetuou, precisamente em 1965, com a companhia do Teatro do Nosso Tempo, dirigida por Jacinto Ramos, com Maria Barroso na protagonista da “Antígona” de Jean Annouil.
Ora bem: no conjunto de uma carreira de dezenas de anos, repartida em Portugal e no Brasil, pela revista, pelo teatro musicado e declamado – e não só comédia, longe disso – e pela televisão, só poderemos aqui descrever alguns momentos de especificidade, todos eles marcados pela excecional qualidade das interpretações de Solnado, fosse ou não protagonista – e acabava sempre por o ser, independentemente da estrutura das peças e dos personagens desempenhados…
E começo por referir os monólogos, originais ou adaptados, que interpretou numa expressão cénica de contacto direto com o público. Cito designadamente “A História da Ida à Guerra de 1908” de Miguel Gila, devidamente adaptado, na revista “Bate o Pé”, em cena no Teatro Maria Vitória (1961/62). E outros se seguiram.
Há que citar intervenções destacadas num repertório heterogéneo que aliás veio das primeiras colaborações cénicas, designadamente mas não só na Sociedade Guilherme Cossoul - Gil Vicente, “O Fidalgo Aprendiz” de D. Francisco Manoel de Melo (no TMDMII), “O Avarento” de Molière, Tchekcov, Eduardo Schewalbach, o “Baton” de Alfredo Cortez, a “Maria Emília” de Alves Redol, o “Schewik na Segunda Guerra Mundial” de Brecht, muitos autores contemporâneos traduzidos e também a revelação de peças portuguesas contemporâneas como “As Fúrias” de Agustina Bessa-Luis ou “O Magnifico Reitor” de Diogo Freitas do Amaral (no Teatro da Trindade). Isto é, uma clara transposição da vivência e problemática da sociedade e da política portuguesa e internacional.
Raul Solnado participou, a partir de 1956/1957 (“Ar Água e Luz” de Ricardo Malheiro, “O Noivo das Caldas” de Artur Duarte, “Perdeu-se um Marido” de Henrique de Campos e “Sangue Toureiro” de Augusto Fraga), em mais de uma dúzia de filmes em Portugal e no Brasil, com destaque para “As Pupilas de Senhor Reitor” (1961) de Perdigão Queiroga, “Dom Roberto” (1962) de José Ernesto de Sousa, este premiado no Festival de Cannes, aquele premiado em Portugal, e ainda, entre outros mais, em “A Balada da Praia dos Cães” de José Fonseca e Costa a partir do romance de José Cardoso Pires.
E finalmente: teve uma intervenção em 1992 na ópera de Johann Strauss “O Morcego”, no Teatro Nacional de São Carlos.
Esta versatilidade em muito ultrapassa o registo, aliás notável em si mesmo, de ator cómico. Raul Solnado era de facto um artista global.
DUARTE IVO CRUZ
Obs: Reposição de texto publicado em 22.04.15 neste blogue.
"Rigoletto", uma das óperas mais cantadas em todo o mundo, situa-se cronologicamente a pouco mais do meio das compostas por Verdi (é 16ª em 27), imediatamente antes de "Il Trovatore" e de "La Traviata", ambas terminadas dois anos depois, em 1853. Na "Rigoletto" está quase todo Verdi, é como o ponto sublime das invenções já anteriormente anunciadas e, simultaneamente, o anúncio do que está para vir. Não é já só uma sucessão de cenas, pois toda a expressão dramática se traduz em música que, mesmo quando só orquestral, é também narrativa. O libreto, como sabes, foi retirado pelo Francesco Maria Piave (que também escreveu os de "Macbeth" e de "Ernâni", e o de "La Traviata" e mais outros seis) de um drama de Victor Hugo: "Le roi s’amuse" que, levado à cena vinte anos antes, em Paris, só teve uma representação, por intervenção da polícia, e esperou cinquenta anos para voltar ao teatro. Conta a história do abuso, pelo rei Francisco I de França, da filha do seu bobo Triboulet (em italiano, Triboletto e, mais tarde, Rigoletto - inspirado pelo francês "rigoler" ou divertir-se à custa de...). Também a censura austríaca se opôs à estreia da ópera, com a mesma história, no La Fenice, em Veneza. Após negociações várias, Piave e Verdi conseguiram a necessária autorização, mediante a mudança do título inscrito no libreto ("La Maledizione") para "Rigoletto" e, sobretudo, a mudança dos nomes das personagens e do local do drama: ficou-se em Mântua, com um duque local, inventado. No mesmo teatro foram estreadas outras óperas de Verdi com libreto de Piave, entre elas "La Traviata" e "Ernâni", esta também inspirada numa peça de Victor Hugo: "Hernani". Ao grande francês foi, pois, o compositor do "risorgimento" buscar dois temas, tal como três a Shakespeare ("Macbeth", ainda por Piave, "Othello" e "Falstaff", ambas por Arrigo Boito). É interessante observá-lo, quando sabemos que o bardo inglês do séc.XVI/XVII era o dramaturgo preferido de Hugo como de Verdi. Pessoalmente, senti sopros shakespeareanos no "Rigoletto". Não do ator-autor teatral que, em tantas das suas obras e atuações, procurou superar com bom humor e até alguma bonomia, o clima de suspeições e desconfianças que, na Inglaterra elizabeteana, envenenava as relações entre pessoas e grupos, anglicanos, papistas, puritanos...e alimentava tensões, conspirações e conflitos, aliás com alguma tradição, por esta ou aquela razão, no reino insular. Mas senti o Shakespeare do início do século XVII, o que perde o pai e é traído no amor, e sofre o fracasso dos condes de Essex e de Southhampton: patronos do bardo, o primeiro seria executado por Isabel I, o segundo encarcerado na Torre de Londres, de onde seria libertado por Jaime I, depois da morte da Rainha-Virgem. São anos em que William Shakespeare escreve em empatia com o gosto popular pelo drama sórdido, pela violência horrível que pesa sobre os homens como uma inevitabilidade, um castigo, ou, simplesmente, pela expressão do maligno que lhes habita o coração: Hamlet, Othello, Lear, Macbeth serão, entre 1602 e 1607, os heróis dessa desumanidade ou da tragédia dos homens que se acham esquecidos de Deus... Rigoletto, feio bobo, disforme e sarcástico, é criatura de Hugo, não de William. Mas recebe deste a fé na maldição, pois quem nasceu malfeito, ridículo e repugnante, tem de ser maldito e amaldiçoar o bem dos outros e regozijar-se com o mal deles: assim, é o ódio à beleza que ele não tem que o leva a detestar o duque e a corte, sem distinção alguma, nem sequer compaixão pelos condes de Monterone e de Ceprano, cujas filha e mulher soçobraram à luxúria cúpida do duque de Mântua. E que o impele a negociar com um bandido o assassinato do duque, que lhe seduziu a filha: Gilda que, por misteriosa fidelidade ao sedutor que a enganou e abandona, em segredo o substituirá no sacrifício a que o pai dela o condenara. É-me difícil compreender tal entrega de si em tão sinistro contexto: só no grito final de Rigoletto - "Ah! la maledizione!" - talvez... Mas é belo, como oásis no deserto - ou esse raro brilho dos teus olhos, que tão bem conheço - o dueto entre pai e filha que te referi no início desta carta, quando Rigoletto, temendo o mal que paira sobre Gilda, canta que a Deus pedira que sobre si só caísse a maldição, e à filha pede que lhe chore em cima do coração: "piangi, fanciulla, piangi"... É o grande momento de grandeza humana - quase divina - da ópera, em que o bobo se transfigura em pai, por um impulso de sentida generosidade e compaixão. Nesse instante, Gilda deixa de ser um objeto de paixão possessiva, de que ele ciosamente se apropria, e transforma-se também - ao ponto de reconhecer no pai um anjo consolador - em ser humano desamparado que só o carinho de outro conforta. Antes, já o mentiroso duque declarara à menina reclusa que "il Dio d´amore stringeva tuo fato al mio!" O teu fado e o meu, inseparavelmente, ligados pelo Deus do amor. "É il sol dell’anima, la vita é amore, sua voce é il palpito del nostro core..." Ocorreu-me aí o tema de "La Traviata": "L’amor é palpito del universo intero...". Com as mesmas palavras se dizem, até em música, palpitações diferentes. As palavras, como os gestos e as obras dos homens, em qualquer caso, são sempre artifício. É próprio da natureza do homem comunicar com as coisas todas, e com os outros, por artifício. A "fábrica" que cada um de nós é transforma tudo aquilo em que toca. E por muito rigorosas que sejam as regras impostas ao nosso comportamento - e por muito convencionais que possamos parecer - a verdade de cada um, só os olhos de Deus a vê no fundo dos corações. O "palpito" do coração do duque de Mântua vai mudando de velocidade e estímulo consoante "la donna é mobile: qual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero...". O bater dos corações de Violetta e Alfredo acompanha o ritmo íntimo e misterioso do universo sem fim, para lá do visível, do imediato, do possuível. Na cena final de "La Traviata", a morte dela levanta-se como ressurreição. Olha, Princesa, lembra-me esse verso do Ungaretti: "M´illumino d’inmenso...". Camilo Maria voltou várias vezes a Milão e ao Scalla. Quase dez anos deste "Rigoletto", passara por Lisboa e levou-me a S. Carlos, a uma inesquecível "La Traviata", com a Maria Callas e o Alfredo Kraus, dirigida pelo Claudio Scimone. Escreveu sobre isso à Princesa. Guardo essa carta para mim.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 27.08.13 neste blogue.
SIC TRANSIT GLORIA MUNDI… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Prolongo esta estadia em Viena, "noblesse oblige". Mas também me dá tempo para voltar à ópera, desta vez na Grosses Spielhaus, em Salzburg. Ontem, tive uma "Salomé", do Richard Strauss, dirigida pelo Karajan. Valeu muito mais pela música e pela direção nervosa do maestro do que pela encenação. De certo modo, o Herbert von Karajan parece ser feito para esta "Salomé" que, aliás, dirigiu pela primeira vez há quase meio século, tinha ele 21 anos, e eu poucos mais. Então, como agora, tremi naquele monólogo final da filha de Herodíades, dirigindo-se à cabeça cortada de S. João Baptista: "Ah! Ich habe deinen Mund geküsst, Jochanaan!" Beijei a tua boca e os teus lábios tinham um sabor amargo... Seria o gosto do sangue? Não! Talvez fosse o gosto do amor, dizem que o amor tem um sabor amargo. Hoje, aproveito a minha folga da noite para ficar no quarto do Hotel Sacher a ler as notas do programa e o libreto. E sou recordado do drama de Oscar Wilde que inspirou a trama da ópera, e da sua relação ao poema "Hérodiade" do Mallarmé e ao "À Rebours" do Huysmans, onde se descrevem duas pinturas do Gustave Moreau: uma representando a dança dos sete véus - a que Strauss dedica, na partitura, uma suite para orquestra que durará cerca de dez minutos - e outra intitulada "L’Apparition", em que a Salomé, vinda do Evangelho de S. Mateus, ganha novas proporções: "Ici, elle était vraiment fille; obedecia ao seu temperamento de mulher ardente e cruel; vivia,mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais delicada; despertava mais energicamente os sentidos em letargia do homem, enfeitiçava, domava com mais segurança as suas vontades, com o seu encanto de grande flor venérea, crescida em solos sacrílegos, cultivada em estufas ímpias". E Oscar Wilde, achando demasiado dócil a Salomé das escrituras, dirá que será por isso que os séculos seguintes foram depositando a seus pés sonhos e visões que a convertessem na "cardinal flower of the perverse garden"... Assim me ocorreu a tese do Jean Guitton, de que já te falei, sobre o tema do amor na literatura, a transgressão de Tristão e Isolda divinizada pela tradição romântica ou romanesca. Finalmente, talvez pela evocação de Huysmans ou de Mallarmé (já verás porquê), chego ao Tolstoi de "O que é a arte?", que vou lendo agora. Confesso que é bem possível que este encontro se deva a ti, que me habitas o pensamento e o coração e comigo percorres estas divagações... Foste tu quem me sugeriu esta visita a Tolstoi. Para ele, o apagamento da consciência religiosa e a perda da fé nas classes mais altas da sociedade europeia, em conjugação com a separação entre a arte que lhes dá prazer e a tradição da arte popular, reduziram a emoção estética ou artística a três sentimentos básicos e pobres: orgulho, desejo sexual e tédio da vida. O sentimento do orgulho surge na Renascença, com a arte paga pelos ricos feita em seu próprio louvor e enaltecimento; depois veio a exaltação da carne como motor da produção artística e literária; finalmente, o cansaço de tudo isso, o tédio de viver. E nessa viragem do século XIX para o XX - em que, quiçá?, as filosofias de Nietzsche e Schopenhauer serão já proféticas do orgulho, do pessimismo, do medo e da destruição resultante - o Leão russo ruge e zanga-se com os literatos (sobretudo franceses), Mallarmé e Huysmans, Baudelaire e Verlaine, Zola, etc... Com os compositores, desde a última fase de Beethoven ao Richard Strauss, passando por Wagner, Brahms e Liszt... Para ele, tudo lhe parece pornografia e decadentismo, bem longe do que foram as obras de Goethe, Schiller, Victor Hugo, Dickens, Mozart, Bach, Chopin, da Vinci, Rafael ou Miguel Ângelo... muito embora morda nalgumas dessas ou encontre a desculpa de que as massas populares não as teriam sempre entendido por estarem deficientemente educadas! Subjacente a esta raiva crítica está a inspiração evangélica e a profunda solidariedade humana do desejo tolstoiano de um mundo novo. Será utópico, talvez risível. Mas vindo de um aristocrata russo que morreu sete anos antes da revolução de 1917 - curiosamente, em 1910, quando Sir Thomas Beecham dirigiu, no Covent Garden de Londres, a "première" da "Salomé" de Strauss - tem ela, pelo menos, o mérito de nos incomodar... Nós que, diletantemente, nos entregamos ao gozo privilegiado de tanta literatura, espetáculo e artes plásticas, que o dinheiro paga para nosso bel-prazer, e não nos apercebemos de como a celebração de novidades, efemérides ou gostos raros - tal como certas práticas e ritos bacocos de pietismos em que pretendemos encerrar, para consumo próprio, a grandiosidade generosa e abundante do divino - nos afastam dos outros e nos reduzem. A arte, em todas as suas formas e manifestações, deve ser uma procura - simultaneamente dolorosa e alegre, como um parto - da comunicação. É partilha. Leio contigo este passo de "O que é a arte?" de Tolstoi: "Em consequência da descrença das pessoas das classes altas, a arte dessas pessoas tornou-se pobre em conteúdo. Mas, além disso, tornando-se cada vez mais exclusiva, tornou-se por esse motivo mais complicada, extravagante e obscura. Quando um artista do povo - como eram os artistas gregos e os profetas hebreus - criava a sua obra procurava evidentemente dizer aquilo que tinha para dizer de maneira a que a obra dele fosse compreendida por todas as pessoas. No entanto, quando o artista criava para um pequeno círculo de pessoas que viviam em condições excecionais, ou até para um indivíduo e os seus cortesãos, para um papa, um cardeal, um rei, um duque, uma rainha, uma amante do rei, empenhava-se naturalmente em produzir efeito apenas sobre essas pessoas que lhe eram conhecidas e que viviam em condições que também lhe eram conhecidas. Este método mais fácil de despertar sentimentos conduzia involuntariamente o artista a expressar-se por alusões incompreensíveis para todos a não ser para os iniciados..." (Tradução do russo por Ekaterina Kucheruk, para a Gradiva). Sem concordar com todos os pressupostos da análise de Tolstoi, confesso que, muitas vezes, até a simples leitura de crónicas ou resenhas críticas publicadas nos jornais me causa o desconforto de me sentir metido numa conversa que não me diz respeito. E é verdade que os círculos artísticos e literários tendem a produzir linguagens e modos herméticos e "sectários". Um pouco como aqueles adolescentes que se reúnem na zona de Shibuya, em Tokyo, e falam entre si um "japonês" inacessível até para seus pais... Não creio que a arte possa ou deva ser elitista e exclusiva. Antes penso que a arte é a procura da perfeição, de modo a que a expressão do belo se torne numa mensagem universal, comunicante e libertadora. O artista não impõe nem define. Desperta. Nesse sentido a obra de arte é, como a graça de Deus, um apelo, uma chamada. Quem contempla uma gravura ou escuta uma sonata não sentirá exatamente o impulso ou a ideia do autor, mas é pela obra deste libertado para o sentimento ou a contemplação de uma perfeição sempre imperfeita, porque sempre procurada. Volto ao nosso Ortega y Gasset: "El hombre es un trânsfuga de la naturaleza". Somos viandantes, precisamos de estrelas. E para as vermos, temos de olhar para cima. A importância da educação literária, musical e artística é esse convite a olhar para cima. E, também, a de ensinar que a busca da perfeição das coisas e das belezas do espírito é - como o amor e a ternura - difícil. Nesse sentido, o artista, como artesão, é um asceta. Um canteiro de flores ou uma horta bem cultivada, tal como uma mesa ou uma ponte bem construídas, ou um saboroso almoço, são obras de arte também. Feitas pelo trabalho dos homens, sujeito ao gosto e à disciplina de fazer melhor. Vou buscar ao "Pour une Théologie du Travail" do Padre Marie-Dominique Chenu um texto do teólogo oriental São Máximo (morto em 668) que o teólogo dominicano apresenta assim: "Ao contrário dos Padres latinos, que, sobretudo com Santo Agostinho, se agarraram à interioridade do homem contra as dispersões do mundo exterior, os Gregos prestavam grande atenção à relação do homem com a natureza. Retomando um dos grandes temas antropológicos da Antiguidade, definiam o homem como um "microcosmos": o homem recapitula em si os elementos e os valores do cosmos; recapitula-os estaticamente, no cimo de todas as naturezas; recapitula-os, graças a essa comunhão física e vital, dinamicamente, numa escalada hierárquica para a Unidade suprema." Minha Princesa: eu diria, do artista, isto que São Máximo aqui diz do homem: "O homem é uma oficina viva, em permanente continuidade de ação, em todos os seres. Através das realidades mais diferentes e segundo toda a sua diversidade, ele é, por si mesmo e em natureza, no bem e na beleza, segundo a génese de cada ser, o artesão da unificação delas... ...Essa potência unificadora, exercendo-se na causalidade do devir desses diversos seres, revela, cumprindo-o, o grande mistério do plano divino; porque determina harmoniosamente a coerência mútua dos seres opostos, dos mais próximos aos mais longínquos, dos menores aos maiores, e assim os conduz por um regresso progressivo à sua unidade em Deus...” Nas suas viagens pelo mundo, Camilo Maria, além de uma maleta de cabine em que levava alguma leitura e papel para escrever, e da mala da roupa, tinha sempre outra, mais pesada, cheia de livros. Quando lhe perguntavam o que nela trazia, invariavelmente respondia: "É a minha maquilhagem!"
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 13.08.13 neste blogue.
ONDE SE FALA DO «RAPTO DO SERRALHO»… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Já passou meia semana da minha estadia em Viena, no Sacher. Encontrei cá, imagina!, o nosso Camilo português, que integra uma delegação a uma reunião interministerial da EFTA, cuja presidência é, neste momento, austríaca. Íamos todos a sair - eu e uns cinco portugueses - aqui do hotel para... (é só atravessar a rua!)... a Wiener Staatsoper, onde assistimos a uma magnífica "Die Entführung aus dem Serail", dirigida pelo Karl Böhm. "O Rapto do Serralho" tem sido, desde a sua estreia no Burgtheater de Viena, a 16 de julho de 1782, uma (senão a) das mais populares e representadas óperas de Wolfgang Amadeus Mozart. Tem um sabor especial vê-la aqui, nesta cidade que os turcos otomanos tentaram por quatro vezes conquistar, a última das quais em 1683. Vive-se mais esse sentimento do "turco", como receio de ameaça secular, mas como curiosidade também, e gosto do exótico e certas modas, incluindo a pastelaria que até toma a forma do crescente ("croissant"). E essa desforra popular ("folclórica") que faz do tema do sultão apaixonado pela bela europeia cristã, que o repudia e engana, o "leitmotiv" de contos e peças de teatro, de inúmeras "singspiele" e óperas... O mesmo Mozart, antes do "Rapto", compusera uma "singspiel", cuja heroína é Zaïde - nome que daria, mais tarde, o título a essa opereta incompleta - escrava cristã do harém do sultão Solimão, de onde foge com o seu amante Gomatz, com a cumplicidade de Allazim, "renegado" cristão, hoje braço direito de Solimão. Apanhados pelo feroz Osmin (que reaparecerá no "Rapto"), capitão da guarda do sultão, serão, mais uma vez, salvos pela intercessão do "renegado". Este, na verdade, quando comandava um navio espanhol no Mediterrâneo, livrara a galera turca - em que Solimão, ainda jovem, seguia - de um ataque de piratas. Mas, enquanto a galera turca pôde assim fugir do perigo, o vaso de guerra espanhol foi surpreendido por uma esquadra de piratas, e Allazim, depois de preso, vendido como escravo ao próprio sultão e obrigado a converter-se... Surpreendido pela revelação de que Allazim fora o seu salvador, Solimão é clemente e salomónico: Zaïde e Gomatz são perdoados e poderão partir; mas Allazim deverá ficar com ele, pois maior amigo não tem nem pode ter! "Dein Edelmut, Allazim, hat den weg zu meinem Herzen gefunden... A tua nobreza, Allazim, encontrou o caminho para o meu coração. Um muçulmano pode ser tão generoso como um espanhol! Libertai-os, portanto, e conduzi-os a um navio que veleje até à pátria deles. Adeus Zaïde, adeus Gomatz. Procura ser digno dela. Mas tu, Allazim, não me deixes. Ajuda-me a tornar-me tão nobre como tu. Isto não é ordem de senhor, é pedido de irmão." Assim acaba a "Zaïde". Esta história leva-me à bacia do Mediterrâneo nos séculos XV a XVIII, tal como a descreve Fernand Braudel. E a outras histórias de corsos, razias, raptos, apostasias e regressos, escravizações e resgates, conflitos, tréguas e alianças. Lá irei, é fabulosamente tentadora a viagem por esse mundo em que judeus, muçulmanos e cristãos - e tantos povos e etnias da Europa, do Médio Oriente e do Norte de África - se relacionaram. Mas vou primeiro ao tema das óperas: a paixão não correspondida do sultão pela europeia, a tentativa de fuga desta com o seu namorado, a perseguição movida pelo carrancudo, vingativo e ambicioso capitão de guardas, o inesperado intercessor, a magnanimidade final do altivo soberano muçulmano, tudo isto se repete - desde a "singspiel" de Christoph Friedrich Bretzner "Belmonte und Konstanze oder die Enfuhrung aus dem Serail", levada à cena em Berlim com música de Johann André - em inúmeras realizações de compositores do século XVIII. E tem analogias com obras de Gluck ("La Rencontre Imprévue"), Haydn (“L’Incontro improviso”) e ainda "L’Italiana in Algeri" ou "Il Turco in Italia" do Rossini (onde a heroína, aliás, se chama Zaida)… A "ameaça" otomana pesou seriamente sobre a Europa cristã durante século e meio, desde a tomada de Constantinopla em 1453 até ao tratado de Carlowitz, em 1699, que devolveu a Hungria e a Transilvânia aos Habsburgos austríacos. Pelo meio, estiveram os reinados de Carlos V (1516-1556) e de Solimão, o Magnífico (1520-1566), com a autoridade do imperador cristão contestada por Francisco I de França, que se aliou aos turcos, com desfeitas de um e de outro lado. Antes e depois da batalha naval de Lepanto (1571), quando a coligação da Santa Liga, organizada pelo papa S. Pio V e comandada pelo bastardo João de Áustria, travou o avanço otomano. Já Carlos e Solimão não estavam cá. Nem François. Por entre conquistas e reconquistas, vitórias tão efémeras como derrotas, movia-se o corso e a pirataria, o comércio "internacional", com e sem carta. Como o dos Barbaroxa. E iam caindo nas redes dos interesses políticos e mercantis uns surpreendidos pela ganância dos outros. Mais ou menos inocentes ou aventureiros, desde meninos e meninas colhidos nas razias costeiras até tripulantes e guerreiros em navios de combate ou comércio. Ou prisioneiros de guerra, como portugueses depois de Alcácer-Quibir (1578). Surge daí um universo de destinos vários, tratados, muitas vezes, mesmo pela Santa Inquisição, de modo mais tolerante e benévolo, do que o reservado aos hereges cristãos, ou aos judeus e marranos, na cristandade: protestantes e judaizantes eram uma sabotagem interna; renegados, circuncisos conforme a lei islâmica, podiam ser um alívio, uma diminuição das forças do inimigo. Mas também me parece que o grau de miscigenação - aliás estimulada, curiosamente, por ambas as partes, muito embora os maometanos tivessem alguma vantagem na oferta, aos homens, de um estatuto de relacionamento sexual mais...agradável - apontava para a possibilidade de assimilação afetiva, tanto mais eficaz quanto, em tempo de guerrilhas e incertezas, cada um poderia guardar no coração a sua fé, desde que convencionalmente praticasse publicamente os rituais próprios da religião do seu príncipe... Já agora: não foi assim que se resolveram guerras de "religião" na Europa cristã coeva? Entre papistas e reformados: "Ejus religio cujus regio". Li algures que Gaspar Ramos, um pagem português, feito prisioneiro em Alcácer-Quibir, foi levado à conversão à fé maometana pelo seu novo senhor, alcaide do rei vencedor El Mansour. Anos mais tarde, depois de circunciso, foi-lhe dada em casamento uma jovem moura. Com ela terá regressado a Portugal, ao cabo de trinta anos, em 1610, para viver na cristandade. Contei esta casualidade ao nosso Camilo. Sorriu e disse: "Por essas e outras, o tio ainda vai levar na touca..." Retorqui: "Na minha idade, posso levar à vontade, tenho cabeleira robusta. Mas tu, meu rapaz, já estás muito careca: não desenvolvas este nem outros temas, no teu jeito platónico de que a ideia tem sempre prioridade..." Mudei-lhe o sorriso em riso amigo. Mas receio que, quando chegar à minha idade, tenha desgostos. Sobretudo se não corrigir esse gosto de abrir, sem preconceitos, os olhos ao mundo. É tarde, vou dormir, bem preciso. Mas voltarei a partilhar contigo estas e outras histórias, em mil e uma noites...de insónia, em que só as estrelas nos falam."
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 09.08.13 neste blogue.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA "STIFFELO" E O PECADO DO REMORSO
1. Verdi em estreia portuguesa em 2004? À primeira vista parece incrível. Mas os mais verdianos saberão que quatro óperas de Verdi nunca se estrearam em Portugal. "Un Giorno di Regno" - a segunda ópera do compositor - estreada em 1840; "I Lombardi alla Prima Crociata" (1843), "Alzira" (1845) e "I Masnadieri" (1848). Podia ter sido qualquer dessas, obras de Verdi entre os 27 e os 34 anos (período para o qual se usou e abusou da expressão "jovem Verdi"), mas não foi. É que faltava uma quinta ópera, desaparecida durante mais de cem anos e que não é passível de inclusão no verde Verdi: "Stiffelio", estreada em Trieste em novembro de 1850, cerca de um mês depois dos 37 anos do autor. Apenas quatro meses mais tarde, estreou-se o "Rigoletto". "Stiffelio" situa-se exatamente antes desta ópera e depois da "Luisa Miller". Sabe-se que a ópera foi muito mal recebida (mas o mesmo sucedeu em 1853 com a estreia de "La Traviata" e conhecem-se as voltas que o mundo deu), sabe-se que houve inúmeros problemas com a censura (mas também os houve com "Rigoletto"). Como explicar que Verdi tenha deixado cair "Stiffelio" e se tenha mesmo oposto a uma segunda apresentação da ópera no Scala? Como explicar o desaparecimento do manuscrito? Nenhum mistério por aí além, pensou-se durante muito tempo. Irritadíssimo com os cortes da censura e com as alterações ao libreto original (de Francesco Maria Piave, seu colaborador regular entre "Ernani" e "La Forza del Destino", ao longo de cerca de 20 anos), Verdi (ou Verdi e Piave) decidiram "congelar" a ópera e repô-la em melhores tempos. Esses tempos pareceram chegados em 1857, quando a Ópera de Rimini lhe encomendou uma nova obra. Verdi pediu a Piave que "restaurasse" Stiffelio e apresentou Aroldo que, sob outro nome, contava a mesma história e cantava a mesma música. Não foi melhor sucedido. Apesar do acolhimento triunfal que Rimini lhe prestou, crítica e público manifestaram o seu desencantamento face ao que logo foi chamado "Stiffelio riscaldato". "Aroldo", estreada em S. Carlos a 25 de novembro de 1860 (repetida em 1863), andou por aí, certo é que longíssimo do sucesso e da fama das outras óperas de Verdi dos anos 50 e 60. Não é necessário compará-la à santíssima trindade do "Rigoletto", do "Trovatore" e da "Traviata". Mesmo que o termo de comparação seja "Les Vêpres Siciliennes" (1855), "Simon Boccanegra" (na primeira versão, a de 57). "Un Ballo in Maschera" (1859), "La Forza del Destino" (1862) ou "Don Carlos" (1867), "Aroldo" sumiu-se. São Carlos, no século XIX bom barómetro para coisas dessas, reflete-o. Os outros títulos sucedem-se, "Aroldo" ficou-se por duas temporadas. Há quem diga que Verdi, supersticioso e com horror a fiascos ("la maledizione"), chegou a pensar numa terceira vez. Mas terceira vez não houve. Ou melhor, só a houve quando, em 1968 (após a descoberta de duas partituras em Nápoles), se deu a reposição moderna de "Stiffelio", em Parma. A saga da ópera não terminara. Em Viena, achou-se, nos anos 70, novo manuscrito. Com base nos três, se procedeu à edição crítica da ópera e a aplaudidíssimas novas produções no La Fenice (1985) no Covent Garden (1993) e no Met, também em 1993. Foi esse "Stiffelio" que agora chegou a S. Carlos. Dancei muito nos anos? Resumi erudição alheia, vária dela colhida no estudo de Luisa Cymbron, publicado no programa de Lisboa? É bem certo. Mas é ainda mais certo que este "Stiffelio", nada "riscaldato", me fez recuar aos anos 50, 60 e 70 do outro século, quando Lisboa bebia do mais fino. Um elenco, como o que foi reunido para esta estreia, a começar na "minha" Dimitra Theodossiou e a acabar em Mário Malagnini, passando - com que passada! - por Carlo Guelfi, já o não esperava ouvir em vida minha, em S. Carlos. Nele e na revelação de uma ópera que eu quase desconhecia, estão as razões de ser desta operática crónica.
2. Vou-me agora a mim, que me ponho sempre a jeito. Quando Verdi se me revelou, coisa de há cinquenta anos (um "Otello" de 53, com Ramon Vinay e Tito Gobbi; um "Don Carlo" de 54, com Italo Tajo, Tito Gobbi e Giulieta Simionato, um "Ballo in Maschera", também de 54, com Tito Gobbi, Lucia Danieli e Elizabetta Barbato) nada existia em forma de disco ou em forma de S. Carlos, anterior ao "Rigoletto". As exceções eram o "Nabuco" (1842), o "Macbeth" (1857) e a "Luisa Miller" (1849) ou vá lá, para gente mais metediça em caixotes de 78 rotações, o "Ernani" (1844) e o "Attila" (1845). Tive que esperar pelos anos 70, já eu tinha a idade que Verdi tinha quando compôs o "Stiffelio", para comprar e ouvir (ver nunca) as óperas do "jovem Verdi", por esses anos saídas em catadupa. Cada uma delas me foi revelação ou reverdição, muitos anos antes dos anos compactos. Com a mania herdada do cinema e da "política de autor", comecei a fazer catálogos de temas recorrentes e a encontrar, em cada uma delas, as matrizes do Verdi maduro, que, para mim, nessa época, começavam no "Attila" e no "Macbeth" e não no "Rigoletto" ou no "Trovatore". "L'onda de suoni misticí", essa onda e esses sons que inauguraram o "Senso" de Visconti. Não tenho tempo, nem espaço, para vos introduzir a esse catálogo ou sequer para o resumir. Vou-me limitar a três temas que reencontrei no "Stiffelio".
3. O tema do nome Do "Rigoletto" ao refeito "Boccanegra" de 1881, não há praticamente ópera em que ele não esteja presente. Gualtier é o "caro nome" de Gilda, mas esse nome, que assim a fez palpitar, não era o de um estudante pobre, mas o de um disfarçado duque. Manrico só no final do "Trovador" descobre que o Conde de Luna, seu arqui-rival, era seu irmão e a identidade dele é o segredo e a vingança da velha cigana e a maldição da avó queimada viva. Mesmas ocultações, mesmas identidades trocadas no "Simon", no "Ballo" e em "La Forza del Destino", etc. Pois bem: o Stiffelio titular da ópera que agora vi apareceu a Lina, sua mulher de perdição, sob o nome de Rodolfo Müller. Da primeira vez que ficam sós, após o triunfal regresso do pastor protestante, quando os temas da traição e da infidelidade já se infiltraram por todos os poros da música e das palavras, é por Rodolfo que ela o volta a chamar. A Theodossiou disse esse nome de maneira incomparável. E logo cantou: Rodolfo Müller: "Egli è il dolce nome / Col quale vi chiamai la prima volta." E, embora nada haja de comum entre a duplicidade de Lina (assim se chama a mulher de Stiffelio) e a ingénua pureza de Gilda, é, na diferença de nomes que está toda a diferença ("mai s'avvezza / a chiamarvi Stiffelio il labbro mio"). O desdobramento atinge o cume na prodigiosa cena da confissão. É já no terceiro ato, quando Stiffelio quer consumar o divórcio e pôr à prova o duvidoso amor de Lina. Esta decide-se a assinar o documento que consumava a separação. Mas, depois, dirigindo-se, não a Stiffelio, mas ao sacerdote Rodolfo que ele acabara de eliminar, ao homem do Evangelho, diz-lhe surpreendentemente (uma das muitas ousadias da ópera que a censura de 1850 cortou): "Ministro, confessatemi!" Stiffelio, atónito, pergunta-lhe o que ouvirá. E Lina responde-lhe: "Tudo aquilo que Müller não quis ouvir" ("Quanto Müller voluto udir non ha"). Para lá do escândalo, à época suscitado pelo perdão de um padre protestante a uma mulher adúltera pelo divórcio, pelos encontros clandestinos dessa mulher com o ex-amante, o que mais deve ter perturbado é a permanente dualidade (ou triplicidade) que Lina sempre confere ao marido. Ele é Rodolfo, o homem que amou e com quem casou ainda antes do início da ópera, ao tempo humilhado e desprezado; ele é Stiffelio, o herói regressado do mar e amado pelas gentes de Salzbach (onde se situa a ação): ele é o ministro de Deus, aquele que só perdoa "profissionalmente", quando, investido ou recordado da sua função sacerdotal, mas que, como marido ou como reaparição do antigo Rodolfo, nunca na verdade perdoa. Aquela mulher apaixonou-se por um nome e esse "dolce nome" evola-se na música. Nesse sentido, a primeira ária de Lina ("Questa misera tradita") é um prodígio de ambiguidade dramática.
4. O tema da mãe Como Gilda, como Alfredo, como as Leonoras, Lina não tem mãe. Tem sido notada, analisada e psicanalisada, essa ausência permanente nas óperas de Verdi, por contraste com a presença fortíssima dos terríveis pais. A única mãe das grandes óperas de Verdi é Azucena, mas é a mãe que queimou o próprio filho e que adotou um outro que por essa maternidade se perde. Em "Stiffelio", mais uma vez, é o pai (Stankar) a figura dominante e todas as suas contradições se volvem contra a filha. Impõe-lhe o silêncio para salvar a honra da família, mas no cemitério é ele quem tudo revela, quando assiste ao aperto de mão entre o marido e o amante de Lina. Ora, a esse cemitério, Lina fora não só para o encontro com Raffaele, como para rezar junto à campa da mãe. "Ella si pura!... ed io!..." Essa prodigiosa ária, em que se invoca aquela que, lá do assento etéreo onde subiu, pode alcançar o perdão para a filha, é interrompida pela chegada de Raffaele, aquele que um dia a fez feliz. E ambos invocam, antes da chegada do pai, o pecado do remorso. E é esse pecado do remorso o terceiro dos temas recorrentes de Verdi, mas nunca, como em "Stiffelio", tão esmagadoramente dominante. Em torno dele, e do lugar que esse tema ocupa na obra dos românticos alemães e particularmente de Klopstock, se compreende o lugar fulcral que o "Der Messias" desse poeta ocupa na ópera, livro dos segredos de que só Lina tem a chave. O "Messias" de Klopstock era aquele que viria curar a humanidade do remorso, apagando a culpa e reforçando a harmonia. Verdi rondou sempre esse pecado total, cerne da sua obra e da culminância dela. Por isso, todos os protagonistas de "Stiffelio", como os de Klopstock, são protagonistas do remorso. Nas vozes incomparáveis de Theodossiou e de Guelfi, foi esse o pecado sem expiação possível que atravessou estas inolvidáveis récitas. Obrigado, Paolo Pinamonti!
por João Bénard da Costa 11 de junho 2004, Público
O MEU SONHO VESTIU-SE DE TURANDOT por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
O meu sonho vestiu-te esta tarde de Turandot... Vê tu bem, sonho muitas vezes acordado, até em charlas à hora do chá, com senhoras japonesas! Cabias imensa no abraço da nossa ternura, quando a Callas, na gravação de 1957, no Scala de Milão, clamava cantando: "Padre Augusto...connosco il nome dello straniero! Il suo nome é... Amor!" Vencida pelo amor de Calaf, que acertara na resposta aos três enigmas e assim escapara à morte reservada aos seus pretendentes, Turandot, a filha do imperador da celeste China, todavia tivera o destino dele preso pelo capricho dela. Se tivesse querido, denunciaria ao povo o verdadeiro nome desse príncipe desconhecido, não por tê-lo descoberto mas porque ele lho confessara. Confissão feita, não por obrigação, mas por renúncia à reclamação do direito que sobre ela já tinha como consequência do acerto com que respondera aos enigmas. Calaf, o príncipe desconhecido, não a quisera por direito de conquista, e por isso lhe dera, a ela, a oportunidade de o repudiar e condenar à morte, já fora do prazo estipulado no concurso: se Turandot adivinhasse o seu nome, ele renunciaria e entregar-se-ia à fatal sentença da Filha do Céu. É assim a entrega do amor: faz-se em função da pessoa amada, não em função de si mesmo. Na ópera de Puccini, a revelação final, o apocalipse do nome dele é também a descoberta do íntimo nome dela, que nunca quisera ou sempre receara proclamar. As perguntas enigmáticas, falam mais de desejo de vida do que de sentença de morte: "que fantasma alado vagueia pela noite, se abriga no coração, mas morre pela manhã?" Calaf responde: "La speranza!" E depois: "O que é que surge como chama, se enche de febre ou enfraquece, vermelho como o sol poente?" Hesitante, ainda grita: "Il sangue!" Finalmente, a terceira e última pergunta, a que define a pessoa: "Gelo e fogo, claridade e escuridão, fazendo de vós um escravo ou talvez um rei?" O príncipe contesta: "Turandot!" A princesa não aceitará de bom grado a verdade forte que a venceu. Ele não teima em reclamar, antes a põe, à quase deusa, perante o dilema de lhe descobrir o nome (e ele aceitará a morte) ou de se revelar o nome íntimo dos dois... "Amor omnia vincit". O libreto da ópera, por Giuseppe Adami e Renato Simoni, adapta uma peça do veneziano Carlo Gozzi, escrita no século XVIII, já fora alvo de diversas adaptações, até operáticas, algumas delas inspiradas na tradução de Gozzi por Schiller. Para mim, expliquei eu às madamas nipónicas, nesta ópera - aliás terminada por Alfano, por escolha de Toscanini, depois da morte (e aproveitando notas) de Puccini em 1924 - ressalta, mais do que o conflito da crueldade com o amor e a vitória deste, a descoberta do amor inscrito no coração dos homens, como princípio de criação e de vida nova. Daí saí para a "Lohengrin", em que sinto o inverso: Wagner vai buscar à mitologia teutónica as forças que se aniquilam, aquele misterioso impulso para a destruição que encontraremos também na "morte de Deus" de Nietzsche ou na barbárie nazi. Não deixa de ser curioso que ele - familiarizado com a poesia medieval alemã, onde aliás encontrou também inspiração para os "Meistersinger", "Parsifal", "Tannhäuser" e o próprio "Lohengrin" - não se tenha deixado tentar pelas promessas de um lirismo mais doce que, mesmo quando ensombrecido pelo pressentimento de algo que se possa recear, cantava o encanto chão das coisas humanas e possíveis. Como nestes versos de Walther von der Vogelweide, cujo alemão arcaico tanto lembra o inglês que conhecemos (a inversa é que é verdadeira, claro...) que recitei às minhas ouvintes atentas, pelo seu clima " japonês" (a natureza envolvente): "Unde der linden / an der heide, / dâ unser zweier bette was, / dâ mugt ir vinden / schône beide / gebrochen bluomen unde gras. / Vor dem walde in einem tal, / tandaradei, / schöne sanc diu nachtegal..." Debaixo da tília, no chão onde foi a cama da nós dois, podereis achar, lindamente pisadas, as flores e a erva. Na orla do bosque, num talude, riu piu piu, que bem cantava o rouxinol! Contemporâneo de Vogelweide é Wolfram von Eschenbach, que celebra uma dama que, ao nascer do dia, acorda nos braços do seu nobre amigo, e grita ao dia: "Já não pode o meu amado ficar ao pé de mim. Pois de mim o afasta a tua luz". É ele o autor do " Niebelungenlied", em que "se narram inúmeras maravilhas, que falam de gloriosos heróis e de penosas provas..." Há aí evocações de távolas redondas e amores proibidos, tabus antigos como a Grécia, em que - o próprio Wagner o refere pelo mito de Zeus e Semelé - não podem durar as relações entre os deuses e os homens, pois a satisfação do desejo é destruidora. Quando Kriemhild, "cujo coração puro quisera renunciar ao amor, e vivera muitos dias sem conhecer um só homem que quisesse amar... ...desposou um muito valente homem de armas", tudo a conduziu à verificação real do sonho em que "certa noite vira um belo falcão, forte e ousado, que ela criara, ser despedaçado por duas águias". É mais ao pessimismo germânico, a esse medo de deuses malévolos e espíritos malignos, espreitando-nos do frio escuro de misteriosas florestas e pântanos, que Wagner vai buscar a inspiração para contar amores humanos, excessivos e desprotegidos. Na "Lohengrin", uma maldição paira sobre os cavaleiros do Graal, um freio posto por poderes luminosos mas obscuros os trava e proíbe de pronunciar o nome e a linhagem. Como Kriemhild, Elsa von Brabant apaixona-se: eis que, no momento exato da humilhação final da dona por Friedrich von Telramund - o rejeitado pretendente à dama e à coroa que, sob o feitiço da bruxa Ortrud, a acusa de ter morto o irmão, herdeiro do Brabante - a salva um guerreiro desconhecido (aí tão ignoto como o príncipe da Turandot), que lhe conquista a mão e o amor que, afinal, já a habitava (tal como Turandot reconheceria Calaf já dono do seu coração...). A celebração do enlace dos amantes obedece a uma condição: Elsa nunca deverá perguntar a Lohengrin qual o seu nome, nem a sua linhagem. Mas qual Orfeu, olhando para trás para ver se Euridice o segue no regresso à superfície da terra da vida, Elsa pede uma resposta. Lohengrin poderia ter respondido como Turandot dando um nome a Calaf. Neste caso: o meu nome é amor! Mas não confessa. Fica sujeito à lei da cavalaria a que pertence. Ponho a tocar a "Lohengrin" que trouxe, uma gravação de 1964, com a Wiener Philarmoniker, dirigida pelo Rudolf Kempe, sendo Jess Thomas o Lohengrin e fazendo de Elsa a Elisabeth Grümmer. As madamas nipónicas ouvem de olhos cerrados e coração presente, o pranto suplicante de Elsa: "Bist du so göttlich,als ich dich erkannt,sei Gottes Gnade nicht aus dir verbannt!" Sei agora que vens de Deus, não rejeites a sua misericórdia! Se esta infeliz pelo sofrimento, expia a sua culpa, não a prives da tua presença! Não me repudies, por maior que seja o meu crime! E a resposta "justiceira" do guerreiro: Já o Graal se irrita com a minha demora! Assim terá de ser, assim terá de ser: seremos separados, arrancados um ao outro! As damas gostam da música, impressiona-as o rigor do mito. Para alívio lhes conto a história de Cupido, filho de Vénus, e de Psyché, de quem a deusa do amor inveja a beleza. Psyché também quer conhecer a verdadeira identidade do seu amante, mas Cupido não quer revelar-se. Instigada pelas irmãs, ela tenta apunhalá-lo, durante o sono, para lhe descobrir a alma. Mas ele acorda e ela foge. Ele persegue-a, não para se vingar, mas para lhe pedir que se case com ele. E Zeus acederá a uni-los. Tranquilas, mais confortadas, as senhoras pedem-me mais uma história bonita. Conto-lhes o encontro de Zéfiro com Flora, e como o vento levou a Primavera para se casar com ela e depois a deixou ser rainha das flores e dispensadora do mel. Sorriem. E eu com elas, a pensar no que lhes não digo e te recordo agora: Mandaste-me, há anos muitos, um postal de Nova Iorque, com o casamento de Cupido e Psyché do Andrea Schiavone, exposto no Metropolitan. Dizias só: "Cupido serás, mas eu de Psyché nada tenho. Que nome me darias?" Respondi-te de Frankfürt, num postal ilustrado com outro quadro de um italiano de quinhentos, Bartolommeo Veneto: "Flora". E repito de cor o que te escrevi então: "Esta minha cabeça, Santo Deus! / (Será da idade ou do muito amar?) / Não acerta os pensamentos meus / na oportunidade de os acertar... / O Olimpo percorro sempre à procura / do nome que a minha deusa tem... / Mas tonto, em desvario, nessa altura / não dou com nome que te fique bem! / Quedo-me desgostoso, sem dormir / (Eu, feito pr’ó sono e pr’à preguiça!) / mas, mesmo sem cabeça, eu acho agora / um nome que me alegra e me faz rir, / promessa, primavera tão noviça: / fosse eu sempre Zéfiro...e tu Flora!" E não lhes disse. Fiz duas boas ações: fui-te fiel e poupei-lhes ciúmes escusados. Para encerrar a sessão, voltei à Turandot que grita "Il suo nome é Amor!" e o povo rejubila: "Amor! O sole, vita, eternitá! Luce del mondo é amore! Ride e canta nel sole l´infinita nostra felicitá! Gloria a te! Mas, de regresso ao hotel, com saudades tuas, ia cantarolando o lamento de Orfeu na música de Gluck: "Ché faró senza Euridice..." Traduzi esta carta de Camilo Maria ao som das mesmas músicas...mas em CD!
LITERATURA E MÚSICA por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
"Regresso de Kyoto a Tokyo, mas não escapo às associações recreativas de senhoras japonesas. Num jantar na embaixada de França, fico à mesa presidida pela embaixatriz, ao lado da Senhora Totomi, próxima da família imperial e presidente de "Les Amies de la Langue Française", clube de senhoras da "alta", que reúne japonesas eruditas e outras francófonas do corpo diplomático. A dama é do tipo arredondado - de corpo e espírito - esperta e bem humorada. Fala-me do seu grupo de cultura e recreio, e desafia-me a entretê-las, num chá, com uma charla sobre literatura e música francesa. Animado pelo Château Margaux, digo-lhe que mais facilmente lhe diria sim se o grupo antes se chamasse "Les Joyeuses Filles de la Langue Française" ou "Les Parlantes de Français Galant"... Ri-se, com a mão gordinha, como terceira bochecha, a esconder-lhe a boca gulosa, e concede: "Chame-nos o que lhe parecer bem, mas tenha a gentileza de nos falar de literatura e música!" Assim me arrancou um assentimento condicional: proponho-me levar-lhes algumas poesias em várias línguas europeias, todas elas traduzidas em música, ou temas que a literatura e a música tenham coincidentemente tratado. E prometo não esquecer discos que as reproduzam. Não recorrerei sempre a libretos de ópera, nem a letras propositadamente feitas para canções... Assim se desenhou o programa que contigo aqui partilho. Apetece-me começar pelo alemão, não por me dirigir a francófonas, nem por me ser familiar, mas por me ocorrer a semelhança dos apelidos do poeta (Christian Schubart) e do compositor (Franz Schubert). Ou por me acontecer trautear a "Die Forelle" quando estugo o passo na pressa de ir fazer chichi. Brinco. O "lied" de Schubert - que ouvi pela primeira vez adolescente ainda - canta as palavras de Schubart, começando ledamente assim: "In einem Bächlein helle, / Da shoss in froher Eil/ Die launige Forelle, etc... Num límpido ribeiro, alegremente, a truta foge, viva, veloz e caprichosa. E eu na margem, em doce sossego observava o alegre banho da bela na clara água do ribeiro. Ein Fischer mit der Rute, etc... Resumindo: esse pescador à linha, da margem vê o peixinho a mover-se, e o poeta pensa que ele não apanhará a truta com o anzol. Mas eis que esse ladrão, num movimento de onda, a prende, e o poeta sente, com o coração aos pulos, o debater da presa. Depois, o poema conclui com um aviso à juventude sobre o perigo da inconsciência, e com uma evocação erótica, que o "lied" de Schubert não retoma: "Denkt doch an die Forelle;/ Seht ihr Gefahr, so eilt!/ Meist fehlt ihr nur aus Mangel/ Der Klugheit. Mädchen, seht/ Verführer mit der Angel! Sonst blutet ihr zu spät...". Pensem pois na truta e se um perigo vier, fugi! A mais das vezes é por falta de prudência que pecais. Sede vigilantes, meninas de olhos doces, com os pescadores! Podereis sangrar tarde demais.
Uma das senhoras pergunta-me porque não escolhi antes a "Ode à Alegria" do Schiller, que é, afinal, um hino à amizade (seria então "An die Freunde" em vez de "Freude") que coroa a 9ª sinfonia de Beethoven. Respondo que "Die Forelle" me parece muito próximo do espírito da poesia japonesa pelo recurso à natureza como metáfora. E recito "tobu ayu no soko ni kumo yuku nagare kana", um "haiku" de Onitsura, que se pode traduzir mais ou menos assim: "um peixe voador...nuvens por debaixo, fluindo na corrente..." Ou seja: o peixinho, saltando, sobe o ribeiro (para ir desovar a montante)... e, refletindo-se nas claras águas, as nuvens parecem deixar-se levar para o mar... Alusão à efemeridade da vida: estes peixes ("sweetfish", em inglês) nascem no alto dos rios donde depois descem, na Primavera, até ao mar donde regressam, no Verão, para subirem contra a corrente e porem acima os seus ovos (como o peixinho do "haiku"). No Outono, regressam ao mar, para morrer. Vivem um ano só. Ponho a tocar no gira-discos "Die Forelle", cantada pela Elisabeth Schwarzkopf, acompanhada ao piano por Gerald Moore. E logo salto do alemão para o castelhano, da Germânia para a Hispânia. De Franz Schubert para Manuel de Falla, de peixes e nuvens, que as águas da vida percorrem, para flores e pássaros que a terra pára, porque é assim o tempo: corrente ou quieto, somos nós que passamos por ele. E ocorre-me a "arte poética" do Jorge Luis Borges: "Mirar el rio hecho de tiempo y agua / Y recordar que el tiempo es otro río, / Saber que nos perdemos como el río / Y que los rostros pasan como el agua." Antes de ouvirmos todos (devia dizer todas, sou o único homem na sala!) uns trechos de "La Vida Breve" do Falla, pela Orquestra Nacional de España, dirigida por Rafael Frühbeck de Burgos, e com Victoria de los Angeles no papel de Salud, leio-lhes uns versos da seguidilha, que são, como todo esse drama musicado por Falla, de Carlos Fernández Shaw: "Flor que nace con el alba / se muere al morir el dia. / Que felices son las flores,/ que apenas puen enterarse, / de lo mala que es la vía! / Un pájaro, solo y triste, / vino a morir en mi puerta; / cayó y se murió en seguía. / Pa vivir tan triste y solo / mas le vale haberse muerto!" Enquanto as damas escutam, em concentrado arrebatamento, calado vou pensando no meu próximo passo, numa ponte para um tema japonês. E surge-me a "Glover Mansion", em Nagasaki, que se celebra como sítio do amor letal de Cio-Cio San por Pinkerton, na "Madama Butterfly" do Puccini: "mutatis mutandis" (a localização e uns pormenores) está ali o tema de "La Vida Breve". Que é, penso eu, mais do que o do amor humano " traído", o da perplexidade enquanto incredibilidade onde a esperança morre. Porque, afinal, nem Salud nem Cio-Cio morrem, muito embora partam deste mundo. Permanecem na memória de muitos corações e testemunham o desengano, essa pena terrível. Será isso o inferno: não haver esperança? As madamas da sala lembram-se logo da "Madame Chrysanthème" do Pierre Lotti, que também inspirou outra ópera: a "Lakmé" do Delibes. Uma das senhoras, todavia, alvitra que o fogo inicial da japonesa abandonada se acendera já no século XVI, por um português marinheiro... A ária mais conhecida da "Butterfly" - e quiçá a mais bonita - é um canto de esperança que lhe sai do fundo da alma: "Un bel di vedremo / levarsi un fil di fumo / sul estremo confin del mare. / E poi la nave appare - poi la nave bianca / entra nel porto, romba / il suo saluto. Vedi? / È venuto!" Aproveito a emoção inesperada daquelas senhoras instaladas em vidas onde o amor, muitas vezes, é um episódio passageiro ou uma convenção, para lhes falar de uma perspetiva escatológica, que lhes é culturalmente estranha: o amor humano, porque gerador e portador de esperança, é uma promessa. E promessa é compromisso. Para um cristão, adianto, é um sacramento, um sinal do que se há-de cumprir um dia. "Un bel di vedremo...". Com tanta conversa e música, esqueci o tempo e esse jeito de as mulheres japonesas levarem a água ao seu moinho. Ficou combinado voltar e falar-lhes do nome que se diz ou não deve dizer: de Turandot e de Lohengrin. Depois te contarei. Vou agora escrever ao nosso Camilo Português: penso dar-lhe conselhos, mas afinal desabafo-lhe inquietações. Envelheço.
Adeus Princesa!"
A carta que Camilo Maria me escreveu e aqui refere manifesta a sua preocupação com a deterioração da consciência ética no governo das sociedades ocidentais. Publicá-la-ei, apesar de lhe sentir algum cansaço, que nem a ironia com que sempre nos fazia rir consegue disfarçar.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 07.06.13 neste blogue
Um dos fantasmas mais perturbadores da nossa história cultural é António José da Silva, o Judeu (1705-1739), nascido no engenho do avô materno, Baltazar Rodrigues Coutinho, no bairro da Covanca, em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Seu pai era João Mendes da Silva, advogado e poeta. Ainda muito jovem foi viver para a freguesia da Candelária. Cristão-novo, sendo vítima da perseguição que dizimou a comunidade do Rio em 1712. Contudo, conseguiu manter a fé judaica secretamente. Sua mãe, Lourença Coutinho, foi deportada para Portugal, acusada de judaísmo pela Inquisição. Seu Pai veio para Portugal para acompanhar o processo da mulher, exercendo a atividade de advogado. António José estuda, provavelmente, no Colégio de Santo Antão e, em 1722, inscreve-se para estudar Leis e Cânones na Universidade de Coimbra. Em 1726, interrompe os estudos, regressando a Lisboa onde é acusado num primeiro processo inquisitorial. Também sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar, são acusados de práticas judaizantes e condenados à abjuração. Em 13 de outubro, António é preso nos Estaus. Apesar de amigo do influente diplomata Alexandre de Gusmão, Conselheiro de D. João V, foi barbaramente torturado, tendo ficado inválido durante algumas semanas, sendo obrigado a abjurar no Auto-de-fé de outubro desse ano. Foi posto em liberdade, o que não aconteceu com sua mãe, libertada em 1729, depois de ter sido torturada e de ser considerada penitente num auto-de-fé. António José tem os seus bens confiscados e é condenado a pena de cárcere, hábito penitencial perpétuo e exigência de ser instruído nos mistérios da fé. Então voltou à dramaturgia depois de um curto período como causídico no escritório de seu pai com o irmão Baltasar. As suas sátiras têm grande sucesso, pela eficácia da crítica ao ridículo da sociedade, com referências frequentes à mitologia greco-latina. A única música operática que sobreviveu foi composta por António Teixeira. O sucesso artístico agravou, porém, a perseguição de que foi alvo. Nem a proteção do Conde da Ericeira impediu a perseguição.
Luís de Freitas Branco considerou António José da Silva o verdadeiro fundador da ópera nacional. Sem ele teriam decorrido trezentos anos da nossa história do Teatro, depois de Gil Vicente até Garrett, sem uma dramaturgia digna de registo. Pode dizer-se que António José da Silva simboliza no teatro português o período que corresponde ao reinado de D. João V, em pleno ideal barroco, envolvendo a luxúria e a ostentação de uma faustosa corte, beneficiária dos lucros do ouro do Brasil. Havia um chocante contraste entre a opulência e as misérias de uma sociedade frágil, pobre e atrasada e a Inquisição atuava impiedosamente, perseguindo judeus e cristãos-novos. Em 1733 representa no Teatro do Bairro Alto a sua primeira ópera, “A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança”. Morava então no Socorro, próximo do Teatro do Pátio das Arcas, que funcionava onde hoje é a rua Augusta, fundado por Fernão Dias de La Torre cerca de 1590. O teatro ardera em 1697, mas fora reconstruído como importante pátio de comédias, cujas receitas revertiam a favor do Hospital de Todos os Santos. Sente-se a influência da comédia espanhola, nomeadamente de Lope de Vega e Calderon de la Barca, designadamente pelo espírito inconformista segundo os ideais barrocos e os cânones usados em Itália e nos palcos europeus. O artista vive o espírito do tempo segundo uma arte menos retórica e mais ocupada com o deleite dos sentidos. António José da Silva escreve sobretudo em prosa, sendo que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; inserindo a música na intriga dramática, de acordo com o modelo de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano. No Teatro do Bairro Alto, numa sala do Conde de Soure, na rua da Rosa, adaptada às lides teatrais, chamada Casa dos Bonecos, António José faz representar entre 1733 e 1739 as oito óperas que lhe são atribuídas: D. Quixote (1733), Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), esta última quando o autor se encontrava encerrado nos cárceres da Inquisição. Em 1735, António José da Silva casa-se com Leonor Maria de Carvalho, antiga penitenciada em Valhadolid, de quem tem uma filha Lourença. As suas peças e representações obtêm grande sucesso de público e reconhecimento nos meios cultos. Após a morte do Conde da Ericeira foi denunciado à Inquisição. Em 1737 é preso com a mulher, a mãe, o irmão e a cunhada durante as cerimónias judaicas de Yom Kipur. Após um longo processo é condenado em 1739 de convicto, negativo e relapso, sendo relaxado em carne, garrotado e queimado. Em 1744, Francisco Luís Ameno publica “Teatro Cómico Português” (2 volumes) onde se incluem as oito obras de António José da Silva, sem menção de autoria. Trata-se do exemplo de quem representa a vitalidade da cultura portuguesa, impondo-se contra a cegueira da intolerância. Falando das extraordinárias guerras, com música de António Teixeira (1707-1774), estamos perante uma ópera joco-séria, na qual dois galantes, pinga-amores e caça-dotes, D. Fuas e D. Gilvaz procuram cair nas boas graças de duas irmãs ricas, D. Clóris e D. Nise, utilizando o criado de Gil, Semicúpio, cheio de graça, entusiasmo e genica. As meninas andam disfarçadas, mas revelam a sua identidade por levarem uma um ramo de alecrim, outra um ramo de manjerona. Semicúpio arma estratagemas para introduzir o patrão na casa da pretendida, mas acaba por se enamorar de Sevadilha, criada de Clóris. Se o avarento D. Lançarote, tio das meninas, deseja casá-las com seu sobrinho D. Tibúrcio não consegue graças às artimanhas de Semicúpio – e no final, desfeitos os equívocos da comédia de enganos, casam-se os namorados e Semicúpio com Sevadilha.
"O Amor das Três Laranjas", ópera em 4 atos de Sergei Prokofiev, é mais conhecida e escutada, na forma da suite sinfónica, do que outras raras produções teatrais e escassa discografia operática do mesmo autor. Subiu pela primeira vez à cena em Chicago, a 30 de dezembro de 1921, sendo o libreto da autoria do mesmo Prokofiev, escrito em francês com a ajuda de Vera Janocopoulos, a partir da fábula "L’Amore delle Tre Melarance" que o nobre Carlo Gozzi escrevera para o carnaval de Veneza de 1761. A fantástica história passa-se num imaginário reino de cartas de jogar, cujo soberano, o Rei de Paus, se vê impotente para travar o definhamento do seu único filho e herdeiro do trono, que padece de destruidora hipocondria... Na verdade, Leandro, primeiro-ministro (e Rei de espadas), deseja o trono e pensa obtê-lo, com a morte do príncipe herdeiro, pelo casamento com Clarissa, sobrinha do Monarca e segunda na ordem de sucessão.
Entretanto, como se crê que só o divertimento e o riso poderão curar o príncipe e salvar o Estado, cómicos, trágicos, líricos, excêntricos e tolos, todos concorrem com a oferta dos seus estilos e formas de distração, mas com a sistemática contestação dos ridículos... Finalmente, será uma maldição da fada Morgana, protetora de Leandro, condenando o príncipe e amar três laranjas, que irá salvá-lo. Do corte de duas laranjas que os homens fazem para matar a sede, saem duas princesas que de sede morrem; mas do terceiro e último fruto surge uma jovem linda, que Morgana ainda tenta transformar em rato, mas que é restituída ao esplendor da sua graça e casará com o herdeiro do trono, assim o curando e salvando o trono e o país.
É curioso observar como o libreto e a composição musical da ópera se processam a partir de maio de 1918, quando Prokofiev deixa Petrogrado para seguir para os EUA, via Vladivostock e Japão, após ter obtido do comissário do povo Lunatcharski autorização para deixar o país. A razão da partida é a necessidade de trabalhar em sossego. Ao compositor, eram-lhe indiferentes a revolução e a contra-revolução: "A mim. não me interessa a política, a arte nada tem a ver com isso. Evito pensar na política quando trabalho". Seria sincero, mas o certo é que regressaria à URSS, em 1936, ao que parece por razões de interesse próprio. "O Amor das Três Laranjas" é uma sublimação da dura realidade política e social através de uma fantasia irónica: afinal, o poder procura a sua continuidade, mas quem encontra solução é um hipocondríaco, rodeado de conspiradores, que pede propostas e iniciativas a uns quantos cómicos, trágicos, líricos e cabeças vazias, que os ridículos ora aprovam ora desaprovam, pois no fundo tudo querem, tal como nós, rindo de tudo... Nesta história, a salvação chega pelo amor de uma princesa surgida de uma laranja, que a sede desenfreada dos homens não chegou a destruir. E na nossa história real? A ironia vivaz, da suite sinfónica, que agora escutámos, aponta para esse incansável e insaciável "marketing" político que, todos os dias, nos coloca no meio de uma barafunda de pregões, de promessas e de protestos... Não sei porquê, ocorre-me o conselho de S. Domingos, fundador de uma ordem de pregadores, aos seus irmãos: que me apague, me tape, me esconda, para não esconder a voz do meu Senhor. Antes de falar, precisamos de silêncio. Fala-se demais, esquecemos que a agitação das palavras no frenesi dos discursos foi já sinal de grandes tragédias.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 17.08.2012 neste blogue.
Escuto a "Rusalka" do Dvorak, e penso em ti, ó Princesa das cartas que te escrevo! Serás essa mulher, serás visão, anseio, aparição, sonho místico mais do que amor real? Ao longo deste convívio epistolar, nasceu naturalissimamente, entre nós, uma intimidade antiga, por paradoxal que seja uma antiguidade nascer agora... Sei hoje que este convívio contigo é essencial ao meu equilíbrio interior, à minha alegria. Porque é renúncia a outros momentos e carinhos, tem-me feito perceber que, afinal, posso bem com saudades de coisas boas: a grande saudade de ti é ontológica, não se cura nem engana, faz parte de mim. Vivo continuamente com este sentimento de um encontro único, tão profundo e intenso, de ternura. Ternura inesperada, imerecida e simples, graça que dói por ser impossível alegria. Assim trago, dentro de mim, o inalcançável. Rusalka é o nome eslavo da ondina, ninfa da água ou sereia... Filha de Vodnik, o senhor das águas, a infeliz quer libertar-se das ondas suas irmãs que, todos os dias e noites, a enredam em nenúfares. Quer a liberdade do dia, a glória aparente da luz que, pálida, a desperta nas profundezas do lago. Daí também surge o espírito dos afogados, que procura agarrar e levar ao fundo as ninfas do bosque, que lhe fogem e se riem dele. Rusalka conseguiu trepar por um salgueiro chorão e assiste à frustração de quem, como ela, habita as águas e não é ser humano com pernas para correr à superfície da terra... A seu pai confessa a tristeza de não ser e o anseio de ser humana. Vodnik pergunta-lhe se quer ser infeliz e mortal, e prenuncia-lhe um destino desgraçado se fugir à sua condição de ser aquático. Como era o mundo, penso eu, antes de existir, quando o espírito de Deus pairava sobre as águas. Ou como cada um de nós, de olhos fechados, nas águas do ventre materno. Mas a paixão da ondina é mais forte, é já humana: não resistiu ao encanto de um príncipe que se vem banhar nas águas misteriosas do lago dela, onde ela é só a vaga que o abraça e ele não vê, onde só ela ama e não se sente amada. Por amares humanamente infeliz serás, prediz o pai. Mas infeliz, tão infeliz sou eu agora, pensa ela, pois que o meu amado não conhece o meu amor! E à lua que de tão cheia inunda o ar todo, a floresta inteira, o próprio lago, Rusalka (na mais linda ária da ópera) reza e suplica: Ó lua, que do alto desse céu de veludo rompes a noite e te passeias pela extensão da terra, e vês longe, e com teu olhar afagas os lares dos homens...pára, espera por mim! Diz-me onde está o meu amor! E diz-lhe, a ele, ó lua de prata, que é o meu abraço de água que o encerra, para que de mim se lembre nos seus sonhos! Não me abandones, ó lua, não te vás embora, sem o ires buscar e lhe alumiares o caminho até mim... Diz-lhe que aqui estou, aqui o espero. E se for eu o sonho dessa alma humana, desperta-a para mim! A feiticeira que a libertará e lhe dará pernas, adverte-a: "se não encontrares o amor na terra, viverás repudiada, de novo condenada às profundezas. Se perderes esse amor, que tanto desejas, a maldição dos senhores das águas, no fundo delas outa vez te afogará. E mesmo que encontres esse amor, terás de sofrer, pois nenhum ouvido humano poderá escutar-te... Queres tu ser muda para quem amas? A resposta da ondina é trágica: - "Se for para conhecer o seu amor, podes crer, que com prazer aceitarei ser muda!" Mas poderá, mesmo tão generoso e puro, se for já humano, um amor vencer tantos sortilégios? A ópera de Antonin Dvorak, seguindo o libreto de Joraslav Kvapil, diz que não. Nenhum amor humano vence a sua condição. Pela alvorada, o príncipe vai correndo o seu ginete em perseguição de uma gazela branca e maravilha-se com a descoberta de Rusalka, muda e branca, branca, fria e bela... Arrebata-a para o seu palácio. Anunciam-se as bodas do príncipe com a senhora do seu encantamento. Mas a ondina permanece muda e fria... Em desespero do seu anseio, o noivo cai na trama de uma princesa estrangeira que o cobiça. O ciúme de Rusalka frustra-a ainda mais de uma redenção possível do anseio amoroso. Só se liberta da mudez que a torna incomunicável chamando pelo pai, Vodnik,o senhor das águas, que finalmente a arrasta para as profundas do lago. De onde a ondina, lembra-lhe a feiticeira só poderá libertar-se apunhalando o príncipe, fazendo correr o sangue humano, vermelho e quente que ela em si não tem. Rusalka nega-se, mas, fogo fátuo, aparecerá ao amado que a procura no bosque, e pela derradeira vez o abraçará, pela primeira o beijará. Sabendo ambos que esse beijo o matará. Mas nós não sabemos se esse príncipe que por amor morre irá, nos braços feiticeiros, poderosos e impotentes, da onda Rusalka, perder-se com ela na eternidade das águas iniciais. O dueto final é, mais ou menos, assim: Príncipe - "Quero tudo, e tudo dar-te! Beija-me, beija-me mil vezes! Não quero regressar, prefiro morrer! Beija-me, dá-me a paz!" Rusalka - "O meu amor arrefece qualquer sentimento: devo destruir-te, devo acolher-te no meu abraço de gelo... Pelo teu amor, pela tua beleza, pela tua paixão tão humana e tão inconstante, por tudo o que causou a maldição do meu fado, por todo esse tanto, alma humana, Deus te guarde!" A sereia inefável, silenciosa, e tão pálida que é invisível transparência, é a forma enigmática desse anseio que connosco nasce, que nenhum desejo realizado satisfaz, nem ilusória posse iludirá. Ser humano é querer sempre mais, é o desejo de chegar ao impossível. Mas só a verdade nos libertará. E a verdade em que acredito é uma promessa: a de que, no fim deste percurso, veremos o invisível, poderemos o impossível, e encontraremos, lá no fundo das águas que nos engolem, a luz que ainda não temos bem a certeza de ver acesa dentro de nós. Talvez por ela, todavia, haja sorrisos e olhares que trocamos, uma mão estendida e dada, uma palavra, um apoio, uma entrega, que dão à generosidade dos homens a dimensão da misericórdia de Deus". Não sei em que registo o marquês de Sarolea escutou a "Rusalka". Ao ler e traduzir esta carta, pus a tocar, para mim, a versão de Sir Charles Mackerras, com a Orquestra Filarmónica Checa e a comovente Renée Fleming. Camilo Maria preferiu a canção à lua. Eu quase chorei ao ouvir o lamento da ondina, a abrir o acto III: "Força insensível da água, outra vez me arrastaste para o fundo... Porque não poderei, então, desaparecer, desaparecer finalmente?... ...Onde estás tu, ó magia das noites de Verão, sob os cálices dos nenúfares? Porque não poderei eu, no desamparo deste frio, perecer, perecer finalmente? "Mas a fluidez musical do drama tem uma beleza contínua e secreta, como se a sensualidade da própria vida antes perguntasse: Porque não poderei eu viver, viver finalmente? Como no fim da "Traviata" - que é também um rio de música - a morte surge como passo para o realizável. Para o encontro.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 01.10.2013 neste blogue.