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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

Paul Valery

 

XX - CRISE E RUTURA DOS VALORES E CHOQUE DA GUERRA - II

 

Para uns, a origem da crise no século XX era terem ruído os valores tradicionais, essencialmente os religiosos. Para outros, a divinização da ciência e idolatria dos cientistas, o mito do progresso científico, substitutos das crenças tradicionais, entre elas a religiosa. Apesar de defenderem que o afastamento de Deus tinha ocorrido em pleno século XIX e, mesmo assim, a humanidade tivesse vivido um período de um expressivo e significativo otimismo.

 

A razão e a racionalidade fomentariam a dignidade humana e a liberdade individual, trariam a paz, a justiça social, a promoção e reconhecimento dos melhores. A guerra viria provar o contrário, dada a sua violência e totalitarismo, produzindo armas letais que punham em perigo a sobrevivência da humanidade e de melhores condições que possibilitassem uma vida interior mais humanizada. As tentativas de institucionalização da paz internacional, após a primeira guerra mundial, fracassaram, com a malograda Sociedade das Nações. Reflexões pessimistas emergem, revelando a guerra o que havia de não adquirido e de transitório na civilização do princípio do século XX.

 

O filósofo, escritor e poeta francês Paul Valéry, em 1919, escreveu: “Nós, civilizações, nós sabemos agora que somos mortais. (…) Agora vemos que o abismo da História é suficientemente grande para todos. Sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade que uma vida. (…) E não é tudo. A lição escaldante é ainda mais completa: não bastou à nossa geração aprender por experiência própria como as coisas mais belas e as mais antigas, as mais formidáveis e as mais bem ordenadas são perecíveis por acidente: viu na ordem do pensamento, do senso comum e do sentimento, produzirem-se fenómenos extraordinários, bruscas realizações de paradoxos, deceções brutais da evidência”.

 

Mas se é verdade que este choque belicista colocou em causa a cultura cosmopolita, o clima intelectual e artístico, a crença no progresso e a prosperidade da sociedade da Belle Époque (Bela Época), que se iniciou no fim do século XIX (década 1870) até ao implodir da primeira guerra mundial (1914), também é verdade que foi um acelerador de novos meios de comunicação, massificando-os e difundindo-os junto de um público mais vasto, através da rádio, do cinema e do disco, por exemplo.

 

Face à transitoriedade da vida, foi ainda um acelerador poderoso para a fúria de viver, o culto do fruir, gozar e usar a vida ao ritmo do dia a dia, para os que sobreviviam, dada a certeza de efemeridade da vida, aliada à maior incerteza do momento, agravada pela mortalidade da guerra. Literatura e cinema fizeram o seu culto.

 

O mesmo sucedendo a nível das convenções morais, incluindo o Reino Unido, profundamente afetado pelo choque da guerra, exemplificando-o o filme Mrs Henderson, de Stephen Frears, dado que: “O puritanismo, quando a vida se tornara tão ameaçada e os prazeres tão raros, sofrera rudes golpes. Os breves encontros do soldado de licença harmonizavam-se mal com o respeito pelo ritual vitoriano do noivado, as convenções do decoro já não eram admitidas nos “cabarés para soldados”, os nascimentos fora do casamento tornavam-se aceitáveis, senão admitidos. De um só golpe a guerra acabava de tornar ultrapassado o código social e moral do século XIX. Dali em diante, os puritanos tiveram de resignar-se a tolerar a existência de comportamentos “não convencionais” ou até “emocionais” (Pierre Léon, História Económica e Social, Vol. V, Sá da Costa, Lisboa, 1982). Com mudanças no mundo feminino, em termos de estatuto e responsabilidades.

 

Amargura, ansiedade, dúvida, incerteza e inquietude, sucederam ao otimismo. A fé positivista e inabalável na ciência e na razão, foi posta em causa pelo filósofo francês Henry Bergson, para o qual a intuição é o motor de todas as coisas, não a razão nem a ciência, originando o intuicionismo, sendo o impulso vital que explica a evolução do universo (vitalismo). O cientista, apercebendo-se de que nem tudo é explicável racionalmente e em termos deterministas, abre portas à intervenção de Deus na ciência. Albert Einstein apresenta a teoria da relatividade pondo em causa a natureza absoluta do espaço e do tempo de Newton, surgindo uma súbita relativização de tudo o que até então era tido como inatacavelmente científico. O físico alemão Heisenberg criou o princípio da incerteza, reforçando o indeterminismo.

 

O que trouxe novas preocupações aos homens de letras, tornando a literatura mais angustiada e crítica, com reflexos da guerra. Franz Kafka, autor da angústia e do absurdo, Aldous Huxley, usando a ironia, Máximo Gorki, autor soviético empenhado politicamente, Malraux, Hemingway e Scott Fitzgerald, são alguns exemplos.

 

29.08.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

André Gide. 1927 [Foto de Berenice Abbott]

 

XIX - CRISE E RUTURA DOS VALORES E CHOQUE DA GUERRA – I

 

No século XIX e até à primeira grande guerra, a Europa viveu um período eufórico de criatividade científica e intelectual, de inventos permanentes e sucessivos que faziam crer que o progresso estava intimamente ligado ao desenvolvimento científico. Desenvolveu-se o cientismo, corrente de pensamento de matriz positivista segundo a qual a resposta a todas as questões humanas estava na ciência, tida como superior a todos os outros meios de compreensão da realidade humana, como a filosofia, a metafísica, a política e a religião, dado o seu determinismo cognitivo e resultados práticos.

 

Mas a crença no sentimento de superioridade da razão e vontade humana, por oposição à resistência das forças da natureza, começou a declinar e a ficar ameaçada, no fim do século XIX, pelo próprio desenvolvimento científico das ciências. A sociologia, psicologia e psicanálise revelavam que o ser humano não é só conduzido pela razão, mas também por forças instintivas e naturais, onde impera o inconsciente. A biologia, a antropologia e a física demonstravam ser um ser natural como os demais e que as suas ações eram regidas pela natureza, o que conflituava com a ideia de liberdade e responsabilidade defendida pela moral estabelecida. Questionou-se o determinismo e a tentativa de aplicar os mesmos métodos das ciências naturais às restantes áreas do conhecimento.

 

Ante o derruimento de valores tradicionais, estes foram vistos como sendo tabus e preconceitos, pseudovalores de uma sociedade enganadora e falsa, apenas servindo para ferir e inibir a plena realização humana. Havia na ciência novos valores que revelavam novos caminhos, numa permanente experimentação de um sentimento de libertação e de uma nova ética assente na liberdade individual e realização total do indivíduo.

 

André Gide, em Les Nourritures Terrestres, no poema Nataniel, Eu Te Ensinarei o Ardor, proclama:

     Mandamentos de Deus, magoaste a minha alma.
     Mandamentos de Deus, sois dez ou vinte?
     Até onde os vossos limites?
     Ensinareis vós que há sempre mais coisas proibidas?

 

     Novos castigos prometidos à sede de tudo quanto achei de belo na terra?
     Mandamentos de Deus, tornastes a minha alma doente.
     Envolvestes de muros as únicas águas que me dessedentavam…

 

     … Foi por certo tenebrosa a minha juventude;
     Disso me arrependo.
     Não provei o sal da terra.
     Nem o do grande mar salgado.

 

     Julgava que era eu o sal da terra.
     E tinha medo de perder o meu sabor.
     O sal do mar não perde o seu sabor; mas os meus lábios estão velhos para o saborear. Ah, porque não respirei eu o ar marinho quando tinha na alma a avidez desse ar?
     Que vinho conseguirá agora embriagar-me?
     Ah! Nataniel, entrega-te à alegria enquanto ela sorri à tua alma - e satisfaz o desejo de amar enquanto os teus lábios estão belos ainda para beijar e o teu abraço é jubiloso.
     Porque tu pensarás, tu dirás:
     - Os frutos ali estavam; o seu peso já curvava, fatigava os ramos; - a minha boca ali estava e plena de desejo: mas continuou fechada e as minhas mãos não puderam estender-se porque estavam unidas em oração; - e a minha alma e a minha carne ficaram desesperadamente sequiosas. - Desesperadamente a hora passou.

 

O belicismo, a brutalidade e o choque da guerra agravaram angústias e interromperam esperanças e otimismos.

 

22.08.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício