Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Numa ordem mundial dominada por ditaduras não teria acontecido o 25 de Abril em Portugal, nem outros acontecimentos congéneres seriam possíveis pelo mundo fora. Só uma ordem mundial baseada na democracia poderia ser a sua génese.
Sendo intrinsecamente democrático, na sua essência, o 25 de Abril de 1974 não tem donos, é de todo o povo, não sendo propriedade exclusiva desta ou daquela ideologia, deste ou daquele partido, direito de preferência de alguns, sendo de todos, sejam mais ou menos instruídos ou qualificados e, daí, também, ser feriado.
Não pode, nem deve, ser apropriado por poucos, pois sendo generoso na sua origem nele cabem todos, não sendo de direita, do centro ou de esquerda, havendo nele lugar para democratas, antidemocratas, liberais, antiliberais, comunistas, anticomunistas, radicais e extremistas.
Querer a liberdade de celebrá-lo só para nós, enquanto a negamos aos outros, é trair o sentido mais autêntico daquela data.
Se a sua mensagem mais genuína foi a liberdade, no seu respeito pelas liberdades individuais e direitos humanos, onde sobressaem a liberdade de expressão, de pensamento e o direito à informação, há que repudiar a ideia de que tem proprietários, que é uma espécie de coutada ou tapada proibida a quem pense de maneira diferente.
É contra o espírito do 25 de Abril apropriá-lo, para sobreviver, à custa de autoelogios por atos louváveis praticados anteriormente na clandestinidade.
Assim como o é a sujeição a uma ditadura de opinião que defenda a interdição de partidos de direita, tidos como antidemocratas, ditatoriais e totalitários, mas que aceita como arautos da liberdade partidos de esquerda similares, que sempre defenderam (e defendem) regimes políticos que nunca admitiram (nem admitem) qualquer princípio de liberdade em democracia nos países que têm como modelo.
Nem é aceitável que uma minoria de presumíveis ideólogos da democracia se arrogue no direito de decidir o que é liberdade, muito menos quando é sabido serem contrários ao espírito da alvorada e da primavera de 1974 totalitarismos de direita ou de esquerda, não distinguindo entre ditaduras condenáveis e virtuosas, porque ambas intoleráveis, o que é reforçado pelo voto expresso dos portugueses no decurso de 50 anos.
Uma liberdade que é inerentemente antiautoritária, aberta à mudança, à crítica, ao debate, ao não sectarismo, a novos espaços e mentalidades, tem de incluir na democracia mesmo os que se lhe opõem, sendo o principal remédio (não o único) para que não regressem governos autoritários ou ditaduras.
Sem constrangimentos e sem censura, assim o celebrizemos e continuemos a questionar, neste seu cinquentenário, havendo ainda muito por fazer.
“Uma Voz na Revolução” (Clube do Autor, 2014). É emblemática a imagem de Francisco Sousa Tavares no Largo do Carmo a dizer que esse dia 25 de Abril de 1974 era o dia mais importante da história portuguesa, desde o dia Primeiro de Dezembro de 1640.
UMA HISTÓRIA EXEMPLAR A Revolução de 25 de Abril de 1974 constitui um momento especial na História política contemporânea. Soma-se, no caso português, a 1820, 1826, 1834, 1836, 1851 e 1910 – datas marcantes na afirmação do constitucionalismo liberal e democrático. Para Samuel Huntington, Abril de 1974 foi mesmo o começo da Terceira Vaga da Democratização, numa perspetiva global. (Cf. Democracy’s Third Wave, Journal of Democracy, Spring 1991). De facto, entre 1974 e 1990, pelo menos em 30 países operaram-se transições para a Democracia, duplicando-se no mundo o número de governos legitimados pelo primado da lei e pela legitimidade do voto e do exercício. Para o pensador norte-americano, a Primeira Grande Vaga da democratização começou em 1820 com a conquista nos Estados Unidos do reconhecimento da generalização voto masculino, antecâmara do sufrágio universal, com a consagração até 1926 de 29 democracias constitucionais. Contudo, já em 1922, a chegada ao poder de Mussolini em Itália determinou o início de uma reversão de tendência que levou, tragicamente, até 1942, à redução drástica do número de democracias no mundo a apenas 12, na contabilidade de Huntington.
Com o triunfo dos Aliados na II Guerra Mundial iniciou-se a Segunda Vaga da Democratização que atingiu o seu apogeu em 1962 com 36 países governados democraticamente. Apesar de ter ocorrido no período 1960-1975 uma segunda reversão que reduziu a 30 os regimes de liberdade. A Terceira Vaga, que o 25 de Abril de 1974 lançou, tem expressão significativa na Europa, em especial com a transição em Espanha e na Grécia e com o impulso democrático nas Comunidades Europeias, designadamente a partir de final dos anos oitenta com os alargamentos decorrentes da queda do muro de Berlim, do fim da Guerra Fria e da abertura política ocorrida no centro e leste do Velho Continente. Contudo, a situação atual apresenta-se com especial complexidade, uma vez que assistimos a uma nova tendência de regressão, especialmente evidenciada nas tensões manifestadas quer na Europa quer na América… São evidentes hoje as incertezas ditadas pelas Presidências de Donald Trump e de Vladimir Putin, pela crise financeira de 2008, pela Pandemia Covid-19, pelos conflitos da Ucrânia e do Médio Oriente, pela ambiguidade da R. P. da China, pela evolução protecionista na Hungria e na Polónia, pelos efeitos do Brexit, num contexto de polaridades difusas no sistema internacional, que ditam a emergência de paradoxos originados por tensões entre as liberdades políticas, as ineficiências económicas, o agravamento das desigualdades e a afirmação de correntes radicais de sinal contrário, que têm posto em causa a afirmação dos Estados de Direito. A emergência de situações autoconsideradas como democracias iliberais e o desrespeito da legitimidade democrática nas relações internacionais constituem fatores que têm marcado negativamente uma evolução equilibrada e gradualista, de um pluralismo capaz de favorecer o desenvolvimento humano.
UMA CRISE A SUPERAR Vivemos, pois, um tempo em que as democracias registam uma crise de legitimidade quer pela ausência de mecanismos institucionais de mediação, que permitam aos cidadãos sentirem-se devidamente representados e participantes, quer pela crise demográfica nos países desenvolvidos e pela pressão migratória proveniente dos países menos desenvolvidos do sul. Por um lado, temos a crise do Estado-Providência pelo desequilíbrio entre contribuintes e beneficiários dos sistemas de segurança social, por outro, há as carências de mão-de-obra para empregos indiferenciados que conduzem a uma pressão significativa ditada pelo afluxo de migrantes – com consequências na coesão social e no sentimento de insegurança. Nestes termos, a crise da Democracia tem a ver com a necessidade do estabelecimento de soluções que visem a coesão, a confiança e a estabilidade das sociedades. A sustentabilidade cultural entra, assim, na ordem dia, ligando questões diversas e complexas como a preservação do meio ambiente e as respostas ao aquecimento global, o envelhecimento das populações nos países desenvolvidos, a transição digital, a emergência a Inteligência Artificial e a desmaterialização da economia, exigindo a criação de instituições mediadoras capazes de favorecer a defesa do bem comum, a prevenção da corrupção e do desperdício e a estabilização social.
COMPROMISSO NECESSÁRIO Jorge de Sena, num poema de 1971, distinguiu as “verdadeiras revoluções que terminam em compromisso e as que não começam nem acabam” (Poesia III, Moraes, 1978). E foi João Fatela quem lembrou, na revista “Esprit” (1979), as duas razões que podem explicar os compromissos que ritmaram a vida portuguesa. Antes do mais a economia e a sua incerteza e ainda o desejo de salvaguardar e de estender os valores democráticos, que surgem como a conquista fundamental de Abril. Em Portugal, primeiro, houve a tentação radical e depois o compromisso europeu. E a ideia de compromisso constitucional e político apresenta uma dupla face: a estabilização necessária e um conformismo perverso. Eis o dilema. Mas o compromisso permitiu a duração e a continuidade da Democracia. Como salientou Eduardo Lourenço, a questão colonial foi o detonador da eclosão da revolução. “Quando os portugueses regressam a casa, fecham-se como os piratas sublimes com o seu tesouro imperial. E pouco importa que esse tesouro seja um verdadeiro tesouro ou apenas a lembrança de um tesouro perdido. O imaginário português não tem outro centro nem outra circunferência a não ser os desse império sonhado” (Cf. Une Vie Écrite, Gallimard, 2015). E a diáspora portuguesa assumiu toda a sua amplitude com os movimentos migratórios para as Américas e, a partir dos anos sessenta do século XX, para França e para a Alemanha. Assim, a Europa e a Democracia foram as duas faces da mesma moeda, suscetíveis de mobilizar os portugueses no sentido da liberdade necessária. Mário Soares compreendeu perfeitamente a necessidade de ligar estas duas referências num projeto político de abertura e de estabilização que designou com “A Europa Connosco”. Ernesto Melo Antunes, o dirigente militar que assumiu com exemplar coerência o caminho desde o programa do MFA até ao compromisso constitucional, teve um papel fundamental ao afirmar, em 25 de novembro de 1975, quando foi vencida a última tentativa dos militares radicais, que o pluralismo e a democracia deveriam ser defendidos com todas as suas consequências, e sem qualquer exclusão. E João Fatela afirmou: « Se a democracia não se forma sem compromisso, só o exercício coletivo da liberdade o torna possível». A grande lição de Abril, é, deste modo, o que Agustina Bessa-Luís exprimiu ao dizer: «Não se tratava de uma revolução no sentido que cada um desejava dar-lhe, como triunfo de uma classe sobre outra, por exemplo, mas de algo talvez mais profundo, como o fim de um medo milenar e do desprezo de si» («Crónica do Cruzado Osb», 1976). Esta é sem dúvida uma das reflexões mais lúcidas sobre a «revolução portuguesa».
No âmbito das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, o Centro Nacional de Cultura, que tem vindo a tratar o espólio da revista Raiz & Utopia, assinala a importância desta publicação como momento fundamental de reflexão e debate na fase de estabilização da democracia, através da exposição A Raiz & Utopia que o 25 de Abril trouxe - espólio de uma revista que sonha e que pensa, patente ao público até 3 de maio, e do debate O Manisfesto da Revista Raiz & Utopia, Agora, a ter lugar no próximo dia 18 de abril (quinta-feira), pelas 18h00 no CNC. De entrada livre, o debate contará com a participação de Carlos Laranjo Medeiros, Maria Bello, Rita Azevedo Gomes, Vasco Rosa e moderação de Guilherme d’Oliveira Martins.
A exposição está patente ao público até 3 de maio Horário: dias úteis, das 10h às 13h e das 14h às 17h CNC - Sala Sophia de Mello Breyner Andresen e Francisco de Sousa Tavares Entrada livre
Sobre a revista Raiz & Utopia
A revista Raiz & Utopia surgiu na Primavera de 77. Vivia-se então em Portugal o efeito de um confronto – se não sangrento, pelo menos violento –, de que os saneamentos e as campanhas de dinamização cultural do MFA foram aspetos desgastantes que, mesmo à distância, mais parecem anedóticos.
A sociedade estava cansada de “palavras de ordem” e de um excesso de politização, o que explica o amplo movimento de adesão que se criou em torno da revista.
Ao manifesto Raiz & Utopia (que teve três autores, António José Saraiva, José Baptista e Carlos Medeiros, os dois primeiros já desaparecidos) reagiram por escrito dezenas de intelectuais e políticos de vários horizontes – e essa foi uma primeira grande vitória da Raiz & Utopia a que se viriam a somar outras semelhantes ao longo da sua existência, que terminou no Outono de 81.
Adelino Amaro da Costa, Alfredo de Sousa, Nuno de Bragança – para só citar estes, também desaparecidos tão antes do tempo – saudaram, entre muitos outros, a “pedrada no charco” que era o Manifesto publicado no nº 1 e que aqui se resume com o texto na contra-capa desse número, hoje esgotadíssimo:
Os burocratas, tecnocratas e salvadores políticos dos vários mundos, independentemente das suas diferenças de situação e doutrina, estão empenhados em consolidar um sistema em que a grande maioria dos homens executa mecanicamente as decisões tomadas por alguns. Torna-se cada vez mais urgente restituir a cada homem a sua humanidade, quadriculada e esquartejada num mundo cada vez mais programado. “Raiz & Utopia” não propõe uma nova doutrina no plano político e ideológico em que se exibem os actores do dia. Não contribui para o discurso dominante. Tão pouco alinha com o que é moda chamar-se “ciência”. Recusa a ilusão do “progresso” considerando que a famosa “marcha da humanidade” é um comboio num túnel em forma de funil. Os problemas de raiz estão hoje escamoteados no discurso tecnoburocrata. É preciso mudar radicalmente a problemática a partir do quotidiano, transformar a atitude do espírito perante as coisas. A utopia não é um impossível: é um Norte, a Leste ou a Oeste das ilusões confortáveis que hoje são servidas como ópio às massas resignadas. Estava-se em 1977. Ainda não se vislumbravam os contornos da sociedade da informação, tal como hoje a conhecemos, desejamos e tememos – e no entanto há quase trinta anos anunciava-se já o tempo que hoje vivemos.
Raiz & Utopia – de que Helena Vaz da Silva assegurou a direção a partir do nº 5 até ao fim – foi, de facto, pedrada no charco enquanto existiu. Quando parou, não foi por falta de leitores, mas por se ter entendido que se tinha esgotado o seu projeto, que estava cumprida a sua missão de proclamar uma nova atitude face à vida e à política.
A revista perfez um ciclo – nasceu na Primavera, morreu no Outono, 4 anos volvidos –, mas o seu apelo a uma utopia radical, em favor de um repensar dos fundamentos da vida, propagou-se e deixou sementes.
Numa experiência diferente do tempo, um tempo parado, vazio, parece, por um lado, que nada acontece de especial, por outro, na medida em que se está atento, percebe-se que a vida está aí para ser vivida e em interrogação constante. O vírus invisível e global isso fez: obrigou a parar e a pôr as perguntas essenciais. O que aí fica são algumas notas sobre este tempo novo.
1. São muitos os que se perguntam se vamos sair melhores, na convicção de que sim. Por mim, espero que sim, mas temo que, passada a catástrofe, tudo volte exactamente ao mesmo. Não esqueço aquelas palavras de Primo Levi que, ao sair de Auschwitz, constatou que “não saímos nem melhores nem mais sábios”. E viaja pelas redes sociais uma “graça”, talvez, infelizmente, verdadeira: “Vamos sair melhores?” – “Não. Porque isto é um vírus, não é um milagre”.
No entanto, é de um milagre que precisamos, ao sair deste pesadelo: sair melhores e mais sábios. Para isso, não se trata de mudar apenas isto ou aquilo, é urgente mudar o modo de pensar. Precisamos de uma conversão, como manda o Evangelho. Frequentemente, traduz-se essa conversão por “fazei penitência”, mas o que lá está é o verbo grego: metanoiête, que quer dizer: mudai o vosso modo de pensar, mudai a vossa mentalidade, começai a pensar de modo outro e a agir em consequência. Qual é o propósito da vida, o seu sentido mais profundo? É enriquecer, produzir cada vez mais, consumir sempre mais? Ou o bem-estar, o viver bem, num mundo que é de todos, na entreajuda para maior alegria e mais felicidade no sentido autêntico? Queremos continuar na religião de um progresso sem limites, que aliás não é possível num mundo que é finito, limitado? Não queremos viver melhor, com moderação, sem explorar a Mãe Terra nem os outros nem a nós, dentro de um modelo de progresso que assenta num montão crescente de vítimas? Talvez o nosso engano seja este: em vez de vivermos aqui, agora, vivermos, alienados, numa concepção de tempo, que é o tempo que a modernidade inventou: o passado é apenas o ultrapassado e o presente apenas a rampa de lançamento para um futuro de progresso sem fim. Mas, assim, neste modelo, quando vivemos e somos verdadeiramente?
2. E cá estão os dados dramáticos, na celebração do Dia da Terra, na passada Quarta-Feira, 22. Ai de nós, se, insaciáveis na satisfação dos nossos desejos não arrepiarmos caminho. Sirvo-me de alguns dados, recolhidos de um texto de Faustino Vilabrille: “Cuidar da Mãe Terra é cuidar dos seres humanos”, com números devastadores. Só alguns:
Gases com efeito estufa. Em 2018, o dióxido de carbono (CO2) aumentou uns 147%, o metano (CH4) uns 259%, o dióxido nitroso (N2O) uns 123%. O que quereríamos com milhões de carros, aviões, cruzeiros de luxo...?
Invadimos tudo com infinitas radiações electromagnéticas.
Os mares e os oceanos acabam por ser o depósito final do lixo do planeta: desde 1950 fabricámos mais de 8.000 milhões de toneladas de plástico. De todo o plástico que há nos oceanos, 268.940 toneladas são microplásticos que, ao ser ingeridos pelos peixes, passarão à nossa cadeia alimentar.
Destruímos milhões e milhões de hectares de florestas: só no ano 2000 foram queimados 350 milhões.
Resíduos. Milhões de toneladas de substâncias químicas tóxicas são espalhados dos modos mais diversos, como petróleo, produtos radioactivos, explosões atómicas, produtos químicos, pesticidas, resíduos urbanos, hospitalares, sanitários, fabris...
A Terra é a nossa Mãe, e ela pode viver sem nós, mas nós não podemos viver sem ela. Cuidar dela é cuidar de nós. Ela é a nossa casa comum e tomamos agora cada vez mais consciência de que formamos uma única humanidade. Precisamos de uma “ecologia integral”, como sublinha permanentemente o Papa Francisco, porque quem mais sofre com os maus tratos do planeta são os mais pobres. É preciso pensar nos 815 milhões de pessoas que passam fome (segundo a ONU, com a crise que acompanha a Covid-19, o número pode duplicar) enquanto outros (será que fazemos parte deles?) esbanjam 1.400.000 toneladas de comida ao ano e 1.500.000 toneladas de roupa. “É injusto exigir ao planeta produzir tanto para a seguir esbanjar, e tantas pessoas a passar fome, nudez e frio. A Mãe Terra está a pedir-nos um pouco de austeridade, solidariedade e amor para o bem de todos e de toda a Criação.” E os milhões de milhões de euros ou dólares em gastos militares? E chegamos ao absurdo de a um investigador de alta qualidade se pagar por ano uns 100.000 euros, mas a um desportista de elite, que dá pontapés numa bola, pagamos 30, 50 ou até 100 milhões ao ano. “A sério: não estamos um pouco loucos?”.
No Dia da Terra, lá esteve o Papa Francisco, que a História não esquecerá também por causa da encíclica histórica sobre a ecologia, Laudato Sí, a pedir que “se crie um movimento de base, de baixo para cima” para conseguir “a conversão ecológica”. “Criados à imagem e semelhança de Deus, estamos chamados a cuidar e a respeitar todas as suas criaturas, mas com amor especial e compaixão os nossos irmãos, sobretudo os mais débeis”. “A presente pandemia está a ensinar-nos que só se estivermos unidos e encarregando-nos uns dos outros poderemos superar os actuais desafios globais e cumprir a vontade de Deus, que quer que todos os seus filhos vivam em comunhão e prosperidade. Falhámos na protecção da Terra, nossa casa-jardim, e na protecção dos nossos irmãos. Pecámos contra a Terra, contra o nosso próximo e, em última análise, contra o Criador, Pai bom.”
3. Devia celebrar-se o 25 de Abril? Quem poderá pôr isso em causa? Mas as comemorações tinham de ser como foram, na Assembleia da República? Não. Foi incompreensível e escandaloso que, enquanto a Páscoa foi celebrada como foi, no confinamento, e o Papa a celebrar sozinho, e bem, os funerais, e bem, têm de ser celebrados como são, numa míngua arrepiante de possibilidades de despedida e de expressão da dor, enquanto os cidadãos continuam confinados, e bem, o Parlamento se mantivesse irredutível para as comemorações, incluindo convidados, que deveriam ter respondido que, entre uma ordem — ficar em casa — e um convite, deveriam ter obedecido à ordem. O escândalo é tanto maior quanto era possível uma comemoração condigna: com o discurso do Presidente da República e um concerto de música clássica (a nona Sinfonia de Beethoven, por exemplo) e canções de Abril, a transmitir pelas televisões e outros meios de comunicação social.
Dito o que aí fica dito, penso que os deputados e os políticos em geral fariam bem em reflectir sobre as razões do enorme afastamento e desinteresse da população e, concretamente, dos mais jovens, em relação a estas comemorações e à política em geral.
Na presente situação de catástrofe pandémica, sei que a prioridade é dar as mãos, colaborar lealmente, não estamos em tempos de luta na atribuição de erros, mas, por outro lado, a caminho de um lento desconfinamento gradual e com as devidas cautelas — Ângela Merkel, por exemplo, avisou na Quinta-Feira que a pandemia está ainda “no começo” —, não se pode de modo nenhum deixar de pensar criticamente. Tenho insistido constantemente nisso, e não me canso de fazê-lo: escola vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a polis, e tenho alertado para a ameaça de ter acabado esse ócio, porque tudo, incluindo a política, se tornou negócio, do latim nec/otium, negação do ócio, e a técnica (e os negócios têm sobretudo a ver com técnicas), não pensa, apenas calcula, como aprofundou o filósofo Martin Heidegger.
Neste contexto e face à crise económica, social e política já presente e que vai acentuar-se dramaticamente — será mesmo verdade que não vai haver medidas de austeridade?! —, permito-me voltar a textos meus, que aqui publiquei muito antes da pandemia (“As maravilhas de Portugal”, Novembro de 2018, e “Sobre as eleições”, Setembro de 2019), nos quais não embarcava na “aparente euforia nacional”.
Algumas citações. Em 2018. “Quanto ao futuro, receio o abalo que acontecerá com a subida dos juros e se alguma crise internacional chegar. Há uma almofada suficientemente sólida de suporte? De qualquer forma, a dívida... E os portugueses não poupam, porque se criou a percepção de que tudo está sob controlo, e desculpam-se pensando também no que os Bancos cobram e as pessoas ainda se lembram de que vários Bancos faliram, e, até agora, não aconteceu nada, excepto que os contribuintes vão ter de continuar a pagar... O turismo continuará com a força do presente? Que investimentos se tem feito? O crescimento da economia tem derivado sobretudo da procura interna, e os portugueses até se endividam para consumos dispensáveis e viagens.”
Em 2019. “Dado que vivemos internamente mais de uma situação conjuntural favorável do que de investimentos sólidos para um desenvolvimento estrutural sustentável, receio que o país venha a confrontar-se com percalços inesperados. Tenho a sensação de que a aparente euforia tenha na sua fonte um manto de mentira e ilusão”. “Recentemente, a anterior Procuradora-Geral da República afirmou que o Estado está ‘capturado’ por redes de corrupção e compadrio. Joana Marques Vidal lamentou concretamente: Se nós pensarmos um pouco naquilo que são as redes de corrupção e de compadrio, nas áreas da contratação pública, que se espalham às vezes por vários organismos de vários ministérios, autarquias e serviços directos ou indirectos do Estado, infelizmente nós estamos sempre a verificar isso’.
Que compromisso assumem os Partidos neste domínio gravíssimo?”. “Ponto decisivo: que os Partidos esclareçam o que pretendem fazer em relação à justiça, não só à justiça social — há muita miséria no país (acrescento agora: e vai aumentar assustadoramente) —, mas à justiça-poder judicial, órgão de soberania, independente. A justiça continua lenta e, por isso, pouco eficaz, e, se se ler e ouvir a opinião pública: que ela foi atingida pelo véu de alguma desconfiança. Lembro o Presidente da República referindo-se, no passado 10 de Junho, às ‘falências na justiça’: Portugal não pode ‘minimizar cansaço, corrupções, falências na justiça’. Neste contexto, a Banca. Uma catástrofe! Há anos que o Estado, isto é, os contribuintes, andam a pagar, a tapar buracos com milhares de milhões de euros, e não há consequências para as más administrações e os desvios?”
Mais. “O que vão fazer os Partidos para que haja transparência na política e com os políticos? Sinceramente, atendendo às suas responsabilidades, penso que os políticos são mal pagos e até pergunto: será essa uma das razões por que para as tarefas políticas a maior parte das vezes não vão os melhores e estamos cheios de incompetentes? Mas, por outro lado, verifico que imensa gente se bate por, como diz o povo, “ir para lá — para onde? Para o poder. Há muita sedução pelo poder, pois ele é ‘o maior afrodisíaco’ (Henry Kissinger dixit). Mas também haver muitos privilégios que moram para essas bandas. Que haja, portanto, transparência! Donde vêm tantas regalias e privilégios auto-concedidos? Já não há vergonha em Portugal? Leio que subvenções vitalícias para políticos custam milhões de euros, que extras quase duplicam o salário dos deputados (...). E a maior parte dos deputados não morrerão de cansaço, a trabalhar no e para o Parlamento, como denunciou numa entrevista recente Macário Correia: ‘Metade dos deputados no Parlamento não faz nada de concreto ou sequer útil, anda lá só a ocupar o tempo.’ E ficam sempre aberturas para contactos presentes e sobretudo futuros, numa ligação in-transparente de política e negócios...”.
“É essencial a racionalidade política em ordem ao bem comum, bem para lá dos interesses próprios e partidários. E a competência. É necessário pensar sempre mais longe e aproveitar a oportunidade para um consenso mínimo nacional, com duração suficiente, nos domínios da saúde, da educação, da justiça, da segurança social, da política internacional. Numa hierarquia de valores, que anda muitas vezes, desgraçadamente, transtornada. Para evitar o sobressalto permanente. E com que geoestratégia?”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 26 ABR 2020