Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O instante que nos surpreende pela beleza ou irradiação da efemeridade que revela é, assim, simultaneamente, um sacramento do inefável que não alcançamos, do invisível que ainda não sabemos ver, da palavra que, pronunciada, cria. Mas outrossim podemos imaginar ou inventar um instante, criando então um instantâneo artificial, seja visão infernal de terror, seja aparição abençoada e benfazeja... Tal artifício também poderá servir para exprimir desejo nosso, ou aspiração, ou, mais devotamente, uma prece. Assim, dizemos, se formulam votos. Assim também poderá uma ilusão consolar-nos de uma perda, do desaparecimento de alguém ou, em jeito mais chão, do nosso desespero de reencontro com um amor avistado, fugido e já perdido.
De Sir Thomas Wyatt, diplomata e homem da corte de Henrique VIII, disse C. S. Lewis que esteve sempre enamorado de mulheres de quem não gostava. Talvez assim fosse para com Ana Bolena, dama da rainha Catarina de Aragão, mais tarde, ela também, mulher do rei e mãe da futura rainha Isabel I. Dum caso amoroso mal esclarecido, entre tantos devaneios e namoros corteses e cortesãos, ficou-nos, entre outros documentos, um soneto de Wyatt, que transcrevo e traduzo:
Whoso list to hunt, I know where is an hint But as for me, alas, I may no more. The vain travail hath wearied me so sore I am of them that fartes cometh behind. Yet may I, by no means, my wearied mind Draw from the deer, but as she fleeth afore, Fainting I follow. I leave off therefore, Since in a net I seek to hold the wind. Who list her hunt, I put him out of doubt, As well as I, may spend his time in vain. And grave with diamonds in letters plain There is written, her fair neck round about, "Noli me tangere, for Ceasar´s I am, And wild for to hold, though I seem tame."
Para quem queira caçar, eu sei onde a cerva está Mas quanto a mim, pobrezinho, mais não posso. Pois que empresa tão vã me gastou e amargou E de mim fez o derradeiro de todos os que a seguem. E todavia não posso minha alma cansada desligar Daquela cerva e, enquanto ela à minha frente foge, Desfalecendo a sigo e logo desisto e abandono, Pois que numa rede quis prender o vento. E a quem a quiser caçar eu posso assegurar Que tal como eu em vão irá desperdiçar o tempo. Eis com diamantes escrito em letra cheia, Na coleira à volta do seu pescoço esbelto, "Noli me tangere, pois pertenço a César, E, parecendo mansa, brava demais para segurar."
Cerva - cervo (veado) no masculino - diz-se, em inglês, deer, palavra homófona de dear (caro, querido) prestando-se assim a metáforas bastante usadas na literatura inglesa da Renascença. Neste soneto, inspirado em Petrarca, como aliás muitas outras composições do poeta e diplomata inglês (chegou a ser embaixador junto da corte de Carlos V), interessa-me aqui mais do que o caso dos amores com Ana Bolena (incluindo o anúncio da próxima posse dela pelo rei - for Ceasar´s I am), a metáfora da caça como perseguição amorosa e, sobretudo, o recurso à efeméride da aparição da cerva como imagem de amor bruxo e breve. Em Petrarca, no soneto que a seguir transcrevo e traduzo, tal aparição corresponde à evanescência de Laura, sua tão amada, sobre quem Deus tinha poder absoluto:
Una candida cerva sopra l´erba verde m´apparvecon duo corne d´oro, fra due riviere, all´ombra d´un alloro, levando ´l sole, a la stagione acerba.
Era sua vista sí dolce superba, ch´i´ laciai per seguirla ogni lavoro; come l´avaro, che´n cercar tesoro, com diletto l´affanno disacerba,
«Nessun mi tocchi - al bel collo d´intorno scrito avea di diamante e di topazi - libera farmi al mio Cesare parve».
Et era ´l sol già volto al mezzo giorno; gli occhi miei stanchi di mirar non sazi, quando´io caddi ne l´acqua, et ella sparve.
Cândida cerva sobre a erva verde com dois cornos de ouro me aparece, entre dois ribeiros à sombra dum loureiro, quando se erguia o sol na primavera.
Tão doce e soberba era tal visão; que para segui-la deixei qualquer labor como o avaro que para buscar tesouro com deleite abandona outros afãs.
«Ninguém me toque - à volta do pescoço belo com diamante e topázio estava escrito - ao meu César pôr-me livre aprouve.»
E já chegava o sol ao meio dia; com os olhos meus cansados de mirar caio à água e ela desvanece.
A lenda da cerva de César é antiga, começou a circular talvez trezentos anos depois da morte do augusto romano. Como metáfora é plurivalente, ambígua até, como, aliás, se vê pelas duas versões acima retidas, a de Wyatt e a de Petrarca. Para a primeira, a cerva é intocável porque pertence, é presa de César. Para a segunda, ela é livre, pois que livre a fez um poder mais alto. Num texto ou carta que há anos atrás escrevi, falava de uma ilustração japonesa do Conto do Genji, em que uma menina segura em suas mãos um pássaro que, afinal, não consegue prender: símbolo do amor, simultaneamente como liberdade e prisão necessária. Não há volta a dar-lhe: as almas e as vidas humanas são tecidas pelo engenho e as tensões - dos nossos paradoxos e contradições. Construímo-nos de efemeridades a que pretendemos encontrar ou dar sentido.
Pela sua recitação - ou aparente repetição - a fugaz aparição perdura. E é essa sua própria, essencial, fugacidade que torna o efémero sacramento do permanente. Assim intuímos como o sentido da nossa vida é a graça da incessante procura da visão.
Da apresentação de Debussy et le mystère de l´instant (Perrin, Paris, 1972), de Vladimir Yankélévitch, destaco (traduzo): Dois movimentos inversos parecem, em Debussy, percorrer o espaço musical: um é descida aos infernos da profundidade; o outro, regresso ao ar livre, ascensão aos grandes espaços de luz. Mas quando estudamos esses dois movimentos, depressa compreendemos que, para Debussy, nem um nem outro é essencial: o essencial é o instante impalpável, esse mesmo a que chamamos aparição em desaparecimento, surto em fundo de silêncio e de trevas; esse instante é o relâmpago, ou, inversamente (o que vai dar ao mesmo) a fagulha que a aparição é quando a surpreendemos a desaparecer: o Meio dia é, no mesmo instante, o zénite da luz e a luz surpreendida no primeiro instante do seu declínio.
Debussy dá voz às coisas mais imponderáveis e mais precárias, às mais inconsistentes e às mais inexistentes da criação: um breve encontro e uma leve respiração, uma reminiscência fugitiva que, como estrela cadente, atravessa o espaço noturno da memória, um reflexo que estremece na água, um sopro de vento passando pelo ar da tardinha, uma nuvem no céu.
Ocorreu-me este trecho, talvez, pela associação do seu último parágrafo à inspiração de haiku e de muita caligrafia e pintura japonesa. Por algo que é a surpresa do infinito intemporal - que, enquanto tal, só pode existir fora da criação inteligível - na fugacidade dum instante apenas desta vida.Tal privilégio é um dom, uma graça. Talvez pareça poder repetir-se, mas jamais se repete, como a história da nossa humanidade. Tal como Debussy não pôs em música a vespertina sesta de um fauno, mas sonhou o Prélude à l´après midi d´un faune. Prelúdio que acabo de escutar, com direção do seu maestro titular, D. E. Inghelbrecht, na interpretação do Orchestre National (orquestra, em francês, é substantivo masculino), em 1962. Inspirada num poema de Mallarmé, escrito em 1865, a obra orquestral tem, mais ou menos, trinta anos de atraso (1892-1894), mas, para o que aqui proponho, guarda esta atualidade, em palavras do próprio Debussy, numa carta a H. G. Villars, futuro marido de Colette: O Prélude à l´après-midi d´un faune talvez seja o resto de sonho que ficou no fundo da flauta do fauno? Mais precisamente, é a impressão geral do poema, pois, se o seguíssemos mais de perto, a música perderia o fôlego como cavalo de tiro que concorresse ao Grande Prémio contra um puro sangue. É também o desdém dessa "ciência de castores" que torna pesados os nossos briosos cérebros, e depois não tem respeito pelo tom! e tem um modo que procura conter todos os matizes, o que é muito logicamente demonstrável. Mas, ainda assim, segue o movimento ascendente do poema, e é esse cenário maravilhoso descrito no texto que, com mais humanidade talvez, nos trazem trinta e dois violinistas bem cedo levantados! O final é o último verso prolongado: Adeus casal, vou ver a sombra em que te tornas. Contudo, é sobre tal expectativa que se fecha esta obra musical, que se ficou pelo prelúdio só, sem os previstos interlúdios e uma paráfrase final. Apesar da novidade do estilo, foi muito aplaudida a sua primeira audição pública, em dezembro de 1894, na Société Nationale, em Paris, sob a direção do maestro suíço Gustave Doret. Só a partir de 1912, com o balé de Diaghilev, coreografia e interpretação de Nijinsky, vai a representação à cena, provocando uma onda de escândalos que tornaram famosa a composição musical de Debussy, mais ainda do que o poema lascivo de Mallarmé. Por mim, sempre gostei de sonambular ao som do Prélude à l´après-midi d´un faune, cujo erotismo se esvanece pelo suave embalar da melodia hipnótica, mergulhando-me num sossego tão esquecido de mim que talvez me fizesse lembrar aquele anúncio de que o sono é a antecâmara da morte. Nesta peça, afinal, Debussy traz-nos, em nove minutos, um instante revelador, e põe-nos dentro dele, como se aquela contemplação do efémero mais não fosse do que uma canção de embalar a morte no gosto da vida que a sustenta...
Do primeiro passo que démos para circunscrever um conceito possível de estética do efémero, no texto anterior, Yoko Orimo conclui : Com esta noção de impermanência, revestida da filigrana da sua dimensão permanente, de tudo se poderá libertar uma infinidade de matizes. Face aos acontecimentos dramáticos do mundo, às vicissitudes e ao mistério da vida humana, no nosso coração se misturam então a dor e a aceitação, a tristeza e a serenidade, o lamento do que desapareceu e a alegria da espera do que vai nascer. O budismo antigo, nascido na Índia, atingiu assim no Japão o cumprimento final da sua transformação ou alteração doutrinária. Assim se elaborou, sobretudo a partir da era Muromachi (1392-1573), o fruto de tal aculturação : a estética japonesa do efémero.
Será que a inspiração desta - tal como a teremos visto - pouco ou nada ou talvez muito tenha a ver com a dos actuais movimentos de arte efémera? O conceito hodierno de efemeridade parece ter mais a ver com o propósito de vanidade e lixo do que com a procura de permanência na natureza perecível. Seremos já vítimas do embaciamento de um olhar maravilhado para a beleza do universo, que afinal revela a perda do nosso olhar interior que nos vai incapacitando de ver o mundo pela transparência do espelho da nossa alma? O espelho onde nos vamos mirando tão somente nos devolve a imagem que de nós já temos, incapazes de amor e vistas para além das nossas limitações. Talvez por isso a nossa nova arte do efémero pareça sobretudo desespero e renúncia, e um doentio e profundo desprezo pela nossa incapacidade, não só de regenerar, mas de, sequer, imaginar restaurado. Mais propensos a lamentar o que se vai do que a alegrar-nos com a novidade que possa vir, podemos comprazer-nos na representação da decadência, da fragilidade, na desilusão de nós. Ou, mais radicalmente, em habitar o absurdo. Todavia - graças a Deus!, direi eu à moda antiga - também andam por aí muitos outros que - trânsfugas dessa obsessão narcísica com o irreparável - com arte vão revestindo ruínas ou, mais ainda, com arte vão erguendo obras de esperança feitas com material reciclado do lixo a que a propensão egoísta e destruidora do consumismo teria condenado. Em vez de olhar para o efémero como fatalidade, destino final de tudo, vêem-no como momento e promessa, como terminação anunciadora de novidade. Porque esta, com todo o seu potencial, já lá está, não para ser esquecida ou repudiada, mas para que, em qualquer forma, ressurja na sua permanência.
Assim, a estética do efémero é uma estética de contemplação ou, como escreve Yoko Orimo, uma estética que não se apoia na invenção nem na originalidade, mas na reflexão no sentido de reflexo. É como a luz do Japão, luz indirecta : uma meia-luz, tamisada por uma taxa sempre muito alta de humidade atmosférica. Ou então é como a luz da lua, luz que é um reflexo. Revestir-se do Despertar deve pois querer dizer reflectir o Despertar que escapa a qualquer tentativa de posse. Diz Mestre Dogen : «O ser humano chega ao despertar tal como a lua permanece no meio da água : a lua não se molha, a água não se quebra...» Apesar de indissociavelmente ligadas, nem a lua nem a água exercem qualquer poder, uma sobre a outra ; cada qual fica perfeitamente livre e autónoma. A lua que se reflecte no meio da água, esse reflexo do reflexo, não é, aliás, verdadeira nem falsa, como a parábola da luz, como a imagem acantonada num espelho.
Afinal, mesmo quando for ou nos parecer feia a nossa circunstância, teremos de aprender a abrir os olhos do coração. Porque será da bondade do olhar que tivermos sobre o mundo, natureza, pessoas e coisas, que crescerá a força do amor que contempla, redime, restaura e torna completa a nossa alegria. Assim aprendi também com S. João Evangelista. E tal me ocorre em tarde de Pentecostes, a festa da multidão dos dons, que sempre nos chama a recriar o Universo. Pois por nós o Espírito irá renovando, em feitos e promessas, no tempo escatológico, a face da terra.
Por qualquer razão, ou nenhuma, pareceu-me curial iniciar a publicação de post scripta, isto é, escritos posteriores às minhas cartas à Princesa de mim, apontamentos anotados na sequência delas, quer porque os redigira e não enviara, quer porque apenas os rascunhara para outros textos de reflexão. Reencontrados agora, apresentam, quanto a mim, uma virtude rara: a de descobrirem momentos de um qualquer discurso do meu pensarsentir, sem pretender concluir mais além do que a sugestão de caminhos para o entendimento de culturas que povoam a terra nossa, com as suas condicionantes e aparentes divergências, convergências, contradições e semelhanças. Sem pretender ensinar seja o que for, mas apenas recordar o que nos ajude a aproximar-nos. Não trago teses, trago hipóteses talvez só adivinhadas, mais insinuadas do que expostas.
Haru wa hana À Primavera as flores
Natsu hototogisu Ao Verão o cuco
Aki wa tsuki Ao Outono a lua
Fuyu yuki sae te Ao Inverno a neve
Suzushi kari keri Cristalina imaculada
Este poema encontra-se no cancioneiro Shobogenzo (abram os ós e leiam guê) que Mestre Dogen (idem para a pronúncia do nome) redigiu entre 1231 e 1253, ano de sua morte. Tal coletânea é obra marcante e reveladora da cultura e da literatura japonesas: na verdade, todos os waka que a compõem foram escritos em japonês clássico. Mas, como nos esclarece Yoko Orimo no seu inspirador Comme la lune au milieu de l´eau, Art et spiritualité du Japon (Le Prunier, Sully, Paris, 2018) -, feitas as contas, mais não são do que traduções e comentários de sutras e textos escritos em chinês... ... No seio do espaço literário essencialmente compósito da obra, concebido e estruturado como espelho sem estanho, o japonês e o chinês mutuamente se refletem. E é graças ao reflexo dessas duas línguas e civilizações, simultaneamente tão próximas e tão diferentes, que conseguimos ver e entender o que ainda não tínhamos visto nem entendido até agora...
Esta autora japonesa, diplomada pela École Pratique des Hautes Études de Paris é sobretudo conhecida, precisamente, pela sua tradução e interpretação do Shobogenzo - a verdadeira Lei, Tesouro do Olhar (Sully, Vannes, 2014), de Mestre Dogen (1200-1253). Talvez por aqui inicie ela a sua interpretação da cultura japonesa como cultura de empréstimo, ideia que não andará muito longe da de outros, mas sempre no sentido em que Shusaku Endo nos fala da assimilação pelo "pântano" japonês, que tudo engole, digere e devolve seu. Tenho para mim, e não só, que a caraterística marcante da cultura japonesa - tal como entendo o que é uma cultura - é o seu extraordinário poder de assimilação de outras, sempre concomitante à sua perseverança em ser ele própria.
Mas prefiro hoje abordar a questão do tempo como essência da própria cultura nipónica. Em cartas muitas à minha Princesa de mim falei da perceção e cultura do efémero como forma de espiritualidade... Sobre outras teses da presença essencial do tempo em culturas como a do Sol Nascente, talvez diga que sim, mas enquanto momento. Arrisco então a hipótese de que o instante no tempo circular é como eternidade, essência mais do que efeméride.
Será isto mais difícil de entender em mentes que pensam em tempo escatológico. Todavia, também nós, os que vivemos em culturas de forte sentido escatológico, muita vezes nos surpreendemos a viver, pensarsentir ou desejar como eternidade um instante só. Então dizemos que, durando apenas um minuto ou uma hora, nos pareceu uma eternidade. Poderá ter sido assim por força do nosso lado passivo, sofredor ou ansioso. Ou, para nossa satisfação, por virtude desta nossa entranha amante, ou por essa aspiração à completude perfeita que, para tanto ser, só é concebível na intemporalidade, num algures ainda desconhecido e, como tal, quiçá um nenhures a que chamamos utopia. Assim imaginaremos a nossa ressurreição possível apenas noutro mundo, ou num universo transformado, como a face da terra renovada pelo Espírito, tudo isso, afinal no final do tempo, quando a duração já não é possível, pois nenhuma mensuração poderá então fazer qualquer sentido.
Em tempo circular, já os instantes e suas manifestações próprias se sucedem em roda de eterno retorno, como se a passagem das horas, dos dias, das luas e das estações fossem constante advento e regresso. Assim devemos entender aquele ditado japonês que diz que a flor é o espelho do tempo, pois que pela variação infinita das suas formas e cores, lembra-nos Yoko Orimo, a flor nos deixa ver o tempo: fazendo-se eco do que é nela invisível, a flor anuncia a estação que chega e que parte. Com esta inspiração devemos entender esse ensinamento de Mestre Dogen: A multidão de cores não está reservada apenas às flores, a multidão dos tempos também se reveste de cores como o azul, o amarelo, o vermelho, o branco, etc. A Primavera atrai as flores; as flores atraem a Primavera.
Sobre esta intuição, Yoko Orimo elabora a seguinte premissa: Se a flor é o espelho do tempo, espelho que traz a imagem do invisível, o tempo é já, ele próprio, o espelho. E conclui: Refletindo-se a si mesmo e em si mesmo, o tempo torna visível a imagem deste Presente tal qual, Presente eterno. Já dizia Mestre Dogen que, sendo a imagem e o espelho apenas um, esse espelho é a Natureza. E Orimo esclarece que, contrariamente aos espelhos feitos por mão humana, o espelho que é a Natureza é um espelho sem estanho, «Não tem verso nem reverso, ambos os lados oferecem visão. Parecem coração e olho. E parecer significa que uma pessoa encontra outra» (Dogen)... A cada instante, em cada estação, a Natureza realiza a sua própria imagem, fazendo-se eco dela mesma e nela mesma, desde sempre e para sempre. Isto porque no coração da Natureza se encontra a Ressonância do universo. Nada mais além dessa Ressonância do universo, idêntica ao coração da Natureza, se cristaliza na Primavera em imagem de flores, no Outono em imagem da lua, no Inverno em imagem da neve.
Assim a própria natureza se contempla nela mesma: ver e ver-se, o visível e o invisível, o dentro e o fora, a profundidade e a superfície são apenas um. E como essa visão da Natureza pertence ao coração da Natureza, o povo japonês diz que «A flor tem coração». E perante a terra toda coberta de neve, Mestre Dogen afirma: «todo o verso e todo o reverso estão cobertos de neve profunda. O universo inteiro é a terra do coração, o universo inteiro é sentimentos e emoções das flores!» Por paradoxal que pareça, só o coração da Natureza, puro e transparente como um espelho, cria a primazia da superfície na estética japonesa...
Tal dimensão espiritual da Natureza, e a profunda comunhão do ser humano com ela, será o que explica a frase de Paul Claudel: Nesse belo e feliz país o natural e o sobrenatural são apenas um... Eu próprio que, desde muito novo, enveredei pela busca insistente da consistência de algo permanente, sendo aliás sempre curioso e sobretudo atento a processos de aculturação, tentei - talvez inspirado pela minha juvenil leitura de Teilhard de Chardin e de Lévy-Strauss - perceber melhor os progressos e falhanços das inculturações religiosas e filosóficas no Japão.Já falei bastante sobre isso, e até publiquei escritos dispersos, designadamente sobre os modos budistas de aculturação com o shintoísmo nativo, bem como o estigma de estrangeirado que sempre marcou o cristianismo naquela cultura. Sobre a seara que hoje escolhi para talho de minha fouce, nada repetirei do que já afirmei ou interroguei. Apenas traduzirei uns trechos da obra de Yoko Orimo aqui citada, que oportunamente introduzirei nestas reflexões sobre a estética do efémero. Por agora, regresso a lições colhidas em leituras da minha mocidade e que, pensossinto, paradoxalmente ainda hoje me ajudam a conviver melhor com espiritualidades inspiradas por outras diferentes filosofias, tal como por visões do universo e perceções do tempo certamente contrárias e aparentemente contraditórias daquelas em que fui criado. Ao melhor recordarmos raízes, troncos e ramos da nossa cultura nativa, tanto melhor nos aperceberemos das diferenças dos conceitos inerentes a discursos e sensibilidades diversas e, por exercício dialético, nos aproximaremos de um olhar comum do coração da humanidade.
Assim, é curioso como o grande paleontólogo, antropólogo, visionário e místico, francês e jesuíta, Pierre Teilhard de Chardin, autor de obras cujos títulos apenas já muito dizem (La Place de l´Homme dans la Nature; Le Phénomène Humain; Le Milieu Divin), evolucionista crente na obra de Deus como motor da história natural, suspeito de panteísmo pela Igreja, tenha começado a sua aventura interior, científica e mística, por um firme propósito de procura do imperecível e duradouro. Escreve um seu biógrafo, o dominicano Jacques Arnould - doutor em ciências e em teologia, investigador da vida e sua evolução e das dimensões éticas, sociais e culturais da chamada "conquista do espaço" - em Teilhard de Chardin (Perrin, Paris, 2005:
Sempre em busca do imperecível e do duradouro, atravessa um período dito "do Ferro". Sessenta anos depois, escreverá em Le Coeur de la Matière: «Não devia ter mais de seis ou sete anos quando comecei a sentir-me atraído pela Matéria ou, mais exatamente, por algo que "luzia" no coração da Matéria». É verdade que, esclarece, sob a influência duma mãe tão piedosa como a sua, ele tem muito amor ao Menino Jesus. Todavia, reconhece, o seu "eu" está alhures nesses momentos em que, secretamente, se recolhe «na contemplação, na posse, na existência saboreada do seu "Deus de Ferro"». Uma chave de charrua encontrada no campo, ou um estilhaço de obus, a cabeça duma cunha de reforço, claro que metálica, emergindo dum soalho: eis uns ídolos que o miúdo literalmente adora. «E porquê o Ferro? e porquê, mais especialmente, tal pedaço de ferro (tinha de ser, o mais possível, espesso e maciço), só porque, para a minha experiência infantil, nada neste mundo era mais duro, mais pesado, mais tenaz, mais duradouro do que essa maravilhosa substância apanhada em forma tão plena quanto possível...» De que andará já à procura o rapazito de Sarcenat, que prefere o robusto coleóptero à muito frágil borboleta, a não ser da consistência e, sobretudo, do inalterável? «Até hoje (e sinto que até ao fim) essa primazia do Inalterável, isto é, do Irreversível, não cessou, não cessará nunca de marcar irrevogavelmente as minhas preferências pelo Necessário, pelo Geral, pelo "Natural" - por oposição ao Contingente, ao Particular e ao Artificial - tal disposição tendo, aliás, e por muito tempo, obscurecido a meus olhos os valores supremos do Pessoal e do Humano. Sentido da Plenitude, já nitidamente individualizado, e procurando já satisfazer-se pelo agarrar de um Objeto onde se concentrasse a Essência das Coisas». Ser-lhe-ão precisos muitos mais anos para descobrir «até que ponto a Consistência é então um efeito, não de "substância", mas de "convergência".
Agora, neste instante mesmo, cá estou eu a tentar olhar para isso a que se chama "Essência das Coisas" por diversas perspetivas, e procurando apor dois discursos diferentes, em vez de os opor. A perspetiva do tempo escatológico, prisma cristão, e a do tempo circular, não só prisma budista, mas shintoísta também e, na cultura japonesa, com a sua versão shinto-budista. Traduzo mais um trecho do livro de Yoko Orimo:
Deve ressaltar-se que, no decurso do longo processo de aculturação do budismo em terra japonesa, se desenvolveu, sobretudo a partir do fim do século XI, o sincretismo shinto-budista, em cujo seio a pouco e pouco se operou uma revolução doutrinal acerca da noção de impermanência: mujo. Se o budismo antigo concebia, com forte pendor pessimista, a existência humana como que atirada para o oceano do sofrimento em que os seres transmigram infinitamente, para o shinto, o mesmo movimento perpétuo do aparecer e desaparecer neste mundo fenomenal mais não é do que o processo natural e global da regeneração da vida do universo, incitando o ser humano a contemplá-la e exaltá-la. Nos confins destas duas óticas espirituais radicalmente opostas [a budista antiga e a shinto-budista], o sincretismo shinto-budista acaba por proclamar que a impermanência é permanente enquanto impermanente e é precisamente a própria manifestação da natureza do Despertado (Buda) abraçando a vida de todos os existentes, incluindo minerais e vegetais.
Regresso afinal à minha tradução e meditação do waka de Dogen, acima transcrito: a Primavera (haru) é flor (hana), como as flores são Primavera; o Verão (natsu) cuco (hototogisu), como é cuco o Verão que o pássaro do tempo (hototogisu) acorda; o Outono (aki) é lua (tsuki), e esta em suas fases passa pelo quarto minguante e outonal do ciclo; anunciando o Inverno (fuyu), neve (yuki) gélida que, cristalina, nítida, nos cobre como manto. Os perecíveis impermanentes da Natureza falam-nos da permanência da vida, fazem-nos ver o invisível. Também aqui descobrimos que a Consistência não é efeito da substância, mas da convergência do Espírito e da Matéria. Simultaneamente material e visível, espiritual e invisível. Será?