Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
“…when you throw a stone into the water, it finds the quickest way to the bottom of the water. It is the same when Siddhartha has an aim, a goal. Siddhartha does nothing; he waits, he thinks, he fasts, but he goes through the affairs of the world like the stone through water, without doing anything, without bestirring himself; he is drawn and lets himself fall.”, Herman Hesse In Siddhartha
Os desenhos de Phyllida Barlow (1944-2023) revelam o que de mais puro e subtil existe nas suas esculturas monumentais.
Os desenhos de Barlow não são resultado de um progresso, são antes revelação de um processo, de uma transformação que se vai dando. Não são pinturas, porque são consequências de uma ação imediata. São desenhos porque estão muito próximos do pensamento. São imagens excessivamente metódicas, disformes e amorfas. São preparações primárias.
Os seus desenhos são como uma espera - uma espera para que algo de inesperado e de surpreendente aconteça. São uma queda desejada, para que se dê uma metamorfose que faz sentido, num momento fugaz e num instante único.
“On of the most exciting things, for me, about sculpture, in a way I’m never completely satisfied with what I do (…) There is a sort of humbling process in that relationship with two sort of inevitable sourcers which are doubt and failure (…) The desire to find the unfindable is part of the chase.”, Phyllida Barlow In I am interested in the cycle of damage and repair, Louisiana Channel
Saber demasiado o que se quer encontrar, para obter um determinado resultado preconcebido, pode produzir resultados muito limitados. Por isso, Barlow deixa que os seus desenhos sejam sobretudo contemplações - para que se abram espaços improváveis entre pinceladas e preenchimentos. Estes desenhos são lentas satisfações, onde se decidem matérias, escalas e tamanhos. Correspondem a infinitas possibilidades imaginadas que permitem descobertas acidentais antes de esculpir.
A realidade vista pela lente da memória e da imaginação é a condição que desencadeia e provoca. A fonte da incerteza e daquilo que não se encontra vem da captação de coisas familiares e reais. Estes desenhos de Barlow são testemunho de memórias, de experiências, dos sentidos, de impressões e de dispersões súbitas. As coisas do mundo são adaptadas e repensadas nos desenhos e o ato de lembrar e de esquecer permite o enriquecimento da transformação.
Os desenhos de Barlow, são entusiasmos permanentes, são um pôr-se em risco continuamente e são vontades em potência. São um meio para se encontrar uma intenção, que acontece aos poucos. Os seus desenhos surgem como um seguimento de uma eterna procura daquilo que quer ser e se quer formar - o encontro com a imagem do objeto desejado nem sempre se dá, porque a imagem do objeto nem sempre quer ser encontrada. Formar é, segundo Barlow, uma luta ininterrupta com aquilo que se quer obter e capturar. É um inevitável estado imparável de insatisfação e humildade.
Os desenhos de Phyllida Barlow são, por isso, um espaço entre o imaginado e o desejado, entre um começo e um fim, entre a expectativa e a impossibilidade. E talvez até perpetuem estados de comunicação insuficiente, de insatisfação aceite, de produtiva ausência e de expectativa de coisa alguma.
“But I think that, yes, the object that doesn’t want to be found is a fascinating concept that intrigues me… something that is ever present.”, Phyllida Barlow In I am interested in the cycle of damage and repair, Louisiana Channel
Simone Weil sugere que para se poder aceitar o outro tal como é, é preciso que nunca se faça parte de circunstância alguma.
“Sinto que me é necessário, que me é prescrito, que me encontre só, estrangeira, exilada em qualquer meio humano, sem excepção.”, Simone Weil In Espera de Deus
Simone Weil revela que a capacidade de se fundir em todo o lugar e em todas as pessoas, implica que não se faça parte de meio nenhum. Viver separado, desanexado, descentrado, fora e nunca se sentir em casa deve fazer parte da nossa condição humana. Só assim, talvez, segundo Weil, possa existir a possibilidade da pessoa encontrar uma sólida posição no universo e de entender com mais claridade a realidade no mundo.
Ao não querer ser adotada por ninguém, nem fazer parte de um ‘nós’, Weil abre a eterna disponibilidade de o ser humano se sentir sempre fazer parte de qualquer lugar, todo o tempo. O querer pôr-se de lado, associa-se à vontade de querer desaparecer, para se poder “…fundir com que meio humano for, por onde passe”. Weil coloca-se, então, numa posição de total abertura, banalidade, e atenção em relação aos outros. A capacidade de mistura, conjugação e imersão implica não pertencer e assim se apagam as diferenças que existem entre o eu e o mundo.
Weil sugere que para se poder aceitar o outro tal como é, é preciso que nunca se faça parte de circunstância (condição, particularidade, lugar) alguma. Pertencer a um grupo, a uma comunidade pode afastar as outras vidas diferentes que se cruzam. Weil explica que fazer parte pode fabricar uma falsa imitação do divino e pode insinuar uma enganosa ideia de excecionalidade. As influências sociais, para Weil, têm a capacidade perversa de aproximar e confundir, sob as mesmas palavras, o mais puro com o mais horrível.
As vidas que estão para lá, ocultas, atrás do que se vê, só são acessíveis se a experiência do mundo for anónima, marginal e secundária - o eu transporta todas as histórias daqueles que o rodeiam, para sempre, mesmo que nunca mais se encontrem. Por isso, a busca de um sentido de verdade só talvez se dê nos contornos de uma superfície, distante de qualquer centro.
“Entendo o patriotismo como o sentimento que se concede a uma pátria terrestre.”, Simone Weil In Espera de Deus
Weil não deseja, por fraqueza e vulnerabilidade, colocar-se à mercê de uma vontade coletiva. Por ser extremamente influenciável nas coisas por contágio, receia ficar ao arbítrio da maior desumanidade.
Weil anseia, sim, estar exposta à constante mudança e à contínua falta de controlo. E colocar-se numa posição solitária, de perda de si, permanentemente sem-teto, desabrigada porque talvez só assim se possa ver quem realmente se é, e permitir-se em relação aos outros a possibilidade de uma aceitação.
O espaço das casas de Tokyo Style é aproveitado até ao limite, como uma colagem, ao máximo.
“Most expensive apartments are boring because they’re all the same, but in small apartments you can’t hide your personality.”, Kyoichi Tsuzuki In Apartamento Issue #20, 2017-18
No início dos anos 90, Kyoichi Tsuzuki começou a fotografar apartamentos pequenos, apertados e desordenados, em Tóquio. Tsuzuki visitava casas de amigos e também de estranhos. Com a publicação do livro ‘Tokyo Style’, há 30 anos atrás, Tsuzuki produziu um retrato real e raro que explora o que está fora dos limites do bom design. Estes interiores não são minimalistas, nem perfeitos como aqueles retratados nas revistas, e nem o pretendem ser.
É a exploração de um quotidiano marginal e uma ode ao maximalismo. O livro ensina-nos a ver para além do ideal, do esperado, do aceitável e do correto.
Tokyo Style é um pedaço de objetividade, que mostra a verdadeira escala humana que um espaço pode ter. O espaço de repente é de alguém e só desse alguém - porque é apropriado, delapidado, pintado, (re)interpretado, encerrado, preenchido e atulhado. Estes espaços fotografados em Tokyo Style parecem ser a continuação de um eu. São reflexo do que é falado, pensado, tocado, vestido, comido. Tsuzuki, propositadamente, fotografa só o espaço da casa, nunca ninguém aparece. Ainda assim sente-se intensamente a presença física dos que aí habitam - a roupa pendurada, a cama desfeita, os papéis acumulados, os desenhos nas paredes, as passagens estreitas, as portas que não se podem abrir, as janelas cobertas…
“We live in homely woodframe apartments or mini-condos crammed to the gills with things.”, Kyoichi Tsuzuki In Apartamento Issue #20, 2017-18
O espaço aparece, neste livro, como servidor, como contentor, pronto a ser individualizado, pronto a ser mais uma coisa por entre tantas outras coisas. É um espaço adaptável, manipulável, maleável, que se deixa convencer e que é dócil, de tão tangível que é. A suspensão da liberdade provocada por um espaço deixa de existir por momentos.
Através destas fotografias apercebemo-nos que cada pessoa tem uma forma particular de encontrar e de construir o seu conforto. E esta procura é uma escolha que não obedece a algoritmos, nem a ideias estandardizadas. É uma procura que tem de estar ao alcance de um instante, dos sentidos, do movimento e da forma de um corpo.
O espaço das casas de Tokyo Style é aproveitado até ao limite, como uma colagem, ao máximo - este espaço, todo o espaço (chão, parede, teto) e não outro, como que obedecendo a um processo de pura aceitação do que se tem, sem arrependimento e que até pode falhar.
“Bookstore shelves are lined with more publications on ‘Japanese Space’ than you’d ever want to see… But how many of these places look lived in? That’s because what these books show are the co-creations of known architects and photographers, or else very skillful presentations of designer products.”, Kyoichi Tsuzuki In Apartamento Issue #20, 2017-18
Este livro mostra, através de uma honestidade inesperada, que a vida de todos os dias não se transforma num espaço estéril. Estende-se porém na singularidade de cada apropriação, de cada erro e de cada contorno: “It’s your choice to live in a cluttered space or live in a simple space. But I don’t like the view that living in a clean, simple space is intellectually superior to living in a small, cluttered space.”, Kyoichi Tsuzuki In Apartamento Issue #20, 2017-18
“I was concerned above all with exploiting the contrast between black and white, between light and shadow. It’s a film in colour in a way, except that the colours are black and white. There’s a sheet which is white, it's not colourless, it's white in the same way the snow is white, white in the positive way, whereas if I had shot it in colour it wouldn't have been white any more, it would have been smudged, and I wanted it really white.”, Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 8-9)
Os Contos Morais, de Éric Rohmer, é uma série de seis filmes que explora o interesse em descrever o que se passa dentro do pensamento de uma pessoa. A preocupação maior relaciona-se com a narração de estados de espírito, de ideias e de sentimentos. Determinadas emoções, impressões, perceções e sensibilidades são investigadas através de um só ponto de vista - o ponto de vista de um narrador.
Rohmer explica que esta série de filmes não é o que se espera. O desenrolar da ação destes filmes vai até contra os desejos do próprio narrador e são uma concretização de um conflito. O narrador, omnipresente, cria um mundo para si mesmo, cujo centro é ele próprio. Tudo é perfeitamente lógico, dentro desses princípios em que o narrador é criador e manipulador. Tudo parece muito simples, o narrador é obcecado com uma lógica e toda a sua vida pode ser explicada segundo esse sistema e método por ele construído.
Em Ma Nuit chez Maud (1969, quarto filme dos Contos Morais) o narrador Jean-Louis vive isolado dentro do tempo e do espaço de Clermont-Ferrand. Ma Nuit chez Maud foi filmado propositadamente a preto e branco, de modo a fornecer uma base e a dar unidade. Segundo Rohmer, a cor não teria acrescentado nada à atmosfera do filme, pelo contrário, poderia até ter introduzido elementos de distorção. Na verdade, Rohmer revela que não havia cores no que foi filmado - as casas da cidade Clermont-Ferrand eram já cinzentas e também não havia cores na igreja.
“… when the film is in black-and-white you get less of a feeling of the different moments of the day, and there is less of what you might call a tactile impression about it.”, Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 10)
O inverno rigoroso e a neve revelam assim um contraste acentuado entre a luz e a escuridão e determinam a opressão de determinadas ideias e sistemas, num espaço hermético e fechado. Heredero e Santamarina, no livro Éric Rohmer (Cátedra, 1991), escrevem que a neve tem, dentro do filme, um papel fundamental como instrumento de oportunidade e de azar que move as personagens e que propícia encontros e separações: “De hecho, si una nevada es el pretexto para que el ingeniero pase la noche en casa de Maud (la mujer-2), otra nevada le permitirá acompañar a Françoise (la mujer-1) a su domicilio en las afueras de la ciudad.”(Heredero e Santamarina 1991, 140)
Estamos perante um filme espacial. Jean-Louis deseja controlar todos os espaços por onde passa (Rohmer filma a geografia do lugar com precisão e todas as trajetórias são respeitadas). A igreja, a cidade, a neve são elementos impregnados, encerrados e cercados pela perceção do narrador. Jean-Louis persegue Françoise (a rapariga da igreja e da bicicleta) e através do seu ponto de vista apercebemo-nos de que o seu desejo e a sua obsessão é o de controlar o destino de ambos, de modo a assemelhar-se a um acaso - como se de uma graça divina se tratasse. Jean-Louis quer ver sem ser visto, quer ter posse sem se apoderar. O pensamento racional e a coerência interna de Jean-Louis anseiam dominar todos os sentidos e todas as circunstâncias exteriores que o rodeiam.
Todos os pensamentos, palavras, movimentos e ações de Jean-Louis vêm, deste modo, dessa aspiração de controlo total, desse estado de permanente vigilância e da vontade de ser coerente com os seus princípios. Para evitar a angústia da escolha, Jean-Louis agarra-se a um amor construído. A eleição de Françoise para sua mulher, manifesta por isso a ambição rígida e perseverante, de Jean-Louis, em dominar a direção da sua vida por meio de ideias abstratas - mesmo que isso implique considerar a ideia do acaso apenas para reforçar uma missão moral do destino.
Porém, é, aquilo que está sujeito ao azar, neste caso à meteorologia, que neste filme, funciona como verdadeiro destino, como incontrolável e como indeterminado. Aqui, o imprevisto e o obscuro, tal como em muitos outros filmes de Rohmer, está associado a fenómenos naturais. É por isso, que a casa de Maud está fora da influência premeditada de Jean-Louis. E é precisamente nesses momentos desconhecidos e oferecidos que o narrador entra em conflito consigo próprio e a coerência da sua lógica é derrubada. O final do filme expõe, sobretudo, as fragilidades de um sistema e a desconstrução de uma ilusão.
“Consider the opening shot in which we see Trintignant’s dark silhouette take possession of the landscape by the intensity alone of his gaze (as if he were the reincarnation of Murnau’s great predators, Nosferatu or Mephisto). Or consider all the sequences filmed inside a car, from the point of view of a man who is avidly scouring the city’s streets, seeking - and knowing - someone to devour. At such moments, it is a kind of guilty ambition that Rohmer is staging: the ambition to imprison the real by keeping an eye on all its external signs. The very ambition that he put to work while filming My Night at Maud’s.” (Baecque e Herpe 2014, 232)
“Cities have become dumping grounds for globally begotten problems.” (Bauman 2003, 19)
No texto “City of Fears, City of Hope”, Zygmunt Bauman escreve que se vive hoje em permanente estado de revolução. O modo de vida urbano define-se através de uma constante mudança condensada e acelerada.
Para Bauman, a cidade é, por isso, sinónimo de contínua transformação. Na sua opinião é também o lugar, por excelência, onde estranhos se encontram.
A cidade vive da diferença e da complexidade. Os estranhos permanecem próximos uns dos outros e interagem (às vezes uma vida inteira) sem deixar de serem estranhos. Bauman explica que a densidade de ocupação do espaço resulta na concentração de problemas, necessidades, oportunidades e desafios, que uma pessoa só consegue entender se viver numa cidade. A constante necessidade de enfrentar problemas e fazer perguntas apresenta-se como o grande desafio urbano e pode assim elevar a inventividade da existência a níveis sem precedentes. (Bauman 2003, 6)
A vida na cidade, inevitavelmente, chama para si recém-chegados ou estranhos. Para Bauman, são os recém-chegados que trazem um novo olhar sobre as coisas e que desenvolvem novas formas de resolver problemas. Para aqueles que acabam de chegar tudo parece bizarro, nada é normal, nem dado como certo. Deste modo, para os enraizados e bem estabelecidos, os estranhos podem representar o desconhecido e a ameaça - são muitas vezes, vistos como os inimigos lógicos que põem em causa a tranquilidade e o orgulho local. Mas, uma cidade sem estranhos é um lugar sem vida. Bauman afirma que uma cidade será mais exuberante, pródiga e abundante, quanto mais os seus modos e os seus meios forem desafiados e questionados.
A cidade vive sempre de tensões e de equilíbrios constantes. A flutuabilidade intrínseca, a criatividade inerente, a proximidade, a densidade e a incerteza permanente da vida urbana, surge exatamente do relacionamento sempre incompleto e em constante agitação entre os vários espaços, organizações e indivíduos.
“Through their modern history cities have been the sites in which the settlement between contradictory interests, ambitions and forces was intermittently fought, negotiated, undermined, broken, revoked, re-fought, re-negotiated, challenged, found and lost, buried and ressurected.” (Bauman 2003, 14)
É verdade que são as forças contraditórias, as incompatibilidades mútuas e as tendências que se contradizem, que dão forma a uma cidade. Porém, segundo Bauman, o mundo atual está dividido entre o poder global e a pessoa local. O ser global está constantemente ligado a uma vasta rede de troca, de mensagens e de experiências privilegiadas e extraterritoriais que abrangem o mundo inteiro. O ser local depende do lugar onde mora, está ligado a uma rede segmentada e limitado à sua identidade (muitas vezes segregada) como garantia de defesa dos seus interesses.
A imagem, que emerge desta descrição de Bauman, é a de dois mundos de vida segregados e separados, em que um domina o outro. Apenas o ser local é territorialmente circunscrito e a sua existência pode ser compreendida numa rede de noções ortodoxas geográficas, mundanas e realistas. Aqueles que vivem no mundo global não precisam necessariamente de pertencer a um lugar e a fluidez da sua presença desliga os seus interesses e as suas preocupações dos problemas de qualquer cidade. Por isso, para Bauman, o estado da liquidez da modernidade mede-se pelo aumento do intervalo que separa estes dois mundos. E no mundo globalizado atual as ações concretas parecem ser só locais: “Only in ‘local matters’ our action or inaction may ‘make a difference’; as for other, admittedly ‘supra-local’ affairs - there is (or so we are repeatedly told by our political lerdes and all other ‘people in the know’) ‘no alternative’.” (Bauman 2003, 18-19)
Sendo assim, na opinião Bauman, as cidades de hoje são os depósitos dos problemas gerados na escala mundial e infelizmente são as pessoas locais de qualquer cidade que têm a tarefa impossível de encontrar as soluções para todas as contradições globais existentes.
Os subúrbios nos filmes de Eric Rohmer são centrais e não marginais.
“His female characters are fulfilled not in the alienating city centre, where they feel absolutely alone (in exile…), but in the interstices - at the beach (Le Rayon Vert) or in the suburbs (L’Ami de mon Amie).” (Handyside 2009, 217)
No texto “The Margins Don’t Have to Be Marginal: The banlieue in the Films of Éric Rohmer.”, Fiona Handyside explica que, na série Comédias e Provérbios de Eric Rohmer, a periferia pode ser lida como sendo a representação máxima da fluidez da modernidade, da auto-referência, da transição constante e do movimento que não pára.
Segundo Handyside, Blanche no filme L’Ami de mon Amie nunca encontrará permanência nem solidez em Cergy-Pontoise, porque esta cidade satélite foi pensada, precisamente, para estar ao serviço de uma sociedade que depende constantemente da rapidez, da mudança e do derivar contínuo. Para Handyside, Cergy simboliza, não a cidade utópica ou ideal, mas a cidade real e periférica concebida para uma sociedade pronta a deslocar-se para onde for, sempre que é preciso.
Porém, Cergy-Pontoise, no filme de Rohmer, é também metáfora para ser lugar de liberdade, de relações temporárias, de emancipação e de tempos livres. Em L’Ami de mon Amie, aparece como sendo um lugar de veraneio para pessoas reais. Rohmer documenta neste filme, as classes trabalhadoras parisienses, a aproveitar as oportunidades de lazer oferecidas por este subúrbio. Handyside explica que a maioria das imagens mediáticas dos subúrbios descrevem lugares horríveis e tristes, por isso não é de estranhar que Blanche se surpreenda ao encontrar famílias inteiras à beira do rio, tal qual como numa pintura de Seurat, a aproveitar o sol e o exterior.
Para Handyside, aos olhos de Rohmer, Cergy-Pontoise é a verdadeira reunião da cidade e do campo: “Cergy-Pontoise is posited by Rohmer not as a place of absolute difference from the city or the country, but as somewhere that has absorbed and incorporated elements of both.” (Handyside 2009, 218)
Nos filmes de Rohmer a margem é central e a vida no centro pode significar o exílio. Na opinião de Handyside, em vez de ser um grande fracasso social, os subúrbios em Rohmer, são centrais e não marginais ao funcionamento da sociedade, porque são entendidos como uma resposta dos cidadãos ao mundo da modernidade tardia - fragmentado e cheio de identidades e culturas concorrentes e contrastantes. As personagens dos filmes de Rohmer, têm personalidades ambíguas, reflexivas e múltiplas e escolhem viver nos subúrbios (ou melhor fora do centro de Paris) não por necessidade mas por vontade: “Cergy-Pontoise provides its citizens with bright, clean apartments, a variety of leisure activities, well-paid and interesting work, the opportunities to meet people and make friends…” (Handyside 2009, 219)
Deste modo, esta imagem de privilégio paradoxal da margem, representado no cinema de Rohmer, tem uma repercussão e um efeito revigorante nas diferentes experiências e ideias que se tem do espaço urbano e tem, acima de tudo, o poder de deslocar a noção de que apenas no centro da cidade se pode encontrar a felicidade.
High Sunderland é mais do que uma casa, é uma forma de viver.
Uma casa é de uma pessoa, mas para que uma pessoa consiga fazer parte integral de uma casa é preciso que exista uma ligação e um entendimento intrínseco e visceral de tudo o que rodeia e pertence a um determinado espaço e lugar. Shelley Klein no livro The See-Through House. My Father in Full Colour escreve que High Sunderland está mapeada no seu sangue e que intuitivamente consegue reconhecer cada espaço, canto, luz e textura desta casa.
Situada no sul de Galashiels na Escócia, High Sunderland foi desenhada, em 1958, pelo arquiteto Peter Womersley (1923-1993) para o designer têxtil Bernat Klein (1922-2014).
Ao estudar em Jerusalém, nos anos 1940, o jovem sérvio Bernat Klein, contactou pela primeira vez com as ideias da arquitetura do movimento moderno e da Bauhaus (foi a Bauhaus que iniciou uma produção criativa que acreditava no ato de construir como sendo a amálgama de todas as artes e por isso as formas resultantes afirmavam a geometria abstrata, a pureza da luz, a verdade dos materiais e a sensorialidade das texturas). Ao mudar-se e fixar-se na região escocesa das Scottish Borders, estas ideias modernas de Bernat Klein aproximaram-no do arquiteto Peter Womersley.
A linguagem, usada por Peter Womersley nos projetos de pequena escala, foi, por sua vez, muito influenciada pela arquitetura cada vez mais vernacular de Le Corbusier (que a partir dos anos 1930, começou a interessar-se por formas mais tradicionais e pelo equilíbrio entre as pessoas, as formas construídas e a paisagem); pela arquitetura moderna americana (nomeadamente pela Fallingwater (1935) de Frank Lloyd Wright mas também pelas casas desenhadas no âmbito do programa ‘The Case Study House’ lançado pela revista californiana Arts and Architecture); e finalmente pela novíssima arquitetura brutalista afirmada por Alison and Peter Smithson na escola de Hunstanton (1949-54). Womersley trabalhou durante um período em que o movimento moderno, cada vez mais aceite e conhecido por muitos, foi sendo cada vez mais absorvido e explorado localmente de modo a entrar numa polaridade claramente definida com o natural e com o orgânico. (Curtis 2005, 320)
É preciso fazer notar, que a influência da arquitetura do movimento moderno só se começou a sentir no Reino Unido a partir de meados de 1930 - este fenómeno coincidiu com a imigração de muitos arquitetos e artistas vindos da Alemanha, onde a arquitetura moderna começava a ser reprimida.
High Sunderland é mais do que uma casa, é uma forma de viver. Pertencer, fez parte de uma ideia moderna renovada que se preocupava não em criar uma casa para um ser genérico mas para uma pessoa particular e para um lugar específico e por isso preconizava uma solução única e irrepetível.
High Sunderland ao ser uma caixa térrea envidraçada, está constantemente cercada e envolvida pelas texturas e pelas cores mutáveis da paisagem. Os panos de vidro levaram a habitação a ser apelidada de See-Through House. E a singularidade desta casa, está precisamente no facto dos vãos envidraçados serem separados horizontalmente por faixas brancas e verticalmente por painéis de madeira Makore (a madeira funciona como um eco de todas as árvores que rodeiam a casa).
Womersley combina assim, a estrutura rígida e geométrica do aço branco, muito característica da máquina de habitar, com a introdução de uma variedade de materiais e de cores - através do uso da madeira, da pedra, dos tecidos de Bernat Klein e da densa vegetação. Na verdade, os primeiros esboços para High Sunderland não incluíam panos de madeira mas favoreciam o uso de pedra local - porém a escolha da pedra provou encarecer demasiado o projeto.
O uso do espaço aberto interno foi maximizado e simplificado através da eliminação de desnecessários corredores e paredes. Existia uma intenção em acentuar a flexibilidade modular da planta livre pelo uso de painéis, que tinham como objetivo permitir futuras modificações ou extensões. Separam-se então, através de painéis de madeira ou envidraçados, áreas para estar, trabalhar, dormir, comer, brincar, cozinhar e lavar, como se de volumes dentro de um grande volume se tratasse. A sala principal tem o piso rebaixado - o que permitia a Bernat Klein realizar neste espaço desfiles de moda para a sua empresa de têxteis. Grande parte da mobília foi feita por medida, com o propósito de servir a casa. A parede de mosaicos e todos os tecidos foram pensados por Bernat e Margaret Klein.
A casa, deste modo, permite um envolvimento total com o que existe à volta. Qualquer pessoa que aí viva, confunde-se com a paisagem e fará sempre parte daquele lugar. High Sunderland consente esta mistura e aproximação, concede ser o reflexo das árvores e abre-se à flexibilidade das tarefas mais banais.
‘A plain-sided glass box sitting on a hill could easily seem frail or banal; (however) the contrasts of solid and void, varnished boarding and full glazing, within the white frame, give the house strength and character.’, Michael Webb (Klein 2020, 24)
O Festspielhaus, em Hellerau, é o laboratório de uma nova humanidade.
O teatro Festspielhaus (1911) que Heinrich Tessenow (1876-1950) projetou, na cidade jardim de Hellerau, é a materialização viva de um espaço que consagra o encontro do corpo com o espírito.
O Festspielhaus em muito contribuiu para estabelecer o movimento alemão da reforma da vida, naquele pequeno lugar urbano. Ao ser o centro de Hellerau (a rua principal atravessa a praça que se abre em frente à fachada do teatro) e ao combinar harmoniosamente a natureza, o trabalho e a arte, é uma crítica concreta e aberta em relação à crescente industrialização, ao materialismo e à urbanização massiva.
O desenho de Tessenow desejava encontrar a ligação entre o templo e a casa, através da forma clássica e vernacular simplificada onde a geometria e a proporção têm mais importância do que o detalhe.
Alan Colquhoun no livro ‘La Arquitectura Moderna una Historia Desapasionada’ explica que uma das principais preocupações de Tessenow era a vivenda coletiva e o problema da repetição. Tessenow teve oportunidade de estudar e testar esta e outras questões em conjunto com outros arquitetos tais como Behrens, Riemerschmid e Muthesius no projeto das casas desenvolvidas em Hellerau. Estes arquitetos foram influenciados por modelos urbanos medievais, de espaços irregulares, estreitos e encerrados, defendidos por Camillo Sitte. Os projetos residenciais de Tessenow apoiavam-se na teoria que idealizava a pequena burguesia como a base da ordem social alemã e, por isso, este arquiteto imaginava e ansiava por pequenas cidades (de 20,000 a 60,000 habitantes) que viviam de pequenas indústrias artesanais (com não mais de 10 artesãos por oficina). A rejeição da civilização altamente industrializada, era muito próxima das ideias de John Ruskin, mas Tessenow mantinha uma preferência pelas formas clássicas.
Tessenow, ao projetar o principal edifício de Hellerau, optou por desenhar um auditório alto, retangular, despojado e colunado, que contrasta com as alas laterais de aspeto mais vernacular. A inclinação do frontão bastante acentuada, segundo Colquhoun, ilustra a intenção de Tessenow em fundir os protótipos alemão e latino. (Colquhoun 2005, 63)
Na opinião de Colquhoun, esta obra de Tessenow revela uma singular qualidade de abstração e pureza formal que anuncia a obra de Mies van der Rohe e que corresponde ao espírito grego das cenografias unitárias de Adolphe Appia e ao ensino da música baseado no movimento corporal expressivo e improvisado de Émile Jaques-Dalcroze.
O Festspielhaus, além do teatro e dos edifícios residenciais para professores e alunos, inclui também espaços abertos de luz e de sol ao seu redor. No seu interior a ausência de palco e de cortina faz com que os espectadores e os artistas se fundam numa só unidade de corpo e de alma A orquestra encontra-se num fosso subterrâneo completamente escondido dos olhos do público e que poderia ser fechado se necessário. As encenações de Adolphe Appia no Festspielhaus puderam, a partir de então, finalmente ficar unificadas através do controlo da intensidade da luz, dos movimentos dinâmicos e tridimensionais dos actores em palco e dos cenários perpendiculares e profundos.
Em Hellerau celebrava-se a arte como meio para educar e esta era tida como uma exigência social do seu tempo. É através do movimento que se entende o mundo e o espaço flexível, retangular e neutro concebido por Tessenow tem a capacidade de incluir os ritmos orgânicos, imprevistos, não controlados e inesperados do corpo que pretendia desafiar a nova sociedade industrial.
O Festspielhaus é o laboratório de uma nova humanidade onde os opostos se complementam e os conflitos se dissolvem. Aqui as pessoas, através do improviso dançam por um mundo melhor. O movimento do corpo apresentava-se então como a alternativa possível para recuperar o poder do orgânico. O projeto de Tessenow é, deste modo, a charneira entre o urbano e a natureza, entre a geometria e o espontâneo, entre a unidade e a separação, entre o estático e o móvel.
No centro do frontão ao estar esculpido o símbolo yin e yang consegue-se entender que a dualidade existente em todo o universo é a força subjacente deste teatro em forma de templo. O Festspielhaus é assim uma afirmação de que nada deve existir em estado puro, nem em absoluta quietude. Tudo deve, portanto, estar em constante movimento e em contínua transformação, através do corpo que se exprime livremente.
Appia chamou por isso ao Festspielhaus a catedral do futuro, porque a atenção total sobre a pessoa humana que se move e que tudo abrange ao desenvolver as suas habilidades rítmicas, poderá ter o impulso necessário para propagar a ideia de uma vida mais natural, holística e ecológica. E em Hellerau, sem dúvida iniciou-se uma renovação expressiva fundamental, do corpo e do espírito, mas que com a eclosão da Primeira Grande Guerra terminou abruptamente.
As pinturas das formas flutuantes de John McLean possuem um equilíbrio orgânico.
“The floating shapes that are none the less resonant of the moon, wings, maple seedlings or whatever, have evolved through compositional considerations more than anything else. I would of course admit, indeed rejoice in their having overtones of forms in nature, but would also point out they gain strength, meaning and universality from their mere configuration - the way, for example, they often reach out to the four corners of the canvas.”, John McLean, 1996
As pinturas das formas flutuantes de John McLean são quase geométricas. São pinturas que possuem um equilíbrio orgânico, uma lógica viva, uma ordem que pertence à natureza, uma coerência que integra os gestos mais simples e as formas mais primárias. Hesitam entre o planeado e o incerto. A intuição e a espontaneidade parecem resolver estas pinturas, talvez porque as intenções emergem do próprio ato de pintar.
McLean é único ao conseguir fixar o imediatismo de uma composição. As suas pinturas ao serem concebidas mantém a frescura da primeira ideia e da primeira pincelada. Parecem ser resultado de um esforço fácil e de uma sabedoria imediata. McLean é singular ao prender esse momento inicial antes que se desvaneça. Por isso, cada composição é como uma surpresa, sobrevem nova e nunca se repete. Cada pintura que sucede desenvolve-se a partir da anterior e cada forma surge através de considerações compositivas. A cor e as transparências ocorrem através da direta experimentação e da colagem. As várias camadas de tinta descobrem-se debaixo de cada superfície.
As pinturas não contêm uma narrativa segura e por esse motivo todas as formas se abrem a uma interpretação completamente acessível. A figura e o fundo, a forma e o espaço alternam-se constantemente. Nas telas descobrem-se círculos, pequenos triângulos ou talvez luas, sementes, diamantes, coroas e espirais. Contudo cada configuração pode ser o que se quiser - uma metáfora, um sinal, um símbolo ou apenas a forma pura.
E são sobretudo as múltiplas relações, ligações e associações das formas que ondeiam, que tornam a pintura de John McLean mais intensa e mais complexa. Não existe uma hierarquia das formas e dos espaços - tudo está em equilíbrio, tudo é necessário. O objetivo talvez seja tentar estar sempre no limite do que se sabe. Só assim possivelmente, a força e a importância das formas inconstantes, ganhe continuidade no tempo e no espaço.
Os cadernos de Lena Bergstein são uma provocação entre a palavra e a pintura.
Os cadernos da pintora Lena Bergstein (1946) exploram o diálogo entre o texto e a matéria, numa superfície pintada. São trabalhos em constante experimentação que acontecem ao cruzar a palavra com o tangível e com o concreto - as letras nascem sempre do gesto e da tinta. O acto de escrever é sempre físico, implica sempre o movimento da mão.
Essa relação de Bergstein, com a palavra começou com o desejo de arte (porque o desejo de pintar já existia). Por isso, a escrita, a poesia e a literatura somaram -se ao universo pictórico.
No início, a escrita de Bergstein, recolhia-se em linhas e marcas que não falavam - eram fios que se cosiam na tela e no papel. A costura e a representação dela faziam parte de uma escrita silenciosa. Mas a costura, devagar, foi dando lugar à escrita e ao livro.
Juntar o plástico, com o literário e com o psicanalítico é uma provocação, explica Bergstein. O sujeito dialoga com a pintura, mas a pintura também dialoga com o sujeito. Nos cadernos de Bergstein, aquilo que acontece dentro do pensamento, no momento presente do acto de pintar, abre-se, concretiza-se na matéria e na palavra, de modo a que nada do que acontece fique perdido. Existe um desejo de captar tudo o que está a acontecer, enquanto se pinta. Existe a urgência de que todas as instigações sejam reproduzidas e contadas. E essa é a poética que se instaura dentro de cada caderno, que se refere sempre a acontecimentos, gestos e marcas sem limite.
O livro faz naturalmente parte da escrita - o livro / caderno é, deste modo, visto por Bergstein como uma forma em potência. É o lugar onde se dá essa relação maior, de escrita com plasticidade. Para Bergstein, a arte é um enigma e as palavras que vão aparecendo no caderno representam uma possibilidade de resposta. Mas também podem significar o sentimento e o afeto que ocorre quando se pinta. A ação de pintar faz parte de um processo íntimo, isolado e oculto e as palavras podem ajudar a descobrir quantas coisas se podem dizer em relação ao que se está a fazer num determinado momento e também podem facilitar na manifestação de quantas maneiras diferentes se pode dizer o que se quer pintar.
Algumas páginas dos cadernos parecem rascunhos, parecem o avesso de uma escrita - mostram frases inacabadas, palavras riscadas, erradas, mutiladas, aquilo que não se deve mostrar, aquilo que se quer apagar. Não existe narrativa, mas existe continuidade. As palavras estão soltas ou sobrepostas, entre espaços, no meio de vazios. As palavras fazem parte de perguntas e respostas. Funcionam como forças germinantes, como sementes à espera.
Os cadernos materializam verdadeiras clareiras de diálogos múltiplos que se vão destapando. São conversas mudas, discussões encobertas, diálogos em aberto e discursos incompletos. O branco e o nada talvez simbolize o vazio da resposta ou o silêncio de uma pergunta. As diversas camadas de tinta escondem e cobrem palavras, linhas e marcas.
Bergstein gosta do desenvolvimento formal da linha, do ponto e do plano. Mas a desarticulação da escrita é a própria razão dos cadernos. Só assim há disponibilidade para que a escrita seja continuada, renovada, repensada ou refeita. A linguagem existe afinal em continuidade, nunca está completa e está sempre por acabar. A palavra, semanticamente, para ser lida tem de ter uma aparência e uma importância formal. E a pintura pode ser a narradora de uma história aberta, sem linearidade narrativa, nem temporal. Bergstein diz que, apesar da existência das palavras, as letras devem ter sempre a possibilidade de serem simplesmente letras, para que a procura e a experimentação nunca termine.