Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
“A velocíssima rapidez com que jogadores e técnicos portugueses se adaptam ou tentam adaptar a um bom uso da língua oficial de Espanha quando aí trabalham ou residem, é inversamente proporcional aos esforços que desportistas e técnicos espanhóis fazem para se adaptar a um bom domínio do português em terras lusas”.
Continuando, acrescentei:
“Refira-se que a ser verdade de que quem fala português tem mais facilidade de falar (e compreender) castelhano, seria de prever, por tal vantagem, que houvesse proporcionalmente mais espanhóis a interessar-se pelo nosso idioma”, o que manifestamente não acontece (A Língua Portuguesa no Mundo, XLIX - Não ao Complexo de Inferioridade Linguístico (II)).
Exemplifico-o referindo um treinador espanhol do Benfica (Camacho), “useiro e vezeiro no uso do castelhano no nosso país, apesar de residente em Portugal por razões profissionais, nunca se lhe tendo ouvido, via comunicação social, um bom dia, boa tarde, boa noite ou obrigado”, o que era extensivo ao seu compatriota Quique Flores, sem reclamação ou protesto, o que não sucederia se portugueses, por razões similares, residissem e laborassem no país vizinho, como sucedeu com Carlos Queiroz, José Mourinho, Cristiano Ronaldo, Futre ou Figo, o mesmo sucedendo agora, por exemplo, com João Félix e João Cancelo.
Aludo a um complexo de inferioridade linguístico luso, mesmo no nosso próprio país, quer através de um uso confidencial do nosso idioma ou sua baixa consideração social, quer por se entender serem os espanhóis maus em línguas, porque não se esforçam ou presumem não valer a pena, dada a nossa permissividade, sendo esta comum a uma percentagem significativa das nossas elites e jornalistas.
Por mim, em Portugal (como residente) ou Espanha (como turista ou viajante), tento fazer-me entender em português, usando-o e repetindo pausadamente as palavras, justificando-se, usando o inglês em caso de conflito e de não reciprocidade, se exequível. E são cada vez mais os espanhóis que entendem o meu português, dado que determinados maus hábitos de permissividade plena não se justificam. O que é bem diferente de morar e trabalhar no dia a dia noutro país, que não o nosso (mesmo que temporariamente).
Felizmente, há quem pense ser do mais elementar bom senso e uma questão de respeito aprender o nosso idioma quando residentes e trabalhadores entre nós aprendendo, no mínimo, o português básico e fundamental para uma integração saudável. Demonstra-o o atual treinador da seleção nacional Roberto Martinez, um espanhol da Catalunha, com aulas presenciais ou on line, nunca menos de duas horas diárias, para comunicar com os jogadores e entender a nossa cultura, tradições e história, tendo feito em português a primeira convocatória como selecionador de Portugal, usando-o quando interpelado no nosso país, onde reside e trabalha. Uma conduta adequada que deveria ser a norma, e que, até agora, é mais a exceção que a regra, o que se lastima.
É mais um baiano que vem da fábrica de talentos da Bahia, para cantar e contar tanta coisa bonita, para sambar, valer, morrer de alegria, na festa de rua, no samba da roda, na noite de lua, no canto do mar. A ele se juntam baianos consagrados, seus amigos e conhecidos, como Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa (recentemente falecida), entre outros.
Em outubro deste ano, com 81 anos e permanecendo no ativo, esteve em Portugal, onde atuou em Lisboa e no Porto, acompanhado por filhos e netos.
Recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Nova de Lisboa, por representar os valores de arte e cidadania e honrar “(…) a cultura que se expressa em português e a presença da língua portuguesa no mundo”.
Esta distinta e merecida homenagem foi vista pelo agraciado como “Um gesto de amor, encharcado de afeto e carinho desse Portugal, que estreita os laços entre povos irmãos e culturas contíguas”.
Nascido em Salvador, Bahia, em 1942, no mesmo ano de Caetano Veloso e Milton Nascimento, começou a tocar acordeão, no início da adolescência, influenciado por Luís Gonzaga, transitando para o violão, o seu instrumento preferido, através da descoberta da música de João Gilberto, conhecendo Dorival Caymmi, que lhe abriu novos horizontes começando, desde então, a escrever poesia, a compor e gravar os primeiros discos, tendo decidido, em 1966, viver da música, indo para o Rio de Janeiro.
A bossa nova juntou-o a Caetano, Gal e Tom Zé, que com o impacto dos Beatles se envolveram na criação do movimento tropicalista, que defendia o transvasamento cultural entre a tradição musical brasileira e a cultura global e de massas das expressões de vanguarda e de sonoridade pop e rock, numa mistura, ora conflituosa, ora pacífica, de que a canção “Geleia Geral” (brasileira), de Gilberto Gil (GG) e Torquato Neto é exemplo, onde se assimilava e reinventava a experiência estrangeira com qualidades locais ineludíveis, com a possibilidade de funcionar, num confronto internacional, como um produto de exportação mundial e de promoção da brasilidade e da língua portuguesa, no português do Brasil.
A difusão do nosso idioma por GG, mundializando-o e universalizando-o, está presente em canções como “Eu vim da Bahia”, “Expresso 2222”, “Geleia Geral”, “Roda”, “Procissão”, “Louvação”, “Chiclete com banana”, “Domingo no parque” e “Aquele abraço”, o que é redutor numa obra musical com mais de 600 canções, finalizada com uma bem sucedida carreira a solo, em vários géneros musicais, passando pelo baião, samba, bossa nova, música popular brasileira, pop, rock, funk, reggae, soul, blues, onde a terra mãe baiana, como território iniciático da brasilidade, devora informação nova importada de África e outros lugares, misturando-a e reinventando-a.
A figura multifacetada de GG, desde artista, pensador, compositor, cantor, empresário (tem formação em administração de empresas), até embaixador da ONU para agricultura e alimentação e Ministro da Cultura do Brasil, torna compreensível as distinções recebidas da UNESCO (como artista da paz), em França, na Suécia, EUA, incluindo o título, entre nós, de Doutor Honoris Causa pela universidade de Aveiro e da Nova de Lisboa, a que acresce, recentemente, a eleição como Imortal da Academia Brasileira de Letras, reforçando ainda mais o seu contributo para a divulgação e disseminação da língua portuguesa e cultura lusófona pelo mundo.
E foi em tom festivo que atuou em outubro deste ano em Portugal, celebrando 60 anos de carreira, tendo a acompanhá-lo dois filhos e dois netos, todos de apelido Gil (Bem Gil, José Gil, João Gil e Flor Gil), não se esquecendo de cantar “Aquele abraço”, exemplo singular da cultura que se expressa em português, que teve como insólita inspiração o modo como os soldados o saudavam quando preso no quartel: “Aquele abraço, Gil”, que aqui e agora nos é gratificante retribuir.
“Eu, este verão, nas minhas férias, fui a uma antiga pousada portuguesa, um sítio muito conhecido, há muitos anos, agora não porque saiu da rede de pousadas, onde há muitos anos, fica no interior do país, se ia especialmente para almoçar, eu fui lá almoçar e de repente, além do restaurante estar vazio, fiquei absolutamente siderado, porque a pessoa que apareceu para servir à mesa não sabia falar português, atenção o parador era em Portugal, não era um parador espanhol, não sabia falar português e tivemos que falar com ela na língua dela, que não era o português, e isto, como é que isto pode acontecer, como é que isto pode acontecer num setor e, em princípio, num equipamento que até devia ser de alguma diferenciação” (testemunho pessoal oral e radiofónico do jornalista e comentador José Manuel Fernandes, no programa Contra Corrente, da rádio Observador, de 01.09.23).
Pelo contexto do depoimento que ouvi, indicia-se que quem serviu o almoço só falava espanhol, dado falar-se que o parador era em Portugal, não em Espanha, tendo-se como não aceitável que tal factualidade tenha ocorrido, naquelas circunstâncias, no nosso país, na nossa própria casa, onde está consagrado, por costume e lei constitucional, que “A língua oficial é o Português” (artigo 11.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa).
Desconheço se quem ficou estupefacto e indignado (“siderado”, usando as suas palavras) reclamou por escrito, se só terá manifestado oralmente, no local, a sua justa perplexidade, sem abandonar o restaurante, uma vez que a empregada de mesa “não sabia falar português e tivemos que falar com ela na língua dela”.
Embora não tenha sido vítima, até hoje, de uma situação congénere, reconheço haver, entre nós, uma significativa e intolerável permissividade para “dar tiros no próprio pé”, querendo ser poliglotas, por tudo e por nada, dando azo, tantas vezes, a que se inferiorize e exclua o nosso idioma em interação com estrangeiros que residem ou trabalham em Portugal, sem lhes dar oportunidade que o aprendam ou que, eles próprios, não queiram, quer porque nós os não incentivamos ou eles se presumem civilizacionalmente superiores (só falando inglês), apesar de ditar o mais elementar bom senso que saber o português básico é imprescindível para uma integração mínima.
Sobre a excelência identitária da língua portuguesa escreveu Miguel Torga: “Lutei, luto e lutarei até ao derradeiro alento pela preservação dessa identidade, última razão de ser de qualquer indivíduo ou coletividade”, por maioria de razão, sem apelo nem agravo, no nosso próprio país, sob pena de poluirmos a própria água que bebemos.
“Seja qual for a perspetiva, o monolinguismo veicular duma língua tem sempre subjacente a ideia de que uma herança linguística diversa é um obstáculo para a homogeneização do mercado, não coincidindo com as necessidades de unicidade do mercado global, dado que a globalização pressupõe e impõe a unicidade, entrando em confronto com várias zonas linguísticas que comportam a existência de vários mercados. A ideia que prevalece é a de que quem tem o poder impõe a língua. E um dos argumentos mais comuns para se usar o inglês e não usar outras línguas é o mesmo: os custos. Usar inglês é mais barato, permitir o uso de outras línguas é dispendioso e nocivo” (A Língua Portuguesa no Mundo V - Monolinguismo, Diversidade e Neutralidade Linguística).
Dada a hegemonia do inglês, como língua franca, de comunicação global e internacional por excelência, há os que têm essa supremacia como inevitável, uma benesse, uma ameaça à diversidade, um idioma de apetência glotofágica, género “erva daninha” de destruição linguística.
Se a globalização impõe a unicidade a nível económico, financeiro, científico, político, militar, o mesmo sucedendo no campo linguístico, dado que a existência de várias zonas linguísticas suporta a existência de mercados em concorrência e parciais, como compreender que cada vez mais, em termos mundiais, haja mais pessoas que falam duas ou mais línguas sendo, no mínimo, bilingues?
É sabido que muitos falantes que têm o inglês como língua materna são monolingues, sendo como nativos uma minoria e estando em inferioridade, o que nos interpela sobre o que sucederá se a diversidade linguística desaparecer e a esmagadora maioria de nós falar um único idioma.
A par da universalização do inglês como língua franca, vai crescendo a ideia de que o melhor é sermos poliglotas, sermos capazes de nos exprimirmos em vários idiomas, de que o inglês é fundamental mas não basta, de que já não basta falar uma só língua estrangeira (além da nativa), de que o mais importante, a nível global, a começar pelos negócios, é a convicção de que comunicarmos com clientes, concorrentes ou colegas de profissão na sua própria língua pode ser decisivo num acordo ou reunião, havendo cada vez mais profissões em que falar várias línguas é um valor acrescentado às nossas qualificações académicas e profissionais.
Cada língua tem um tipo de relação especial com a realidade, é um valor que pertence à esfera do conhecimento e do saber difícil de quantificar, sendo saudável para a civilização manter a diversidade linguística, pelo que é arriscado contar só com uma língua e negar a diversidade de perspetivas que a biodiversidade e o multilinguismo proporcionam com o aumento da probabilidade de uma resposta mais adequada, proporcional e razoável.
Segundo os cientistas, assim como precisamos de fazer exercício físico para manter saudável o nosso corpo, também os exercícios cognitivos beneficiam a nossa saúde mental, enriquecida pelo falar de várias línguas, ganhando as mentes flexibilidade, atividade cerebral reforçada e aprendendo a realizar diversas tarefas ao mesmo tempo, tendo-se como enormes os benefícios do multilinguismo a nível cultural, profissional, social, psicológico e neurológico.
Ao invés da Torre de Babel bíblica em que os homens queriam apenas constituir um povo e falar uma única língua (dominação e imperialismo linguístico), construindo uma cidade e uma torre que chegasse aos céus, tornando-se famosos e evitando que se dispersassem pela Terra, intui-se que a diversidade é garantia de toda uma série de opções democráticas de abertura, durabilidade e estabilidade, da ausência de um poder dominante de tudo e de todos, tipo uma Babel poliglota.
Apesar de, com a inteligência artificial e os avanços tecnológicos, ser possível “(…) que no século XXI surjam máquinas de tradução e interpretação automática, tornando desnecessário, em termos de comunicação, o conhecimento mútuo de uma língua franca, estando as Nações Unidas a desenvolver o projeto “Universal Networking Language” (UNL), uma linguagem universal de tradução automática para uso na internet e em computadores, usando cada pessoa o seu idioma” (ler, neste blogue, A Língua Portuguesa no Mundo XXX - Observações e Críticas ao Pessimismo de Fisher), a unidade na diversidade linguística sobrevive, como património da Humanidade, tendo falhado a tentativa de uma interlíngua ou língua neutra, como o esperanto, por se entender que um idioma artificial e sem identidade não pode servir de língua identitária em termos supranacionais.
Sendo o português uma língua neolatina, é legítimo questionar a raiz luso de lusofonia, desde logo por nacionalistas das ex-colónias, incluindo também os portugueses que têm dúvidas e dificuldades em associar-se a um vínculo luso de origem linguística.
O termo luso pode ser muito “português” e simplista para descrever uma realidade mais ampla e variada, que o conceito operativo de lusofonia pretende agarrar, baseado no reconhecimento de um cosmos comunicacional da língua portuguesa e na aceitação dos ganhos que as dinâmicas dos blocos linguísticos permitem, transitando de uma existência linguística, política e social formal, plasmada no anuir a uma língua comum como idioma oficial, para patamares económicos e culturais mais promissores, que o mero existir e confronto com outros blocos afins sanciona como útil.
Indicia-se ser cada vez mais consensual que a lusofonia (e a sua raiz) tem de ser percecionada, em termos substantivos e de conteúdo, como um espaço geolinguístico, tendo-se por ultrapassado perspetivá-la, apenas ou essencialmente, como imperialista, colonialista, neocolonialista ou de radicalismos ideológicos, sob pena de se menosprezar a imagem de uma organização pluricontinental e de união internacional, em benefício de interesses terceiros baseados no mesmo conceito geolinguístico e estratégico.
A raiz luso, de lusofonia, sofre das mesmas suspeitas e inconvenientes dos detratores ou inconformados da anglofonia, francofonia, hispanofobia, russofobia e realidades de blocos geolinguísticos e geoestratégicos da mesma natureza.
Em qualquer caso, concorde-se ou não, trata-se de termos consagrados na bibliografia internacional da área específica que investigam e representam, deixando de criar anticorpos sérios entre os seus membros que voluntariamente aderiram e se integraram nesses espaços.
O que não exclui a evolução do termo lusofonia, adaptando-o em atualização com os tempos atuais, dado englobar, por exemplo, no seu sentido lato, toda a gama de literaturas lusófonas, quer em universidades e em livrarias, ao invés da parcialidade dos departamentos de literatura portuguesa ou brasileira, como se não fossem lusófonas.
O presumível complexo de superioridade de Portugal (antigo colonizador) e do Brasil (atual potência lusófona “colonizadora”), deriva do seu maior grau de desenvolvimento e do poder que lhe está associado, por confronto com os demais países lusófonos, pelo que o incómodo manifestado por estes tem de ser superado por fazer valer os seus interesses e poderio, sem esquecer uma futura e inevitável mudança segundo a qual, dentro de 50 a 70 anos, a esmagadora maioria dos falantes de português serão, essencialmente, de origem africana, com as suas consequências na lusofonia, a começar pela formação das variantes africanas da língua portuguesa.
Serão os descendentes da velha Europa imperial os novos impérios linguísticos do futuro, substituindo o eurocentrismo por outros centralismos.
“Pouco antes de eu completar quatro anos de idade, nasceu nossa irmã mais nova, para quem eu escolhera o nome de Maria Bethânia, por causa de uma bela valsa do compositor pernambucano Capiba, que começava com estas linhas majestosas e, à época, indecifráveis para mim: “Maria Bethânia, tu és para mim/a senhora do engenho”, e era grande sucesso na segunda metade da década de 40,na voz potente de Nelson Gonçalves”, acrescentando: “(…) ninguém se sentia com coragem de (…) pôr esse nome “tão pesado” num bebê. Como havia várias sugestões (…), meu pai resolveu escrever todos os nomes em pedacinhos de papal que, depois de dobrados, ele jogou (…) e me deu para tirar na sorte. Saiu o da minha escolha. Meu pai pôs (…) um ar resignado (que era uma ordem para que todos se resignassem) e disse: “Pronto. Agora tem que ser Maria Bethânia”. E saiu para registar a recém-nascida com esse nome. Recentemente, ouvi de minhas irmãs mais velhas (…) que meu pai escrevera Maria Bethânia em todos os papéis. Não é de todo improvável (…) na expressão resignada de meu pai era visível (…) um intrigante toque de humor. Mas, embora me encha de orgulho o pensamento (…) de ter trapaceado para me agradar, eu sempre preferi crer na autenticidade do sorteio (…)” (Verdade Tropical, edições quasi).
Sugestivo começo e apresentação de quem nasceu em Santo Amaro da Purificação, no estado da Bahia, de onde não queria sair, e se mudou para São Salvador, para estudar, quando ia fazer 14 anos e o mano, Caetano, 18, onde Bethânia teve como primeiro vínculo de amor o “Dique do Tororó com suas águas de um verde mutante e misterioso”, o que também encantava o irmão, o que a levou a gostar da mudança e a querer variar, satisfazendo novos interesses.
Curioso o modo como irmã e irmão saíam juntos para concertos, musicais, peças de teatro, exposições, filmes, festas populares ou de orixás, com uma solução conciliatória com o pai: “ele me disse que, já que eu advogava com tanta ênfase a frequência de Bethânia em eventos culturais como necessária para a sua formação como menina especial, ele admitia que ela saísse à noite, desde que fosse sempre comigo e que eu fechasse com ele um compromisso de responsabilidade com ela”.
Esta dupla insólita, inaceitável, inacreditável e surpreendente, para tantos, teria uma simbólica e soberana libertação no Rio, de onde datam as aparições de MB usando peruca de cabelos lisos e um pedido explícito a Caetano para que nunca mais opinasse como ela deveria orientar o seu trabalho ou seu modo de vida, o que representava, segundo o irmão, “o golpe de misericórdia na responsabilidade sobre ela que meu pai me tinha outorgado - e significou para mim um considerável alívio. Para ela, era a emancipação oficial “.
2. “Carcará” é tido como o primeiro grande êxito de Bethânia, num tom metálico e sonante dramaticamente eficaz, um sucesso de massas e de plateias politizadas, quando substituiu Nara Leão, a convite desta, no musical Opinião, no Rio, a que muitos se seguiriam: “Explode Coração”, “Coração Ateu”, “Esse Cara”, “Negue”, “Mel”, “Grito de Alerta”, “Álibi”, até duetos famosos como: “Sonho Meu” (com Gal Costa) e “É de Manhã” (com Caetano Veloso).
Se o seu testemunho musical, como embaixadora e intérprete, é incontestável na divulgação e promoção da língua portuguesa pelo mundo, numa voz singular e universal, exportando-a e extravasando os limites lusófonos e lusófilos, também o é como declamadora ou cantante de poetas, entre estes os portugueses Sá de Miranda, José Régio (“Cântico Negro”), Manuel Alegre (“Senhora do Vento Norte”), Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Anderson, os últimos a quem dedicou os álbuns “Imitação da Vida” e “Mar de Sophia”.
Foi agraciada, este ano, pelo governo português, com a medalha de Mérito Cultural, em cujo comunicado se destaca o inestimável trabalho feito na divulgação dos poetas portugueses “declamando-os, cantando-os e contribuindo de forma impar para a sua popularização não só no Brasil como em diversas partes do mundo”, fazendo deles artistas populares, a que já se antecipara, em 2010, a medalha da Ordem do Desassossego, em homenagem da Casa Fernando Pessoa pela sua difusão da obra pessoana.
Apesar de também já ter recebido a medalha de Mérito Municipal (pela CM de Lisboa) questiona-se: por que não outros agraciamentos de reconhecimento de todo o seu legado cultural em benefício dos povos lusófonos e da universalização do nosso idioma (incluindo um doutoramento honoris causa de universidades portuguesas)?
Embora meritória esta medalha de Mérito Cultural parece-nos, assim, insuficiente (em paralelo com a do irmão, este ano também agraciado, como, a propósito, opinámos, neste blogue: CVII - A Língua Portuguesa no Mundo, Os Méritos Culturais de Caetano Veloso).
Tem-se um assunto comum, há muitos anos, querer que o português seja um idioma oficial da ONU, a par do inglês, francês, espanhol, chinês, russo e árabe.
São recorrentes as propostas, recomendações, declarações de intenção, entre outras manifestações de vontade, reiteradas por sucessivos agendamentos formais que, até hoje, não se concretizaram.
Recentemente, na última Cimeira da CPLP, em agosto deste ano, em São Tomé, o presidente brasileiro, Lula da Silva, recebendo forte ovação, afirmou: “Temos de aproveitar termos um secretário-geral das Nações Unidas que fala português e acho que deveríamos entrar com informações e um pedido nas Nações Unidas para que a língua portuguesa seja transformada em língua oficial da ONU”, o que foi recebido e apoiado por unanimidade pelos presentes, mas é omitido na decisão final desta XIV sessão de países lusófonos.
Não foi a primeira vez, dado que já em 2016, em Brasília, na XI Cimeira da CPLP, foi aprovada por aclamação uma proposta para que o português seja língua oficial da ONU, apresentada pelo então presidente brasileiro Michel Temer, da qual também é omissa a declaração final da reunião.
Por entre aplausos, aclamações, ovações, felicitações, saudações, registos sonoros de boas intenções, recomendações, reforços e resoluções, nada ficou, por escrito, quanto à mais que merecida proposta para que o nosso idioma seja aceite, por mérito e direito próprio, como idioma oficial da ONU.
Sendo uma das línguas mais faladas a nível global, pluricontinental, pluricêntrica, a mais falada do hemisfério sul, a terceira do ocidente, de África e do continente americano, internacional, global, de exportação e com futuro, impondo-se por si como fator demográfico e geopolítico, é incompreensível ser uma candidata permanentemente adiada ao fórum de uma organização internacional universal como a ONU.
Lemos, que este ano, o Tribunal Centro-Americano de Justiça propôs ao Conselho de Segurança da ONU incorporar o português como seu idioma oficial, baseando-se na resolução de 2017 da Assembleia-Geral sobre a cooperação da CPLP com as Nações Unidas e o ser língua oficial da Conferência Geral da UNESCO, o que servia de base legal para solicitar a integração da língua portuguesa como língua oficial daquela organização e, posteriormente, poder ser aprovada na AG.
A corroborá-lo houve declarações de uma anuência, entre os líderes da CPLP, de falarem em português na AGNU, na grande maioria das reuniões e, sobretudo, em debates gerais, acrescentando-se que “(…) para falar em português temos que ter tradutores próprios, porque o sistema das Nações Unidas não tem tradutores de português”, salientando-se o imenso financiamento exigido para tornar exequível o português como um dos idiomas oficiais da ONU.
Quem paga e em que proporção, por certo será um dos problemas pendentes a resolver, sendo de presumir que caberá a Portugal e ao Brasil, maioritariamente ou na totalidade, esses custos, porque mais desenvolvidos e tidos potencialmente como os principais interessados e beneficiários, sem esquecer que os demais países da CPLP, recentemente descolonizados, poderão alegar tal facto, além de um nível de vida inferior, sem se esquecerem de invocar as suas sequelas como ex-colónias, embora o Brasil, em tempos idos, também o fosse.
Melhor que nada, mas pouco, convenhamos, por entre declarações elogiosas e proclamatórias de boas intenções, até agora não concretizadas, indiciando-se que o português continuará a ser menorizado e secundarizado, desde logo pela exiguidade de meios do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, exemplificando-o a recente verba anual de 310 000 euros (! …) que lhe foi atribuída.
Foi necessário um parecer de 2021, homologado pela ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em 2023, para considerar ilegal o uso exclusivo do inglês na denominação da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, que aquando da mudança de estatutos tinha assumido o novo nome de “Nova School of Law”.
Este comportamento, além de contrário ao imperativo constitucional de que, em Portugal, “A língua oficial é o Português” (artigo 11.º, n.º 3 da CRP), viola o art.º 10.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIER), que estabelece: “As instituições de ensino superior devem ter denominação própria e caraterística, em língua portuguesa, que as identifique de forma inequívoca, sem prejuízo da utilização conjunta de versões da denominação em línguas estrangeiras”.
Prevê o n.º 3 do mesmo normativo, ficar reservada para denominações de estabelecimentos do ensino superior a utilização dos termos, bem portugueses, como “universidade”, “faculdade”, “instituto universitário”, “instituto superior”, “instituto politécnico”, “escola superior e outras expressões que transmitam a ideia de nele ser ministrado ensino superior”.
Após prever que “A denominação de cada instituição de ensino só pode ser utilizada depois de registada junto do ministério da tutela” (n.º 4), dispõe o n.º 5 que o desrespeito é fundamento de recusa ou de cancelamento do registo de denominação. Por uma questão de princípio, bom senso e pela própria natureza da factualidade em análise e seu contexto, a língua portuguesa deve ser exclusiva ou ter primazia, nunca ser excluída, como sucedeu, ao arrepio do registo oficial (em português), nada impedindo a utilização conjunta de denominação em idiomas estrangeiros, com primazia para o nosso.
Foi necessária a queixa de alguém que, no legítimo exercício do seu direito de cidadania, questionasse quem de direito para o abuso a que se chegou, só agora se normalizando e revertendo a situação, via recente homologação ministerial, de julho deste ano (pela leitura da imprensa), aguardando-se os seus resultados práticos, dado que, pelo que acabamos de investigar, a designação “Nova School of Law” permanece generalizada na internet e, provavelmente, em documentos e páginas oficiais (como vinha sucedendo).
A generalização do inglês, como língua franca, não justifica estes excessos de deslumbramento parolo e de uma internacionalização forçada e provinciana.
1. Apesar de se assumir, em primeiro lugar, como brasileiro, houve sempre em Caetano Veloso (CV) uma admiração e deslumbramento pela língua portuguesa. Não há nele ressentimentos em relação ao nosso idioma, que não tem como “imperialista”, “colonialista”, neocolonialista”, “racista”, aceitando-o como um mosaico de falas dos mais variados lugares, pois não há Portugal sem Brasil, sem África, sem as Índias, o Extremo-Oriente, sem o mundo por onde nos deslocalizamos e dispersamos geograficamente, sem uma vocação de extroversão, porque como profundamente o compreendeu Fernando Pessoa, não há o português e a lusofonia sem a língua portuguesa.
Há décadas, quando no seu país natal havia declarações desfavoráveis sobre a língua portuguesa, isolada da dos falantes dos países vizinhos e de todo o continente sul americano, CV foi uma das vozes que se fez ouvir para afirmar que tinha todo o orgulho em falar português, dada a sua singularidade na diversidade e ser um elemento diferenciador dos outros povos da América Latina e das Américas.
Este sentimento de amor e afeição ao Brasil e à língua portuguesa, e por arrastamento a Portugal e aos lusófonos, manifestou-o no decurso da sua vida e sólida carreira, ao afirmar: “O nome do Brasil não apenas me parece, por todos os motivos, belo, como tenho dele desde sempre uma representação interna una e satisfatória”, “Santo Amaro não tinha ricos nem pobres e era bem urbanizada e tinha estilo próprio: todos se orgulhavam com naturalidade de ser brasileiros. Achávamos a língua portuguesa bela e clara” (Verdade Tropical, edições quasi).
Não há melhor exemplo, para celebrar o idioma cmum, que a canção “Língua”, onde têm cabimento e se evocam Camões, Pessoa, Carmen Miranda, Chico Buarque de Hollanda, Glauco Mattoso, Arrigo Barnabé, Maria da Fé, a Flor do Lácio Sambódromo, a Lusamérica, Guimarães Rosa, a Mangueira, Luanda, Scarlat Moon Chevalier, sendo dela os versos: “Minha pátria é minha língua”, “A língua é minha Pátria/E eu não tenho Pátria, tenho mátria/Quero fátria”.
Como escritor fala-nos da “bela carta de Pero Vaz de Caminha narrando a viagem ao rei de Portugal”, no movimento Tropicália e a preocupação que houve em não se confundir com o luso-tropicalismo de Gylberto Freire que tem “como algo muito mais respeitável”, de Agostinho da Silva, “o fascinante português fugitivo da salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização”, que “Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações”, sem esquecer que “A extraordinária cantora de fados portuguesa Amália Rodrigues já era conhecida desde muito antes de a bossa nova surgir e parecia eterna”.
Em 1985, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, cantou o fado “Estranha Forma de Vida”, em português de Portugal, desconhecendo que Amália estava presente, subindo esta ao palco, perante uma ovação emocionada da assistência, gesto decisivo para o ressurgimento do fado e um reencontrar do público com a fadista, numa atitude desafiante e ousada, tanto mais que, segundo CV, “(…) eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as plateias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações”.
2. Foi este artista que universalizou canções como “Alegria, Alegria”, “Você é Linda”, “Leãozinho”, “Língua”, que recentemente (19.09.23) recebeu a medalha de Mérito Cultural do governo português, que assim se apresenta: “Meu nome é Caetano porque nasci no dia de são Caetano, em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos, mesmo na minha ausência. Nunca me senti uma exceção por causa disso”.
Criada “(…) para distinguir pessoas singulares ou coletivas, nacionais ou estrangeiras, pela sua dedicação ao longo do tempo a atividades de ação ou divulgação cultural” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 123/84, de 13.04), a medalha de Mérito Cultural atribuída a CV, embora merecida, é insuficiente, dado o seu destinatário, in casu, ser um dos maiores defensores e divulgadores da nossa língua, como cantor e músico, além de compositor, produtor, escritor, como património comum lusófono e da humanidade.
A distinção, meritória, peca por “inacabada”, embora reforçada pela atribuição a agraciados, entre outros, como Maria Bethânia, sua irmã (música/língua portuguesa), Agustina Bessa Luís (literatura), Álvaro Siza Vieira (arquitetura), António Ramos Rosa (poesia), Campo Arqueológico de Mértola (património cultural), Centro Nacional de Cultura (divulgação cultural), Eduardo Lourenço (filosofia/ensaio), Eugénio de Andrade (poesia), Eunice Muñoz (teatro), Fernanda Montenegro (teatro), Jorge Borges de Macedo (história), Manoel de Oliveira (cinema), Maria João Pires (música), Orquestra Gulbenkian (música) Roberto Barchiesi (língua portuguesa).
Daí ser justo questionarmo-nos duma eventual atribuição da Ordem de Camões, de um doutoramento honoris causa (em que a universidade espanhola de Salamanca se antecipou), incluindo o prémio Camões, este na sequência de uma interpretação mais ampla do prémio atribuído a Bob Dylan (Nobel da literatura) e Chico Buarque (Camões), por critérios não movidos por uma interpretação literal e estritamente literária.
Portugal e a língua portuguesa não se complementam nem realizam tão só na Europa, havendo um compromisso e desígnio estratégico atlântico e global que se afirma levando a Europa e o Mundo à lusofonia e esta à Europa e ao Mundo, sendo a língua portuguesa o seu motor e veículo primordial, havendo que reconhecer, a esse nível, o contributo crucial de CV.
CVI - SUBALTERNIZAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM AGENDAS COMERCIAIS
“No âmbito do procedimento aquisitivo realizado pela …, por recurso ao … Papel e Economato …, com a referência PAQ/04/2018 …, foi celebrado contrato entre a … a empresa …, para fornecimento de material de economato aos tribunais.
No âmbito da execução deste contrato, diversos tribunais manifestaram o seu desagrado com a notória subalternização da língua portuguesa nas agendas comerciais, em relação à língua espanhola, nomeadamente na identificação do mês e do dia da semana.
Questionada a …, foi-nos transmitido que “na análise de propostas efetuada aquando do procedimento pré-contratual para a celebração do acordo-quadro foram apreciados os requisitos técnicos de cada produto apresentado por cada um dos concorrentes, de acordo com os requisitos estabelecidos nas peças do mesmo procedimento, … e, bem assim, que a questão reportada não fora suscitada nem, naturalmente, apreciada em sede de análise de propostas”.
Não obstante este esclarecimento, a … não se conformou com a presente situação, a qual reconheceu ser, a todos os títulos, inaceitável, tendo submetido de imediato um pedido de exceção …, com vista a obter autorização para a aquisição das referidas agendas fora do regime do acordo quadro em vigor.
No passado dia … a … considerou não existir fundamento para o pedido de exceção, esclarecendo que a … poderia lançar um procedimento ao abrigo do acordo-quadro, “estabelecendo a título de especificações técnicas complementares a primazia ou a exclusividade da língua portuguesa”, sem prejuízo da questão não se encontrar prevista no referido acordo-quadro.
Significa isto que, embora a … tenha permitido solicitar em futuro procedimento aquisitivo ao abrigo do acordo quadro, a título de especificações técnicas complementares, a primazia ou exclusividade da língua portuguesa, os fornecedores, no limite, poderão apresentar as agendas de acordo com o pretendido, considerando que os requisitos técnicos das mesmas foram oportunamente apreciados e aceites por aquele organismo.
De todo o modo, estas orientações já foram reencaminhadas para a …, que as traduzirá no procedimento aquisitivo que se encontra em preparação.
Tal não significa, …, que as comarcas devam suspender as encomendas do produto em causa, nos termos atualmente disponíveis”.
Eis um texto cujo conteúdo nos alerta para algo inaceitável num país em que vigora a consagração da língua portuguesa como idioma oficial, o que decorre do artigo 11.º, n.º 3 da CRP, em que houve uma secundarização do português, em Portugal, em agendas comerciais destinadas ao uso diário e profissional de portugueses, em benefício preferencial de uma outra língua, que não a nossa, a que foi dada primazia, na nossa própria casa, sem que tenham sido acautelados e impostos, atempadamente, pelos entes competentes, os procedimentos adequados para que o inadmissível não acontecesse.
Depreende-se, também, que foram razões puramente ou essencialmente economicistas, de redução de despesas e custos, com presumíveis elogios para o seu gestor, que justificaram esta inconcebível situação, em que não foi aberta uma exceção, após manifestações de desagrado de vários tribunais, sugerindo-se, a final, orientações para o futuro, tipo meras recomendações onde, por imperativo constitucional, legal e costumeiro se impunha e impõe um dever exclusivo ou de primazia que antecede, com naturalidade e por direito próprio, algo que não é discutível.