O CHINÊS QUE NOS FAZ FALTA
Falta um chinês ao “East of Eden” de Elia Kazan. A Europa sempre teve sonhos de Oriente e os poetas portugueses também, de Camões a Pessanha, Wenceslau, o ópio de Pessoa. Voltámos agora, patéticos, a sonhar com o chinês que nos falta.
Mas, enternecido com James Dean, Elia Kazan elidiu o chinês do seu “East of Eden”. Não admira que tenha ficado ligeiramente a leste do paraíso. No romance de John Steinbeck, que o filme adaptou, havia um chinês. Lee não é só o cozinheiro e fiel secretário de Adam Trask, o pai da personagem de James Dean. Falando pidgin, dizendo “amélica” em vez de “américa” ou “poltugal” se no romance tivesse de dizer “portugal”, Lee, o cozinheiro chinês, é o sopro de vida que reanima Adam quando a mulher em fuga o deixa à morte. No romance de Steinbeck, o chinês Lee é a ressurreição e a vida. Subtil, subliminar, mas a segura âncora que evita a deriva e o naufrágio do pai de James Dean.
Mais do que a importantíssima discrição com que marca a trama do romance, Lee constitui o seu centro filosófico. Num romance com uma tão forte carga de fatalidade, em que os pares de irmãos parecem nascer só para repetir o mito de Caim e Abel, Lee, obstinado leitor do “Genesis”, repete-lhes uma palavra que é palavra de redenção, “timshel”.
Somos os descendentes de Caim, irmão assassino do seu irmão. Mas convém não esquecer que no libelo acusatório do velho Jeová contra Caim não ressoam apenas os trovões da culpa e da expiação. Esse Deus, que ainda traz nos largos ouvidos o clamor do sangue de Abel, parece prometer ou ordenar que o assassino triunfe sobre o mal. Lee, o cozinheiro chinês, é um mineiro da palavra. Escava e revela, primeiro a Adam, o pai, depois a Caleb, o filho que no filme é James Dean, que Deus nem prometeu, nem ordenou. Deus diz “timshel” a esse homem que vai ser um fugitivo errante sobre a terra. O que quer dizer que ele pode, ou não, triunfar sobre o mal, conforme queira e saiba a sua humana vontade. “Timshel” é a palavra que, posta nas mãos do homem, lhe confere a estatura de um deus.
Tu podes. James Dean deveria no filme, como acontece a Caleb no livro, ouvir “tu podes” da boca do seu cozinheiro chinês. Saberia assim que, desde o “Genesis”, nos é concedido escolher e decidir. O Caleb que James Dean é no filme de Kazan tortura-se, supondo que herdou da mãe o mal que o corrói, o ressentimento contra o pai, o ódio ao irmão. A fatalidade é a mais velha teoria da conspiração.
Também hoje, náufragos da crise, em pleno olho do furacão, somos tentados a agarrar-nos ao destino, a velhas e novas teorias da conspiração. Como ao James Dean de Kazan, falta-nos o cozinheiro chinês, exegeta da Bíblia dos ocidentais, para nos vir dizer “tu podes”, devolvendo-nos a responsabilidade da escolha que, sendo só humana, nos converte nos únicos deuses desta terra.
Manuel S. Fonseca