A LUSOFONIA EM CONSTRUÇÃO
II - DO CULTURAL, AO ESTRATÉGICO E EM TODOS OS ALINHAMENTOS
1. Sendo a lusofonia uma aparente negação do princípio da territorialidade, no pressuposto de que a política de identidade deve substituir a territorial, estando a sua referência espacial preferencialmente associada a afetos, documentos, emoções, ideias, memórias, monumentos, sentimentos, numa construção permanente rumo à descoberta de um património linguístico e cultural afim e comum, não admira, nesta perspetiva, ser um conceito desconhecedor da noção de território. Tendo como matriz a língua portuguesa, corresponde a uma referência cultural espacial não territorializável, porque mais imaterial e espiritual, de dimensão mais metapolítica do que organização política. Só que, num mundo globalizado que também abdica de elos identitários, a lusofonia equivale também a um projeto político e estratégico protagonizado por aqueles que revendo-se, em termos identitários, na língua portuguesa, procuram fortalecer a sua base negocial no mundo da globalização. Daí ser também uma associação de natureza política não restrita a um único espaço geográfico ou a uma única comunidade organizada, transpondo fronteiras, soberanias estaduais e territoriais, nacionalidades, regimes políticos, sistemas económicos, jurídicos e sociais.
Não se esgota, assim, no uso comum da língua, incluindo tudo o que o diálogo por ela possibilitado proporciona, via aproximação na ciência, no desporto, na economia, no jurídico, na política, na religião, em todos os alinhamentos. Mas sendo tais aproximações e parcerias facilitadas pela língua, esta assume uma importância essencial e prévia a quaisquer entendimentos. Daí fazer sentido que as suas primeiras preocupações se voltem para as questões da língua, sua defesa, difusão, enriquecimento e ensino. Da música e desporto às telenovelas, passando pelo cinema, teatro, dança, pintura, escultura e literatura, tem-se intensificado a circulação de bens culturais, com potencialidades de aumento em áreas em que o fator língua comum é uma mais-valia, nas suas tendências e variantes. Por exemplo, é cada vez mais consensual falar-se em literaturas lusófonas. Quanto às literaturas africanas lusófonas, o espaço lusófono, desde logo o português, tem sido, senão o principal, um dos seus principais mercados, concretizando uma relação de aproximação e de pertença à lusofonia. Nomes como Agualusa, Craveirinha, Germano Almeida, Mia Couto, Ondjaki, Paulina Chiziane e Pepetela, são seus exemplos. Por que não em relação à gastronomia, desporto, estudos científicos, jurídicos, universitários, investigação? Numa época em que impera o audiovisual, não farão mais pela lusofonia imagens de espetáculos musicais com cantores lusófonos e eventos desportivos com equipas lusófonas, a começar pelo futebol, do que, infelizmente, a pouca ou nenhuma eficácia e visibilidade, a nível da opinião pública, de todas as reuniões da CPLP até hoje realizadas?
2. Como a globalização, que é organizada, também a lusofonia o deve ser, dado estar em causa a sua sobrevivência num mundo globalizado, podendo a mundialização representar, para ela, nos tempos atuais, a ameaça que no passado as teorias eugenistas e nacionalistas significaram para culturas que tinham como inferiores. Não deixa de ser curioso que sendo o fenómeno da globalização tão dominante na economia, o mesmo não suceda noutras áreas, como o comprovam os campeonatos mundiais e europeus de futebol, onde essa globalização não penetrou nos baluartes clubísticos e nacionais, apesar de indesmentível que o seu mercado se internacionalizou e globalizou. E se, cada vez mais, se entende que os afetos e a emoção também fazem parte da razão, não será por acaso, mas antes por aqueles existirem, que tende a existir uma empatia e uma relação mais íntima entre indivíduos, membros ou países de um mesmo bloco linguístico. Como o afirma Eduardo Lourenço, com palavras que vêm a propósito: “A indignação e a piedade são sentimentos universais, mas decerto a tragédia timorense teria encontrado menos escuta se a não sentíssemos como vinda de dentro, desse dentro definido e entrevisto nesse espaço interior de uma língua partilhada. E, provavelmente, a mítica morte de Ayrton Senna, embora universalmente sentida, não teria tido, como foi o caso, uma tão visível intensidade entre nós se não fosse brasileiro. Quer dizer, para nós, não menos miticamente, uma outra maneira de ser português.”(“A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia”, Gradiva, Lx., 1999, p. 187).
Por que não começar em redor de tudo aquilo que a pode consolidar e valorizar, desde logo atividades e parcerias que tiram partido imediato da língua comum, pré-existente a qualquer entendimento, sem esquecer a cidadania lusófona?
Há portugueses para quem é desconfortável pensar que a lusofonia será aquilo que o Brasil entender dela fazer, dele dependendo, atualmente, no essencial, a consolidação e disseminação da língua portuguesa como idioma de cultura e de poder. Mesmo para quem entenda, sem apelo nem agravo, que tudo o resto não passa de retórica, não deixa de ser mais angustiante consciencializar que um Portugal sozinho, numa comunidade ou União Europeia, convoca maiores problemas de identidade, mesmo a nível do português, aí já tido, factualmente, como língua dominada. Mais uma razão para uma aproximação pragmática (e não ideológica) ao espaço de língua portuguesa, com naturalidade e como reserva voltada para objetivos equilibrados, práticos e realistas, sem nos excluirmos do espaço europeu de que somos parte integrante, por direito próprio, enriquecendo-o e enriquecendo-nos, rumo a um equilíbrio final que nos credibilize e dignifique perante nós e os outros.
22 de maio de 2015
Joaquim Miguel De Morgado Patrício