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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

RECORDAÇÕES IMAGINÁRIAS: O TEMPO DA CABALA


1 -
 O termo cabala surgiu no léxico político português recente com Ferro Rodrigues, quando este, na sequência da prisão de Paulo Pedroso e de rumores que também o incriminavam (o famoso "e o Ferrinho também não escapa", atribuído a um desembargador folgazão), veio a terreiro avisar que estava em curso uma cabala contra o Partido Socialista, de que era então secretário-geral. Houve quem o acreditasse, houve quem o ridicularizasse. O que é certo é que, com cabala ou sem cabala, gerou-se, com o tempo, um vasto consenso sobre o "erro monumental" de uma tal acusação, que estaria na base da sua futura desgraça política. Erro dele? Pelo menos, má fortuna não convém dizer, pois que a invocação das casualidades da sorte (ou da deusa da cornucópia e do leme) já demasiado se aproxima de sentidos cabalísticos. Recentemente, a palavra voltou a dar que falar, quando o ministro Gomes da Silva citou uma cabala urdida pelo PÚBLICO, "Expresso" e Marcello Rebelo de Sousa contra o Governo a que ele pertence. Não vou glosar o tema da "cabala involuntária" que já lhe valeu os mofos de gregos e troianos. Pode-se é agourar (outro vocábulo assaz suspeito) que a expressão lhe vai ficar colada à pele e lhe será recordada de cada vez que abrir a boca que o ofício o impede de cerrar. Tão depressa, mais ninguém se atreverá a falar de cabalas, ou só o fará com superioridade irónica. Em artigo publicado neste jornal (PÚBLICO, 30 de outubro de 2004) Helena Matos, muito racionalista, diz-nos: "Venham elas donde vierem (...) as histórias das cabalas produzem em mim sempre o mesmo efeito: nos primeiros minutos começo a olhar para a parede mais próxima na esperança de que a mesma caia e, quem sabe, engula o meu interlocutor. Depois, consoante as horas a que tais relatos ocorrem, ora tenho de reprimir uns óbvios bocejos, ora começo a ser atacada por uma espécie de nervoso miudinho." Convenhamos que a esperança e a reação mais nervosa têm o seu quê de "cabalístico", pelo menos na ampla aceção que a autora depois dá ao termo, quando passa do significado mais comum ("negociação secreta e artificiosa", "intriga de grupo, partido ou fração secretamente conluiados para determinado fim") para sentidos de outro calibre, apontando "sociedades secretas, símbolos enigmáticos e forças obscuras" em luta pelo poder. Paredes a cair, lembram-me irresistivelmente o Livro de Daniel, que não é propriamente o melhor exemplo que se pode dar do uso do livro arbítrio, ou, em termos de Helena Matos, dos resultados das responsabilidades dos nossos atos. 


Não me move, contudo, qualquer desejo de embirrar com a minha colega colunista. O que me surpreendeu foi ver, metidos no mesmo saco, dislates ministeriais e um suposto ou real "espelho do tempo", traduzido pela atração provocada por códigos Da Vinci e quejandos, que confirmariam, nos adultos, a "tendência que os livros juvenis de Harry Potter vinham anunciando".


2 -
 Como se sabe (não há nada melhor do que ensinar o padre-nosso ao vigário) cabala provém do termo hebraico "kabbalah", que literalmente, segundo me ensinaram, quer dizer "ensino oculto". Historicamente, está conotado com uma interpretação mística, alegórica e esotérica do Antigo Testamento, que floresceu sobretudo a partir do século XII. Mas também há quem diga que o termo pode ser traduzido por "tradição", pois que as revelações cabalísticas mais não fariam do que permitir a transmissão da mensagem não escrita, comunicada pelo Senhor Iavé a Adão e a Moisés.


Inspiração maior para esta doutrina (que remontaria ao século I da nossa era) é o Livro de Daniel, o mais visionário dos textos da Tora e, talvez por isso, o que mais influenciou (indiretamente) o Apocalipse de S. João. As visões de Ezequiel apontam um dos mundos mais fantásticos da literatura da Antiguidade, sobretudo na descrição dos quatro animais do carro de Iavé; na "sarabanda cultual" do Templo, com seus monstros e ídolos; na célebre descrição das ossadas renascidas; ou na profecia do Tempo futuro, donde brotaria o rio de ouro. 


"Foi no trigésimo ano, no quarto mês, no dia quinto, quando me achava entre os deportados, nas margens do rio Kebar, que o céu se abriu e eu presenciei as visões divinas. No dia quinto do mês - era o quinto ano do exílio do rei Jojaquim - a palavra de Iavé foi ouvida pelo sacerdote Ezequiel, filho de Buzi, no país dos caldeus, nas margens do rio Kebar." "Antes de ouvir a voz de Iavé ('Filho do homem, de pé, que Eu te vou falar') Ezequiel teve a visão do Carro do Senhor, conduzido por quatro animais de forma humana. Tinham quatro faces e quatro asas, cada um (...)." "Tinham uma face de homem e todos os quatro tinham à direita uma face de leão e todos os quatro tinham à esquerda uma face de touro e todos os quatro tinham uma face de águia (...)."


As rodas do carro pareciam ter o brilho do crisólito (...) Quando os animais avançavam, as rodas avançavam junto a eles e, quando os animais se erguiam da terra, as rodas erguiam-se com eles. Para onde o Espírito os guiava, as rodas dirigiam-se também e também, como eles, se elevavam, pois que o espírito do animal estava em as rodas (...). E o que estava sobre as cabeças do animal assemelhava-se a uma abóbada resplandecente como o cristal (...)." "E, por cima da abóbada que estava sobre as cabeças deles, havia qualquer coisa que se assemelhava a uma pedra de safira, em forma de trono e sobre esta forma de trono, ainda mais por cima, havia um ser com aparência humana. E vi que Ele brilhava como brilha o mínio e junto a ele havia algo como se fosse fogo, envolvendo-o completamente desde o que pareciam ser os seus rins, até abaixo deles. E esse fogo assemelhava-se ao arco que se vê no céu nos dias de chuva (...). Qualquer coisa que tinha o aspeto da glória de Iavé."  Não é muito de espantar que uma tal visão tenha servido de tudo e para tudo. O leão, o touro, a águia e a figura humana foram, no cristianismo, os símbolos dos quatro evangelistas. O carro de fogo, a "merkava" da Kabala, bem como o divino trono, foram a visão prometida aos iluminados, os únicos a poder aceder aos dez números divinos de Deus Criador, através das vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Na sua globalidade, esses eram os "trinta e dois caminhos para a sabedoria divina".


3 - 
Se me demorei no primeiro capítulo do livro de Ezequiel, foi mais por prazer estético do que por intenção programática. O carro atravessou-se-me no caminho da Kabala e não resisti. Se o não travasse (releve-se-me a impenitência), conhecendo-me como me conheço, não sei até onde iria, até porque a visão continua alguns capítulos adiante. Mas uma tal torrente de misticismo, de que se podiam dar múltiplos e mais esotéricos desenlaces (quisesse eu continuar a resumir a história da Kabala), não exclui, antes inclui (ao contrário do que parece pensar Helena Reis, na sua diatribe contra os ocultismos) duas advertências solenes à responsabilidade pessoal (capítulos XIV e XVIII do mesmo Livro). Ezequiel foi também o primeiro a sustentar, nesses capítulos, que a salvação do homem, ou a sua perdição, não dependem nem dos antepassados, nem dos contemporâneos, nem mesmo dos erros passados. Se o indivíduo (passe o modernismo) agir retamente, Iavé o salvará e salvará os homens que o seguirem. No pecado e na redenção, só o homem é responsável pelos seus atos, o que já levou tantos comentadores a considerarem-no o primeiro grande individualista da tradição bíblica. "Se os pais comerem das uvas verdes, os dentes dos filhos rangerão", era provérbio antigo de Israel. Iavé diz a Ezequiel: "Pela tua vida, oráculo do Senhor Iavé, nunca mais repitas este provérbio." "Todas as vidas contam para Mim, tanto a vida do pai como a vida do filho. Só aquele que pecou morrerá." "Aquele que for justo, que respeitar o direito e a justiça, que não comer no alto das montanhas, que não levantar os olhos para os ídolos da casa de Israel, que não conspurcar a mulher do próximo, que não se aproximar de uma mulher durante a sua impureza, que não oprimir ninguém, que restituir o que tirou, que não cometer rapinas, que der de comer a quem tem fome e de vestir a quem está nu, que não emprestar usurariamente, que não cobrar juros, que desviar a mão do mal, que der testemunho verídico perante os homens, que se conduzir segundo a minha lei e observar os meus costumes agindo segundo a verdade, esse homem é verdadeiramente justo, oráculo de Iavé." Ignoro se a Kabala desenvolveu esta linha, numa das passagens do Antigo Testamento que mais anuncia o Novo. Não me admiraria nada se o tivesse feito. É que na história da humanidade, ao contrário do que tantos pensam, só a razão desacompanhada (não estou a falar da razão pura) gerou monstros e gerou a irracionalidade que tanto quis combater. Os dois mestres supremos dos séculos passados - Freud e Marx - dão-nos exemplos abundantes e aqui - ao que julgo - estou de acordo com Helena Matos. Mas, ao contrário do que ela parece acreditar, são as boas histórias que fazem a História. O mal dos Códigos em moda é serem más histórias. De outras, igualmente "cabalísticas", que vão dos poemas homéricos aos Cavaleiros da Távola Redonda, da "Divina Comédia" aos "Lusíadas", de Proust a Beckett, nunca veio mal ao mundo e pelo contrário veio muito bem. Eu diria, veio o melhor, mas isso já é outra conversa. Ou, como um dia escreveu George Steiner: "Não há, não pode haver, nesta terra, uma comunidade, por mais rudimentares que sejam os seus meios materiais (...), sem essas narrativas da recordação imaginada a que chamamos 'mito' e 'poesia'. Há, de facto, verdade na equação e no axioma; mas é uma verdade menor." A Cabala - a única que me interessa - é, também, mito e poesia. "Narrativa da recordação imaginária." Verdade maior.


por João Bénard da Costa
5 de novembro 2004, Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

MALINCONIA LUSITANA 


1. Agora que Franco Maria Ricci se aproximou de Portugal, a revista que há poucos meses deixou de ser dele (embora dele conserve as iniciais efémeras) dedicou, pela primeira vez, um artigo a uma obra de arte alegadamente portuguesa. Para mim, ver os Painéis, ditos de Nuno Gonçalves, nas páginas da minha revista de arte de cabeceira (eu sei que há quem a odeie) espicaçou-me muito mais a luso "auto-estima", do que os nossos feitos no Euro, a escolha de Durão Barroso para a Comissão Europeia ou os discursos presidenciais. Mas não façam muito caso. Eu não sou exemplo para ninguém, a não ser para mim, o que além de egocêntrico é tautológico. Devo algumas explicações preliminares? É bem certo que as devo. Como recordei em crónica já velhinha ("Do Infeliz Machado à Décima Segunda Noite", Público, 2 de janeiro de 2004), Franco Maria Ricci, esse tal que fez jogo homófono com Ephemeris (leiam em voz alta, e obtêm FMR, iniciais dele e título da revista) entrou em acordo com a Bertrand de Zita Seabra e editou, no Natal de vai fazer um ano, O Presépio Barroco Português, livro magnifico sobretudo dedicado a Machado de Castro. Ao que li algures, prepara-se para reincidir em co-edições portuguesas e, se não estou em erro, com o célebre Atlas de D. Manuel, que a Bertrand irá lançar sob os seus auspícios.


Enquanto isto, e enquanto se dedica a uma fabulosa série de livros sobre as coleções do Vaticano (já saíram dois, mas ainda faltam dez) abandonou a revista que fundara em 1982 e entregou-a a Marilena Ferrari. Mudou o formato (agora mais alto e, sobretudo, mais largo) e mudou a numeração. O número publicado em abril-maio de 2004 foi o último número algarismado à árabe (nº163). A partir de junho-julho de 2004, o numeral passou a cursivo. Uno, due, tre. Reminiscência da Revolução Francesa, nova era? Felizmente, nada disso. Como logo explicou a nova diretora no seu primeiro editorial, a mudança fez-se sob a sábia égide do Príncipe de Salina: se tudo muda é para que tudo fique na mesma. Aliás "tudo" é um exagero dela. O herói de Lampedusa e de Visconti nunca disse tal coisa, mas limitou-se advogar a mudança de algumas coisas para assegurar a permanência. Para lá do formato e da numeração, ainda não dei por transformações capitais. Ela lá terá as suas razões para chamar ao Príncipe de Salina "maestro de transizione". A principal mudança de que me dei conta foi mesmo essa a que me referi no inicio e que levou a que o "numero tre", que tem na capa um "mascherone" da decoração escultórica da base do sepulcro de D. Pedro de Toledo, vice-rei de Nápoles de 1532 a 1553, consagre um artigo ao famigeradíssimo políptico do Museu de Arte Antiga. É certo que já em tempos tinha havido um precioso texto (com preciosas reproduções) sobre os marfins indo-portugueses.


Mas a pintura portuguesa - se acaso o foi e lá chegarei - nunca havia tido tais honras. E serão coisas minhas - serão certamente - mas alguns pormenores das gloriosas reproduções (fotografias do português José Pessoa) pareceram-me "mieux que nature", eventualmente tocadas pela graça da vizinhança com o sepulcro do pai de Eleanora de Toledo, essa Eleanora de Bronzino, de mim e de pouca gente mais.


2. Chegou a altura de ordenar estas orgias, como diria Dolmancé. O artigo, com o mesmo título desta crónica, é do francês Yves Hersant, diretor de estudos da École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. Malinconia Lusitana é bem achado. Já Cioran dizia que, "de um modo geral, se podem distinguir na Europa três formas de tristeza: a russa, a portuguesa e a húngara". E se ele tem razão, raras vezes essa tristeza (ou essa malinconia", o que não é a mesma coisa mas anda lá perto) foi tão bem expressa como pelo autor dos Painéis. É mesmo essa a principal razão que me leva a acreditar que eles foram mesmo pintados por um português, sensivelmente contemporâneo daquele que inventou o "nunca tão tristes vistes / outros nenhuns por ninguém". Já estou a arranjar lenha para me queimar, ou para ficar mais apainelado.


Tocar nos Painéis, desde que foram descobertos em 1882, no convento de São Vicente de Fora, em Lisboa, ou, pelo menos, desde que José de Figueiredo, em 1910, escreveu um livro sobre eles, nunca deu saúde a ninguém e arruinou muitas reputações. Num caso até, levou ao suicídio um historiador incauto, que ficou tão triunfante quando julgou ter descoberto um manuscrito que lhe confirmava as teses, que nem sequer reparou que o dito era uma grosseira falsificação, armadilha de rivais que, conhecendo-o, sabiam que ele ia morder o isco. Quando a história se descobriu, impotente para provar a boa fé, preferiu meter uma bala na cabeça a viver o resto dos seus dias com a fama de troca-tintas. Era nos anos 20, quando a honra ainda tinha valor. Não sei se Yves Hersant sabia desta e doutras histórias (a última tocou de perto o filho de uma amiga minha). Mas a verdade é que decidiu ser muito cauto. Para entrar na "guerra" (guerra dos cem anos, sem nenhuma Joana d'Arc) adotou duas posições.


Primeira posição: o leitor não é português, o nome de Nuno Gonçalves não lhe diz coisíssima nenhuma e visita pela primeira vez o Museu das Janelas Verdes. Só há, para esse visitante, uma conclusão possível: "o políptico é uma das mais complexas figurações herdadas do Renascimento. Seguem-se ditirambos e algumas observações pertinentes. Relevo a que o faz evocar Alberti e o tratado De Pictura, publicado alguns anos antes da composição do retábulo (a acreditar que este foi pintado entre 1446-48). Hersant recorda-nos que Alberti defendeu, como primeira finalidade da pintura, "dar presenças aos ausentes", ou "fazer ressurgir os mortos aos olhos dos vivos". Além disso, deve despertar-nos os afetos, mostrar ações que nos comovam ou que nos aprazentem, contar uma historia. Hersant vê bem quando diz: "Perante os painéis de Lisboa, a historia escapa-nos. Provocam, certamente, emoções, já que, em termos albertianos, os homens que foram pintados manifestam intensamente o movimento próprio das suas almas. Talvez nos façam sentir com intensidade a presença dos ausentes, de tal modo o pintor observou escrupulosamente a natureza. Mas o essencial, ou o que Alberti tinha por essencial, não está lá, nega-se com obstinação". Aqui chegado (bem chegado, a meu ver) muda de posição. 


Segunda posição: o leitor (ou o espectador) é português. Sendo-o, sorrirá desdenhosamente do acima transcrito. Não é historia o que falta aos Painéis. Pelo contrário, sobra-lhes história, o excesso de histórias acerca deles. Já nos explicaram tudo e o contrario de tudo; já nos deram dois Nunos Gonçalves; já nos juraram que não houve Nuno Gonçalves nenhum; já nos traçaram histórias diversíssimas; já nos juraram que o santo é S. Vicente ou é o Infante Santo, ou é outro, ou é mesmo outra; já os expuseram como dois trípticos ou em disposição políptica; para muitos, falta um sétimo quadro (painel central); para outros faltam quatro, senão mesmo nove. Já ouvimos dizer que foram pintados antes de 1440 e cerca de 1460. Contra as teses "vicentinas" e "fernandistas", já houve a acutilante proposta de Vitorino Magalhães Godinho (1959) segundo o qual os Painéis representariam a passagem de poder do Infante D. Pedro (regente do reino) ao jovem rei D. Afonso V, em 1446. Mas também já se chamou à hipótese Godinho, hipótese marxista encapotada, tornando o suposto ou real Nuno Gonçalves num Fernão Lopes da pintura, cronista da burguesia contra os senhores feudais. Após se auto-flagelar com as hipotéticas reações portuguesas, Hersant põe-se numa terceira posição. Façam como eu. Ou "sejam como eu". "Suficientemente estrangeiro para que qualquer das ideologias nacionais não possa prevalecer sobre a análise estética; mas suficientemente português para que Gonçalves me atinja no mais profundo de mim próprio". Tanto se lhe dá como se lhe faz que um dado personagem seja X ou outro Y. O que lhe interessa, o que o comove, é que no Políptico (se for Políptico) "emerge uma consciência (...) consciência impossível na Idade Média". O Políptico é uma maravilha "porque interroga ao mesmo tempo a identidade individual e a identidade de uma nação". Cada figura está separada de todas as outras "por uma impercetível película", "mas, ao mesmo tempo, "no espaço conceptual concebido pelo pintor, cada um não é mais do que elemento de um corpo social que, a um nível superior, também toma consciência". 


Daí vai desaguar num texto antigo doutro francês (René Huyghe) e por um afluente na "malinconia lusitana". Como alguns terão adivinhado, chega a mau porto, com a sacrossanta invocação da "intraduzível saudade".


3. Fica-me pouco espaço e pouco tempo para desordenar a orgia, o que não é propriamente um mal. Quanto a mim - para me colocar na terceira posição de Hersant - ainda nada nem ninguém me convenceu tanto como Jorge de Sena, num luminoso ensaio de 1963, publicado em São Paulo, na Revista de História. Sabendo perfeitamente que ousava muito, Jorge de Sena limitou-se a dizer que só sabemos que não sabemos nada. Desmonta a autoria de Nuno Gonçalves e combate o "crime" (a palavra é dele) de retirar os Painéis à arte portuguesa. E conclui "O centro deles sempre estará na Flandres sem que, por isso, os painéis deixem de ser da melhor pintura do século XV, nem deixem de ser tesouros artísticos, iconograficamente portugueses, que Portugal possui". Passaram-se mais de 40 anos sobre este artigo e nunca o vi convincentemente refutado. Mas, folheando as páginas da FMR, basta-me a mesma certeza que Sena tinha. E Sena sabia, como eu sei, que ao falar-se da "melhor pintura do século XV" se está a falar de Van Eyck e de Van der Weyden, de Uccello e de Antonello. Basta ou não basta?


por João Bénard da Costa
26 de novembro 2004, Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
PARA AS BANDAS DA “PLAYBOY”


1 -
 Uns artiguitos, por aqui e por acolá, informaram-me que a "Playboy" fez 50 anos. Primeiro pensei: "Meu Deus, como o tempo passa!" Depois, melancólico, realizei que as mais tenrinhas das "bunnies" de há 50 anos têm hoje a minha idade. Marilyn - na celebérrima foto nua do número 1 - era bastante mais velha. O que vale (vale a quem?) é que o tempo não corre à mesma velocidade para os homens e para as mulheres. Marilyn morreu, ainda quase todas vocês nem nascidas eram. As coelhinhas desmamadas de 1953 têm agora idades assustadoras. Mas aquele que, ainda hoje, continua a ser tratado por Hef (Hugh Hefner, o patrão), nascido no mesmo ano de Marilyn (1926) continua, aos 77 anos, mais Viagra menos Viagra, a "dating" três coelhinhas em simultâneo e a ter um harém permanente de vinte e tal. A acreditar em Pedro Rolo Duarte, Sting, que entre parêntesis já vai nos cinquenta e picos, compara-o "a uns daqueles imperadores romanos decadentes, cercados pelos bárbaros da Internet, que estão a acabar com o seu império". Mas as fotos da festa das bodas de ouro, que se podem ver na "Playboy" de fevereiro de 2004, já à venda por aí, mostram-no em bastante boa forma e excecionalmente num impecável "tuxedo". Duvido que os bárbaros, quando lá chegarem e se lá chegarem, consigam o mesmo estardalhaço.


2 -
 Em 1953, ano XVIII da Revolução Nacional, indecências como a "Playboy" não chegavam a Portugal, mesmo se, vistos de hoje, esses números de antanho nos apareçam tão puros e castos. Foi na maluca década seguinte que comecei a ouvir falar dela e a comprá-la às escondidas em Paris, usando do álibi de tantos "intelectuais" da época: nela colaboravam nomes maiores da literatura americana. A quem nos apanhava com a boca na botija, respondíamos que a tínhamos nas mãos por causa de Norman Mailer e não das mulheres nuas. A partir daí, não me lembro bem. Começou a haver coisas bem mais escandalosas ou já nada escandalizava ninguém, como se lamentava o velho Breton, de barbas até ao umbigo. Mas o mito permaneceu e pelos vistos permanece, já que, desse tempo, só a "Playboy" subsiste. E não conheço ninguém que, pelo menos de nome, ou de escaparate, a não conheça. E ainda há quem tenha pudor de a comprar seja a quem for. Mas isso são outras histórias e eu venho hoje para contar a minha.


3 -
 Foi em Los Angeles. Primavera de 1995. Estava por lá num congresso das Cinematecas, desses que há todos os anos nas sete partidas do mundo. Quem chega a esses congressos recebe sempre, entre uma data de papelada, vários convites, qual deles o mais chato. Ou é o ministro ou é o presidente da câmara ou é o diretor de uma instituição cultural, que convida para um "cocktail", geralmente precedido por infindáveis discursos, em que os retardatários já não acham nada de beber nem nada de manjar. Daí o meu espanto, quando, entre vários envelopes, achei um com a inconfundível "trade-mark" e em que Hugh Hefner requestava o prazer da minha companhia para uma receção em casa dele (a lendária Mansão) dia tal às tantas horas. Apressei-me a confirmar, sem perceber a razão do convite. Embora se anunciasse uma sessão de cinema. Na tarde aprazada, meti-me num táxi com uns colegas (em Los Angeles, o táxi é o único transporte possível para quem não dispõe de carro próprio) Sunset Boulevard acima ou Sunset Boulevard abaixo. O cinema preparara-me para muito, mas não para a verificação experimental de que ser bi ou tri milionário na América ou na Europa é coisa distintíssima. O táxi parou à porta de um enorme portão de aço, entre altíssimos e irídicos muros. O motorista tocou em intocáveis botões e, com os nossos convites na mão, respondeu a uma voz de oz com os nomes que os nossos pais nos deram. Os portões abriram-se à sésamo e o táxi entrou, após cuidada contagem dos ocupantes. Seguiram-se três quilómetros de subida (não exagero) por uma estrada ladeada por árvores soberbas, com inscrições em latim. Fosse eu minimamente botânico (desgraçadamente não o sou) e esmagaria os peritos com nomes venerandos. A certa altura, lembrei-me da Rebecca de Hitchcock e do susto da Joan Fontaine da primeira vez que entrou em Manderley. Lembranças não eram lembradas e achei-me diante de uma mansão que parecia a do Senhor de Winter. O táxi contornou-a e descemos num jardim de buxos a perder de vista. Em pequeno, a minha mãezinha ensinou-me que, quando se é convidado, a primeira coisa a fazer é ir falar aos donos da casa. As regras ali eram diferentes. Numa vasta varanda, inconfundível na "silk red robe" e no "silk red pijama", Hugh Hefner conversava com uns íntimos e com umas íntimas. Nem pensar em lá chegar. Para o impedir, existiam uns polidos e corpulentos guarda-costas que nos saudavam em nome do mestre, enquanto conferiam discretamente o nome que lhes dizíamos com uma lista que tinham. E logo chegaram as coelhinhas, servindo copos, louramente insinuantes. Andando, tremiam-lhes as mesmas coisas que tremeram a Vénus quando subiu ao Olimpo para interceder pelo Gama. Qualquer coisa entre o jardim de Klingsor e o Venusberg.


Depois que de nós afastaram o desejo de comida e bebida, propuseram-nos uma voltinha. Começou pelo muito celebrado Grotto, que, ao princípio, parece a ribeira misteriosa da antiga feira popular e, a pouco e pouco, recorda os lagos e as grutas do rei-virgem da Baviera. Música afrodisíaca, estalactites e estalagmites a que só extremos de boa educação podem chamar símbolos fálicos ou vaginais. Por aqui me fico na descrição, que estas coisas mais vale imaginá-las do que nomeá-las. Após as vinte mil léguas submarinas, a Arca de Noé. Quero eu dizer, um jardim zoológico a perder de vista, onde não vi feras, mas muitas girafas, zebras, avestruzes e cangurus. O luxo da coleção era a morada dos répteis e o espaço dos aquários. A coleção de peixes do Pacifico era particularmente prodigiosa.


4 -
 A essas horas, começava a anoitecer, as coelhinhas prometeram o resto para logo e levaram-nos para dentro. Era tempo de cinema. A sala privativa de Hugh Hefner cumulou os meus sonhos. Madeira escura, grandes maples de couro, mesinhas para o cinzeiro e para o copo, ecrã imenso. À frente, cadeirão especial para o anfitrião, que entrou por outra porta e nos introduziu, numa longa preleção, ao filme que escolhera: a versão de 1939 de "The Hunchback of Notre Dame", realizada por William Dieterle, com Charles Laugthon e Maureen O'Hara. Bem ao meu estilo, contou de como amara o filme aos 13 anos e de como a seguir o foi amando vida fora. Nunca vi mais bela cópia dele.


Finda a sessão, alguns voltaram aos prazeres da mesa, enquanto outros (foi o meu caso) preferiram continuar a explorar os jardins. Não me arrependi, pois que as nossas guias nos levaram ao "santo dos santos", a peculiaríssima "garçonnière" de Hef.


Na sala de entrada, aquela versão da "Última Ceia", onde Clark Gable, James Dean, Marlon Brando, Elvis e sete outros bebem néctar e comem ambrósia. Uma parafernália erótica preenchia cada canto e cada recanto, até nos mostrarem os quartos e as casas de banho. As posições do "Kama-Sutra" ilustravam as portas, sugerindo a especialidade de cada câmara, como parece que foi de uso nos lupanares do século XIX. Entrado no primeiro quarto, fui-me abaixo das pernas, não por culpa delas, mas por culpa do chão, almofadado e elástico e não propriamente destinado à parte do corpo humano conhecida pelo nome de pés. Paredes e tetos de espelhos. Cada quarto cada cor, qual delas mais "kitsch" e mais berrante. Uma rampa de igual moleza levava às casas de banho, muito escuras e subterrâneas. Mas a luz, como tudo o resto, dependia do gosto de cada qual. Também se podiam iluminar feericamente as casas de banho e escurecer os quartos. Ideal para jogar às brincadeiras às escuras, à cabra-cega ou à linda barquinha do lindo luar.


- Quando voltei à Mansão, já havia poucos convidados, entretanto saídos ou entretanto recolhidos. Comecei a admirar a coleção de pintura de Hefner, sobretudo os seus Fragonard. Foi nessa altura que o homem de pijama de seda se aproximou de mim e a conversa voltou ao corcunda. Contou-me ele então que sempre gostara tanto de ver filmes como de falar sobre eles. Mas, outrora, os amigos fugiam a sete pés dessas conversas intermináveis, sobretudo do seu requinte supremo que era contar um filme tintim por tintim. Por isso, quando ficou rico e famoso, resolveu organizar aquelas sessões. Eram sobretudo um pretexto para ele falar, demasiado sabendo que os agradecidos convidados não ousariam pateá-lo ou virar-lhe as costas. "Agora, como viu" (e fora bem verdade) "ouvem-me em religioso silêncio e, no fim, dão-me muitas palmas. All that money can buy". "All", depois de tudo o que eu vira, era um exagero. Mas ficou-me a sensação (talvez errada) de que, pelo menos em 1995, ele se divertia bastante mais com essas cinéfilas palestras do que com as coelhinhas. Pelo menos, quando nos despedimos, já não havia coelhinhas nenhumas e ele estava a meio de me contar a versão de Lon Chaney (1923) do romance de Victor Hugo. As almas têm, às vezes, encontros singulares.


por João Bénard da Costa
30 de janeiro de 2004, in Público 

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
NINGUÉM QUE NÃO TENHA NOME


1 - A coleção chamava-se "Os Grandes Livros da Humanidade". Julgo que se começou a publicar nos finais dos anos 30 do século passado, ou nos inícios dos anos 40. Editou-a a Livraria Sá da Costa, ao tempo em que também editou os famosos "clássicos" que permitiram o acesso efémero a muito do melhor da nossa literatura e da literatura universal.

Mas Os Grandes Livros da Humanidade eram adaptações dos mais "famosos textos", "destinados a promover nos jovens e no povo o gosto pela cultura". Não sei que resultado tiveram junto do "povo", mas desculpa-se o chavão pela generosidade do propósito. Junto dos jovens, por mim falo. Se aprendi a ler, devo-o, em boa parte, a esses livros brancos de capa a cor que me revelaram, era eu criança, a "Peregrinação e a História Trágico-Marítima", o "Caramuru" e a "Crónica do Condestável". António Sérgio, Aquilino, Jaime Cortesão, João de Barros, Marques Braga, etc. foram os adaptadores. Nem sempre brilhantes, mas quase sempre cativadores. O melhor resultado - sempre falando por mim e por aqueles que de mim herdaram - foi alcançado por João de Barros (que eu ainda conheci, a buscar os netos à escola, baixinho, muito branquinho e de monóculo) com a adaptação da "Odisseia" de Homero, que foi o segundo título da coleção. Na capa, figurava-se Polifemo, o Cíclope medonho, aquele que "não se assemelhava / a quem se alimenta de pão, mas antes ao cume cheio de arvoredos / de uma alta montanha, que à vista se destaca dos outros". Imenso e nu, com um só olho na testa, como todos os da sua estirpe, estava sentado no chão de uma gruta, com as partes vergonhosas convenientemente cobertas e segurava na enorme dextra dois jovens que se preparava para comer. Fosse pela capa (de Martins Barata) fosse pela narrativa do célebre episódio, a história do Cíclope que comeu seis dos dez companheiros de Ulisses foi sempre a que mais me fascinou, de entre as terríficas e maravilhosas aventuras de Ulisses, desde que saiu de Tróia, até que aportou em Ogígia, onde vivia Calipso, a deusa de belas tranças, "deusa terrível de fala humana" que dele cuidou e a ele amou (Cantos IX a XII da "Odisseia").
Muito mais tarde, em adaptação de adaptação, bem ao meu jeito e ao meu modo, contei-a aos meus filhos e aos meus netos, não me temendo de assustá-los com os três banquetes antropófagos e com a minuciosa descrição de como Ulisses cegou o monstro, girando no único olho dele o tronco de oliveira em brasa, até o sangue "correr quente em toda a volta". Entre um e outro festim carnal, tinham rido às gargalhadas, quando eu lhes contava como o astuto Ulisses o enganara no nome, dizendo chamar-se Ninguém. "Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me / a minha mãe, o meu pai e todos os meus companheiros." Mais riam quando, já cego, Polífemo chamava os irmãos cíclopes em seu socorro. "Quem te mata pelo dolo e pela violência?". "Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência". E eles iam-se embora, dizendo estas palavras "apetrechadas de asas". "Se na verdade ninguém te está a fazer mal e estás aí sozinho / não há maneira de fugires à doença que vem de Zeus." Ulisses "ria-se no coração", "porque os enganara o nome e a irrepreensível artimanha". É claro - ou é escuro - que eu reforçava Homero entre os versos 385 e 420 do canto IX (porque é que os cantos nonos são sempre os mais libidinosos, é pergunta para que ainda não achei resposta). Polífemo não se ficava com a seca recusa dos irmãos. Na minha versão, também "destinada a promover nos meus descendentes o gosto pela cultura", sem que eu e eles tivéssemos disso clara consciência, Polífemo insistia: "Não! Não! Não se vão embora! Ninguém me faz mal! Ninguém me mata!" Três vezes o repetia, acentuando desesperadamente o Ninguém maiúsculo. Três vezes os outros o repreendiam. "Se ninguém te faz mal, se ninguém te mata, porque nos importunas a esta hora da noite e nos arrancas ao sono?" Entre a maiúscula e a minúscula, entre o nome definido e o pronome indefinido, Polífemo se perdia para gáudio de várias gerações de benardzinhos.


2 -
 Conheci, pois, a "Odisseia", mesmo se contada às crianças, em mui tenra idade e dei-a conhecer a crianças de igual tenrura. Além de Polífemo, o Cavalo de Tróia, Círce "a das muitas poções mágicas", a ilha das duas sereias, Cíla com as doze pernas, os seis pescoços e as três filas de dentes, a Caríbdis temível, sugadora da água escura, e as "robustas ovelhas do sol", pastoreadas pelas ninfas de belos cabelos, Featusa e Lampécia.

Só no fim da adolescência, entre o Pedro Nunes e os corredores do Convento de Jesus, no meio das voltas de muitos elétricos, me abeirei (Clássicos Sá da Costa) da versão em prosa dos Padres Dias Palmeira e Alves Correia, de que me apartou o português retorcido. Foi nos tempos em que aprendi algum grego e, para meu grande espanto de hoje, juro que a Ana Maria e eu chegámos a traduzir do original os primeiros cem versos do canto I. Mas a plena revelação deu-se com a tradução francesa (em prosa, como a dos padres portugueses) de Mario Meunier, edição da Guide du Livre de Lausanne, que me acompanhou pela vida dentro. Se me lembro do princípio, em francês o recordo: "Quel fut cet homme, Muse, raconte-le moi, cet homme aux milles astuces, qui si longtemps erra, après avoir renversé de Troade la sainte citadelle?" A pouco e pouco, esquecido o português de João de Barros, e ainda mais esquecido o grego dos meus 19 anos e de um explicador diligente e tímido, de quem nem o nome recordo, a "Odisseia" começou a falar-me em francês com um Odisseus de mil astúcias e uma Atena "aux yeux pers", adjetivo que me queriam convencer a traduzir por "glauco", palavra que sempre me pareceu feia, lembrando-me logo horrores de glaucomas. Se sempre esse livro me foi "o livro" (pelo menos tanto quanto A Bíblia), faltou-me sempre, como para A Bíblia me falta, a língua dele. E, nestas coisas, não há volta a dar: ou a língua é a original (e é tarde demais para eu pensar em voltar a aprender grego, de que, néscio, tão cedo me distraí) ou a língua é a minha. Mas, na minha língua, nenhuma "Odisseia" me valia, embora me digam que há uma ou outra de tempos pretéritos e de acesso recôndito que vale a pena consultar.


3 -
 Por isso, o maior acontecimento editorial do ano que acabou há poucos dias foi o lançamento da tradução de Frederico Lourenço, que motivou esta subjetiva digressão, onde todas as passagens citadas entre aspas dele vêm, com a óbvia exceção das autocitações que fiz da minha versão oral para crianças. Publicada pela Cotovia, essa tradução define logo, com clareza e concisão admiráveis, os seus dois objetivos fundamentais: a) colmatar uma lacuna evidente, pois que nenhuma tradução disponível, do original grego e em verso, existia para quem, como eu, procurava uma língua para Homero; b) "Devolver ao leitor de língua portuguesa o prazer do texto homérico. Significa isto que, apesar de vertida do grego e com a máxima fidelidade ao original, não é uma tradução arcaízante nem académica. É uma tradução para ser lida pelo gozo de ler."

Da fidelidade ao original não serei eu, pelas razões que já expliquei, a poder ajuizar. Mas aquela que é unanimemente reconhecida como a nossa maior helenista - falo da Prof. Maria Helena Rocha Pereira, conhecida por ser parca em elogios - já veio a público (creio mesmo que no PÚBLICO) gabar essa fidelidade. Quanto ao "gozo de ler" (e como eu estou agradecido ao Frederico Lourenço por ter tido a coragem de o invocar como objetivo supremo), ele me foi incomparável. Mais ainda quando a leio em voz alta ("além do que é preciso não esquecer que 'A Ilíada' e 'A Odisseia' são textos orais. Não foram concebidos para a leitura. A forma de receção do texto, implícita na própria contextura poética, é a audição") do que quando a leio em voz baixa. Não me sobra espaço para exemplos. Mas, no "verso aparentemente livre", "no fundo apoiado sobre o hexâmetro" e no ritmo dele, que Frederico Lourenço foi buscar a poetas como Sophia, Ruy Belo ou Eugénio de Andrade, soube ele encontrar a "pulsação das sílabas", num português em estado de graça. E, nesse português, contou a história do regresso a Ítaca de Odisseus, o filho de Laertes, aquele que só disse o seu nome e só contou essa sua história, quando o pai de Nausicaa, a das lindas vestes, lhe recordou que "entre os homens não há ninguém que não tenha nome, uma vez que tenha nascido". E com o meu nome vos digo que um dia, quando assentar a poeira e não restar memória dos "light tops" editoriais de 2003, se saberá que o grande livro escrito em língua portuguesa, neste ano da Graça de Deus, foi "A Odisseia", traduzida por Frederico Lourenço, quando Palas Atena nele insuflou a grande força poética.


por João Bénard da Costa
9 de janeiro de 2004, in Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
O GRISÚ E OS CANIBAIS (II) 


1. A 1 de abril, prometi eu que na "próxima sexta-feira" contaria mais histórias de Júlio Verne, passando dos grisús aos canibais (PÚBLICO, 1 de abril de 2005). Promessas de 1 de abril, dia das mentiras? Não eram, não, embora poucos me acreditem e ainda menos me creditem, o que, às vezes, dói o seu bocado. Acontece que tropecei num regresso de Londres e fiquei impróprio para consumo durante a tal "próxima sexta-feira" e as feiras mais vizinhas dela. Donde, dois azares, já que dos ditos se diz que nunca um vem sozinho. Faltei à promessa e faltei ao PÚBLICO (qualquer dia sou demitido por absentismo); fiquei a meio da história, o que é sempre a pior coisa que pode acontecer a um contador delas.


Em semana de tantos acontecimentos, cheguei a ponderar esquecer Verne e os canibais e passar a outros temas mais candentes. Ganhou o meu lado Xerazade. O que começou tem de acabar. Esqueçam (como eu vou tentar esquecer) a semana de 4 a 9 de abril. A "próxima sexta-feira" transfiram-na, a título póstumo, de 8 para 15. E ela aí está, se a minha Futura não se me encolher numa nega. 


2. Se bem se lembram, a 1 de abril eu resumi As Índias Negras, primeiro romance de Verne que me leram e eu li, como então expliquei. Pela voz da mesma Luzinha e na mesma escura sala, que dava para o pátio das traseiras do Lar Educativo João de Deus, ali na Rua Viriato, às Índias Negras sucedeu-se Em Frente da Bandeira, que não me deixou tão funda recordação. Ao que julgo recordar, era a história de um cientista dementado, de nome Thomaz Roque, que de mal com os homens e de mal com a pátria (a França) dedicava a vida ao fabrico de um explosivo potentíssimo, premonição verniana da bomba atómica. Era o "fulgurador Roque" e desse nome nunca mais me esqueci. Já não sei porque bulas o sábio erguia o seu laboratório num vulcão das Bermudas, entre piratas e outras gentes sequiosas de vingança. A notícia do perigo chegou às grandes potências e a França aparelhou uma frota para a captura do louco e seus acólitos. Demasiado tarde! O fulgurador Roque estava pronto a servir e o sábio saboreava a hora suprema em que mandaria para as profundezas a armada punitiva. Só que Roque podia estar louco, mas era francês. E, assim, o final era apoteoticamente chauvinista. Quando o cientista ia a dar ordem fatal, viu na sua frente a bandeira tricolor. "Em frente da bandeira", vacilou. Não estava tão inveterado no crime que bombardeasse o seu próprio país! Atirando ao chão o frasco do explosivo, esmigalhou-o com o tacão. Rebentou a ilha e todos quantos a habitavam, mas salvou-se a França e a humanidade.


Mas se, mesmo para os meus 9 anos, tal acesso de nacionalismo me pareceu pouco convincente, o gosto por Verne não abrandou. Foi nesse ano que devorei quase toda a obra dele. Percorri, o paralelo 37 com os filhos do Capitão Grant, reencontrei o Capitão Nemo na lagoa subterrânea de A Ilha Mysteriosa e as mesmas lágrimas que salvaram de cegueira o correio do czar, me fizeram amar acima de todos Miguel Strogoff. Acima de todos? Minto. Mais ainda que ele, amei outro russo, em que o correio era pombo e se chamou Mathias Sandorf. Lá fora, na varanda da Vila Raul, zangavam-se os crescidos, no último Verão em que a família, em aceção mais lata, coabitou nessa casa. No meu quarto, a que me acantonava o ritual da sesta, terrificavam-me tanto essas iras genéticas como a fuga de Sandorf, desescalando muralhas tão íngremes que era preciso ser ave ou demónio para dali escapar. Mas os meus favoritos (porquê o mas?) chamaram-se O Castelo dos Cárpatos e a Galera Chancellor. No Castelo dos Cárpatos nasceu o cinema como arte necrófila e como arte audiovisual. Na Galera Chancellor revelou-se o oculto Verne quase tão perverso como o gajeiro da Nau Catrineta. Como vos prometi histórias de canibais, soltem-se elas.


3. Chancellor (O Chancellor, apesar de ser galera) era o nome do bonito barco de novecentas toneladas, pertencente à poderosa casa Leard & Irmãos, que, a 27 de setembro de 1869, largou da Carolina do Sul (região obcecante para Verne) com destino a Liverpool.


Era um navio "forrado e cavilhado de cobre, tabuado exterior de teka e com mastros reais, exceto o da gata, de ferro e o aparelho fixo de arame". A Veritas, ao que presumo, publicação de autoridade na matéria, classificou-o como de primeira classe. Ao sair da barra, arreou o pavilhão britânico "mas nenhum homem do mar desconheceria a sua nacionalidade. É realmente o que parece, inglês desde a linha de flutuação até ao topo dos mastros".


A bordo, sete passageiros, dezoito nautas (capitão, imediato, um oficial, um mestre e catorze marinheiros, todos ingleses ou escoceses), um dispenseiro e um cozinheiro preto. Os passageiros eram um casal americano de Buffalo, uma jovem e bela inglesa, "a criada grave" da americana, um engenheiro de Manchester, um negociante de Cardiff, dois franceses, pai e filho, residentes no Havre e um tal J. B. Kazallon, cuja maior importância provém de ser ele o autor do diário que entre setembro de 1869 e janeiro de 1870 fixou as desditas do Chancellor. Porque este é um dos raros romances de Verne (só me lembro de outro mais) escritos na primeira pessoa, ou seja, em que existe uma "voz off" que é a voz de Kazallon. O narrador também é inglês (de Londres) mas não será inocente que neste "filme de terror" quase todos os personagens sejam sinistros, à exceção dos dois franceses, da tal "criada grave", do imediato, e, obviamente, do narrador.


Segundo as boas regras, tudo começa sob os melhores auspícios. Mas, ao fim de pouco tempo, destaca-se, pelo comportamento bizarro, o capitão que impõe à galera inexplicável rumo. Felizmente, o homem descobre a tempo a sua impotência e delega funções no imediato, que será o grande herói da fita. Só que já se perderam bastantes dias e, naquelas paragens, há um tempo para o mar e um tempo para a terra.


Rapidamente, nova desgraça: fogo a bordo, na carga de algodão. O imediato consegue manter segredo (só descoberto pelo narrador e poucos mais). Até que um dia, este (o narrador) surpreende uma conversa do negociante de Cardiff com o engenheiro de Manchester, em que o primeiro diz ao segundo que meteu clandestinamente na bagagem um boião com cerca de trinta libras de picrato de potássio, danado explosivo.


"Infame! Pois não sabe que temos fogo a bordo?", ruge Kazallon. O pânico espalha-se, o negociante enlouquece e acaba por se atirar borda fora e toda a gente espera ver a galera explodir, quando uma tempestade a atira contra uns rochedos. Males que vêm por bem. Os rombos no casco deixam que o mar apague o fogo que, por milagre, não chegara ao boião. Mas impedem o barco de continuar viagem. Alguns cobardes (cinco, incluíndo o ex-capitão e o americano de Buffalo) roubam o salva-vidas e põem-se a milhas. "Cinco salvos", diz o mestre. "Cinco perdidos", responde com mais sabedoria um velho marinheiro irlandês.


Lá fazem das fraquezas forças e constroem nova jangada, enquanto mais três marinheiros morrem e morre também a velha americana, abandonada pelo marido. Dos vinte e sete ficaram dezoito para um terrível mês de dezembro, em que a jangada foi parar à zona das tempestades, assim chamada porque "observador de ouvido fino sentirá continuamente o estrondear do trovão". Falta comida, falta de água. Deitaram sola de molho, mas a sola era tão rija que não a podiam tragar. Um dia morre mais um marinheiro. Quando o atiram ao mar, já lhe falta um pé, que foi servir de isco para a pesca. Com outro morto fazem-se menos cerimónias. Só não foi comido todo, em bródio de gáudio, porque o jovem francês, horrorizado, atirou ao mar, durante a noite, o que sobejara do manjar de um dia.


"É mister" (espantosa expressão que cada passo se encontra na tradução de Marianno Cyrillo de Carvalho que é a minha deste livro) é mister, dizia eu, que, aqui chegado, vos tenha que contar uma ou duas coisas sobre os tais franceses. O pai, Letourneur, homem de cinquenta anos, é a honestidade em pessoa. Fere-o, porém, mágoa máxima. O filho, André, nasceu aleijado de um parto em que lhe morrera a mulher. Desde aí, vive para André, que educou, com quem viaja e que acima de tudo protege. André, vinte e pouco anos, herdou as virtudes morais do pai, mas fisicamente de poucos préstimos é.


Volto ao meu conto. Felizmente, entre a marujada esfaimada, ninguém se apercebeu que fora André a atirar aos peixes os restos do cadáver. Mas pressentindo que o ato veio de um "civilizado" querem vingança de classe. "Capitão, em que dia tiraremos à sorte?"


O dia chegou a 26 de janeiro, quando já só restavam onze dos náugrafos. O narrador só no fim percebeu porque é que o honrado Letourneur se ofereceu para a "tarefa sinistra". Ao nono nome disse: "Letourneur". "Qual? perguntou o mestre. André! responde o pai. Ouve-se um grito. André cai desmaiado - Avia-te! exclama rugindo o carpinteiro Daoulas cujo o nome e o de Letourneur são os únicos restantes no chapéu, tira o penúltimo bilhete e, sem que a voz lhe trema, com uma firmeza que não era de esperar d'aquele velho, pronuncia esta última palavra: Daoulas!" A seguir, rasgou sem ler o último bilhete. Mas o narrador consegue apanhar um bocadinho onde lê: "And...". "O pai sacrificou-se pelo filho, e não possuindo mais que a vida para lhe dar, deu-lhe a vida." Chega o clímax. O velho Letourneur ainda propõe aos algozes um negócio. Para dez, o corpo dele é mais que suficiente. Contentem-se hoje com os meus dois braços e amanhã comam-me o resto. O negócio é aceite, mas o capitão e o narrador não suportam tanto. Atiram-se aos outros que, por sua vez, os atiram borda fora. E é quando o narrador engole a água que descobre que esta é doce e que, sem o saberem, navegavam há dias no Amazonas, "único rio de corrente tão abundante e impetuosa que repele a água do mar até vinte milhas da foz! À noite, a galera Chancellor estava em terra a varar. Assim me despeço das índias mais negras de Júlio Verne, dito escritor para jovens e para a boa edificação destes. Porquê? Acham que não foi?

por João Bénard da Costa
15 de abril 2005 in Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
O GRISÚ E OS CANIBAIS (I)


1. Por maior que seja o meu gosto por efemérides, juro à fé de quem sou que não me apanham a discutir os méritos ou deméritos relativos de Sartre e de Aron. Para esse peditório já dei e até julgo que generosamente. Voltar a ele, a pretexto de centenários, nem com luvas de amianto. Embora não resista a divertir-me com títulos como "o intelectual dos intelectuais" ou "o homem que nunca se enganou". Cala-te boca... Pelo contrário, Júlio Verne puxa-me o pé e puxa-me mesmo por aí acima de qualquer deles. Também é verdade que, no caso dele, se não comemoram berços mas sepulcros, pois que o homem, se fosse vivo, (Aquário como eu, nascido no dia seguinte ao dia dos meus anos) contaria 177 anos bem contados. 77 tinha ele quando morreu, em Amiens, a 24 de março, ainda Sartre nem nascido era e contava Aron apenas dez dias.


2. Antes de me ir à memória, uma divagaçãozinha gramatical sobre mistérios da língua portuguesa. Tal como nunca ninguém me conseguiu explicar porque bulas a proposição a se contrai ou descontrai do artigo dos artigos definidos a ou o em nomes de povoações ou de países, também me é identicamente misteriosa a razão ou razões por que se "aportuguesam" alguns nomes próprios estrangeiros, conservando-se no original a maioria deles. Dou exemplos, para ser claro. Porque é que se diz "ir a Cascais" e "ir ao Barreiro", ou "ir a França" e "ir ao Japão"? Depende das consoantes por que começa o substantivo próprio? Não depende nada, já que igualmente se diz "ir à Finlândia" e "ir a Java", "ir ao Cadaval" ou "ir a Braga". Também nada tem que ver com vogais no início do substantivo. Diz-se "ir à América", mas ninguém diz "ir à Almada", diz-se "ir a Évora" mas nunca ouvi dizer "ir a Estónia". Pura e simplesmente, não há regra ou eu nunca conheci José Pedro Machado que ma explicasse. Mas dá que pensar que digamos todas da mesma maneira ou, quando alguém troque (por exemplo: "ir à Espanha" ou "ir à França") que logo lhe identifiquemos a condição social, já que só o "povo" aglutina assim em vez de assado.


À exceção de alguns puristas, sobretudo do século XIX ou da primeira metade do século XX, não é de bom tom, em português, "aportuguesar" nomes de gente célebre. Não me estou a ouvir, nem estou a ouvir ninguém que conheça, a citar Honorato de Balzac, Henrique Stendhal, Guilherme Shakespeare, Luís de Beethoven, José Verdi, João Bellini, Marcos Rothko ou Frederico Murnau. Mas sei que faço figura de pedante se disser Michelangelo em vez de Miguel Ângelo, Raffaello em vez de Rafael, Victor Hugo (com acento no o de Victor e no o de Hugo) em vez de Victor Hugo, como se estivesse a falar do matemático. Pior ainda (muito pior) se estiver a desfiar nomes de reis. Louis XIV, Henry VIII ou Wilhelm II, não se espera ouvir nem da boca do mais pintado. Por que sim ou por que não quem saiba que mo explique, que eu só sei responder como se responde aos "porquês" das crianças: "por que sim" e está tudo dito sem se dizer nada.


Tanta conversa para quê? Para observar que, além do autor de Les Misérables (e, neste caso, era preferível escrever Os Miseráveis) Júlio Verne é o único escritor do século XIX a que raríssimos portugueses chamam Jules Verne. A imensa popularidade tem que ver com isso, no caso de Hugo como no caso de Verne? É bem possível. Eles foram dos pouquíssimos que foram quase integralmente traduzidos no seu tempo e lidos por portugueses que não sabiam palavra de francês, coisa que no século XIX, e até cerca de 1960, era sinal de incultura grassa. A "sociologia cultural", embora não explique Miguel Ângelo ou Rafael, pode explicar o Júlio Verne, que se pegou aos espíritos cultivados por contágio dos baixíssimos ou dos pré-adolescentes que em tempos idos o liam.


3. Júlio Verne, assim o conheci eu também, entre os meus 8 e os meus 12 anos, mais coisa menos coisa. Em casa dos meus avós, como em casa dos meus pais, havia prateleiras de estantes cheias, com as edições que começaram por ser de David Corazzi, subnominadas "imprensa horas românticas", e passaram depois para a Bertrand (Aillaud e Bertrand), mantendo-se idênticos o formato, a encadernação, o encarnado (às vezes o verde) e as gravuras da capa: uma bananeira com uma serpente enroscada no caule; um leão; um navio naufragado com um vago vulcão ao fundo; e um balão pelos ares. Para além do título da obra, lia-se em maiúsculas itálicas, a quase toda a altura, a expressão Viagens Maravilhosas.


Por uma dessas edições (de 1888 - mas já era a terceira) conto eu trinta e dois volumes já editados nesse ano em português, sendo que vários deles eram duplos ou triplos (A Aventura do Capitão Hatteras, Os Filhos do Capitão Grant, Vinte Mil Léguas Submarinas, A Ilha Mysteriosa, Miguel Strogoff, O Paiz dos Pelles, Heitor Servadac, Um Heroe de Quinze Annos, A Casa a Vapor, Keraban o Cabeçudo, Mathias Sandorf, Norte Contra Sul) e um (As Grandes Viagens e os Grandes Viajantes) era quíntuplo, o que, bem feitas as contas, perfaz quarenta e oito livros, que haviam de chegar aos setenta e dois, à data da morte do escritor. A grafia usada era o esplêndido português anterior ao malfadado acordo de 1911, em que se escrevia A Esphinge dos Gelos e Luctas de Marinheiro, tanto na Rua Garrett em Lisboa como na Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro. Esses livros, esse encarnado, essa ortographia, essas figuras da capa, mergulhavam-me em tal êxtase, que me consolava bem de não me deixarem tocar nas luxuosas edições da Hetzel, com gravuras de Neuville, Férat, Laplante ou Doré, que havia em casa do meu Avô Bénard, no original. Numa delas, escreveu o meu Avô a lápis: "Donné par mon père le 27 Juin 1880". Era o dia dos anos dele, 11 no caso em questão, que é o de Vingt Mille Lieues Sous Les Mers, que tivera primeira edição em 1870. Só 71 anos depois, a 1 de maio de 1951, passaram tais livros à minha posse, oferecidos pela minha Avó. O meu Avô leu Verne em 1880, como o meu Pai o leu em 1907 e eu o li em 1945. Três gerações educadas a Verne, mas já não juro pela quarta, pois que, apesar dos meus esforços, em 1970 ou durante essa década, os meus filhos já não devem ter terminado nenhum dos romances dele. Verne durou de 1860 a 1960, pelo menos como "leitura global". Raros serão hoje os maiores de 50 anos que entraram na adolescência guiados pelos filhos do Capitão Grant ou reencontraram o Capitão Nemo na ilha misteriosa. "Chamaste-me Capitão Nemo?" A mim chamou-me (e de que maneira!) naquele escritório da Rua do Jardim do Tabaco, que ficava logo à direita da porta da entrada e onde uma escura livreira de mogno guardava as viagens maravilhosas que me levaram aos pólos e ao equador, à lua e ao fundo dos mares, à estrela do sul e ao centro da terra.


4. Mas a minha introdução a Verne não foi escrita, foi oral. Tinha eu 9 anos e andava no Lar Educativo João de Deus. Uma das netas do poeta, que era minha professora - Maria da Luz de Deus Ramos que, depois de casada, já fora desse tempo, se chamou Maria da Luz Ponces de Carvalho, a Luzinha como então todos lhe chamávamos - ocupava parte da aula da tarde a ler-nos Verne. O primeiro livro que assim nos leu foi As Índias Negras, que se situava nas hulheiras de Aberfoyle, na Escócia de outras eras.


"Pede-se ao engenheiro Jaime Starr o obséquio de se dirigir amanhã às hulheiras de Aberfoyle (...) onde lhe será feita uma comunicação da mais alta importância." Assim começava esse livro. A hulha havia-se esgotado nas minas que foram abandonadas, mas estranhos mistérios ocorriam nas profundezas dela. Após muitas peripécias - e para muito resumir - descobria-se que o antigo capitão da mina ("Overman", chamou-lhe o tradutor), um velho de nome Silfax, que todos julgavam morto, se refugiava nas galerias dela, acompanhado por uma neta e por uma estranha ave, um harfang, tão mais insólito quanto nunca consegui perceber de que espécie de pássaro se tratava. O velho ensandecido procurava uma vingança contra quem lhe roubara o último filão das velhas hulheiras e também o amor da neta. O plano dele era libertar grisú, um gás explosivo, e fazer ir a mina abaixo, com todos os que o haviam roubado. Terrível era a aparição final do velho, no meio de um lago subterrâneo, "de olhar sinistro, barbas alvíssimas, caindo sobre o peito, roupas talares e a cabeça coberta por um capuz". Tinha na mão uma lâmpada de Davy e com ela queria fazer explodir o gás, o grisú. "Oh, grisú, oh grisú... Soou a hora da minha vingança!" No último minuto, dava-se a salvação e a morte de Silfax. Mas, até chegar aí, foram tardes e tardes em que eu nada mais esperava do que saber que mistério escondia a mina e quem era o fantasma que a habitava. O suspense foi demasiado. Precipitei-me para o livro e, nesse mesmo dia, começou a minha compulsiva paixão por Verne, que durou três anos e trinta livros. Começaram também os meus pesadelos com Verne, revendo o velho e o harfang de "penas brancas mosqueadas de pintas negras". Os pesadelos ainda os consegui transmitir. Em carnavais da Serra da Estrela, em casa da Zézinha e do António Alçada, quando a neve caía lá fora, antes de deitar os meus filhos mais velhos (7 e 6 anos à época) eu contei-lhes resumidamente esse extraordinário romance, detendo-me, como a Luzinha fizera comigo, na descrição das tenebrosas galerias da mina, no pássaro sinistro e na aparição do velho com o seu grito de vingança. Imitava o gesto de "horrível imprecação" que Silfax soltou ao ver frustrados os seus intentos. Grito que foi o último que proferiu, pois se precipitou nas águas do lago que não quiseram restituir à sua presa.


As crianças ouviam-me aterradas e, ainda hoje, a minha filha Ana estremece a evocar os pesadelos infantis, provocados pelo grisú, pelo harfang e pelo velho Silfax com a sua barquinha e o seu "riso cavernoso", enquanto se espalhava o cheiro do "hidrogénio protocarbonado". Imaginem que eu lhe tinha contado a história dos canibais da Galera Chancellor! Não conhecem? Esperem até à próxima sexta-feira. Já não têm 7 anos.


por João Bénard da Costa
1 de abril 2005 in Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS MEUS SETE PAPAS (II) 


1. Como alguns se lembrarão, estava perto do Taj Mahal quando, tarde e a más horas, soube da morte de João Paulo I, por tão pouco tempo meu quinto Papa.


De lá segui para as Pirâmides e para o Egipto, mas não foi entre faraós que soube do Papa posto em vez do Papa morto. Já tinha regressado à pátria, findo o meu mês de orientes, quando apareceu fumo branco por Karol Wojtyla, que, como o seu efémero predecessor, escolheu dois nomes e os mesmos dois nomes: João Paulo II. Tinha 58 anos e era o mais novo Papa desde 1846 e desde a eleição de Pio IX com 54 anos. Esse Pio IX que morrera cem anos antes da eleição de João Paulo II (a 7 de fevereiro de 1878) e fora o pontífice de mais longo reinado na história da Igreja (32 anos), se não contar a incerta duração do papado de S. Pedro. João Paulo II, que reinaria 27 anos, seguiu-os de perto.


Mas, em 1978, a grande novidade não foi a "tenra" idade do novo Papa, mas a sua nacionalidade. Pela primeira vez, desde 1523, ou seja, durante 455 anos, o Papa não era italiano e pela primeira vez, em quase dois mil anos de Igreja, o Papa era polaco. Com Wojtyla acabou uma era, que, em categorias adaptadas da história geral para a história da Igreja por Cristiani, no monumental Tu Es Petrus, correspondem à Idade Moderna (1447-1870) e à Idade Contemporânea (1870-1978). Desde o fim do Cisma do Ocidente até ao "ano dos três papas", dos 55 pontífices que se sentaram no trono de S. Pedro durante cerca de 540 anos, apenas dois não foram italianos: o aragonês Calisto III (Papa de 1455 a 1458, que, apesar das suas origens, gerou os italianíssimos Borgia) e o holandês Adriano VI, o tal que pontificou entre 1522 e 1523 e que tanto contrastou com os Medici que o precederam e lhe sucederam (Leão X e Clemente VII) em desgosto pelas artes e pelos ofícios. Mas isso já são outras conversas, pois que nenhum deles foi Papa das minhas vidas, embora nos renascentistas me tenha ficado muito da melhor parte delas. Das outras e desta.


2. "O ano dos três papas" (Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II) foi expressão corrente para o ano de 1978. Às vezes, penso em como teria vivido esse ano um amadíssimo amigo meu, poeta de 35 Poemas, que partiu deste mundo e destes papas em 1968, dez anos antes do ano trino. Digo-o porque, em 1963, quando morreu João XXIII, ele viveu premonitoriamente a febre papal que em 78 já subira uns pontinhos e em 2005 entrou no delírio a que se assistiu. Foi ele o primeiro a inventar a expressão "totopapa", enviando-me, e a outros amigos comuns, antes e durante o conclave, listas de probabilidades com os nomes que os eleitos escolheriam, caso viessem a ser os contemplados.


Dentre os inúmeros cartões retangulares que me mandou, escritos a tinta encarnada, copiei estes: Probabilidades (Flos Florum)


1 - Siri (Pio XIII, de que Deus nos guarde)
2 - Montini (Pio XIII, João XXIV ou Leão XIV que: vá lá com Deus)
3 - Lercaro (João XXIV - Deus queira)
4 - Confalonieri (João XXIV, Bento XVI ou Clemente XV, que talvez Deus queira)
Hipóteses desvairadas más
1 - Ottaviani (Alexandre IX, Calisto IV, Anastácio V ou Júlio IV)
2 - Larraona (Anastácio V)
3 - Marella (Bonifácio X)
4 - Cerejeira (Urbano IX)


Na altura, todos nos ríamos com estes totopapas, que ele corrigia, emendava e voltava a enviar. Mas a realidade excede sempre a ficção: tanto na morte de João Paulo II, como na eleição de Bento XVI, televisões e jornais ultrapassaram em excentricidade e delírio o meu amigo das "profundidades intactas". Muitos dos cardeais já nem sei quem são, como esse Lercaro que, pelos vistos, era o favorito dele. Não previu nenhum Paulo VI, mas previu um Bento XVI, que seria - se tivesse sido - o cardeal Confalonieri, "que talvez Deus queira".


Em 1963, no interior de círculos muito restritos e - vá lá - muito especiais, vivia-se assim a eleição de um papa, guardando segredo para os não iniciados que já suspeitavam da nossa sanidade mental, mesmo sem saberem destes desvarios. Quem nos diria - quem me diria? - que 42 anos depois, milhões viveriam momentos desses em delírio ainda maior, imaginando papas hindus, argentinos, chineses e até (como sempre) portugueses?


Tudo - tamanha mudança! - talvez se deva a esse Papa polaco que, entre 1978 e 2005, fez mais pelo pope system do que todos os seus antecessores reunidos. E volto a 1978.


3. Estou a começar a dizer mal de João Paulo II, ou, como alguns já lhe chamam, de S. João Paulo Magnus? Não estou. Quando foi do Jubileu dele, escrevi, neste mesmo jornal, um artigo em que disse o que pensava e penso dele, exaltando sobretudo o homem da fé.


Escrevi então e mantenho: "Não é o "Papa da minha vida", no sentido em que o foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I. Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele de nada conta quando o vejo - sobretudo nos últimos anos - dar um tamanho testemunho que só consigo explicar pelo inexplicável mistério da Fé." Acima citei a idade com que foi entronizado. Mas parecia muito mais novo, respirando saúde física por todos os poros, o que muitos atribuíam a um passado de desportista. Três anos depois - apenas três anos dessa imagem pletórica - o atentado da Praça de São Pedro fez esse Papa de 60 anos envelhecer 20 em poucos meses. De então para cá, a pujança original quase que se esqueceu e o "atleta" deu lugar a um velhinho, atacado por mil doenças, até, no fim, mal se conseguir mexer ou falar.


Alguns lhe censuraram - velada ou abertamente - o lugar que deu, na sua própria biografia, ao dia 13 de maio de 1981, em que quase se realizou a sarcástica profecia de Buñuel no filme La Voie Lactée. Mas não é muito fácil compreender como é que se deu tal mudança num homem. Não é a questão da sobrevivência, pois que outros têm recuperado de coisas ainda piores. É a consciência, não proclamada, mas crescentemente interiorizada, de que a sua salvação teve e tem um sentido e que esse sentido só podia ser desvelado com a crescente transfiguração do corpo quebrado num corpo oferecido. Muito e muito se há-de escrever - pressinto-o - sobre os vários sentidos a dar a essa maceração. Por um lado, há a "papolatria" ou os riscos dela, tão temida nos anos 60 e tão escancaradamente recuperada nesta viragem de séculos. Mas reduzir à papolatria o calvário de João Paulo II é perder a dimensão fundamental dele. Falou-se do seu imenso carisma, do seu imenso magnetismo. Que querem dizer essas palavras? Quem saiba que explique e João Paulo II nunca explicou. Acreditou, não só com toda a sua alma (expressão já de si incompreensível), mas com todo o seu corpo e, como só este lhe podia ser imagem, fez dele o grande plano para um mistério insondável. Por agora - e por mais algum tempo - se falará ainda e muito do Papa que venceu o comunismo, sob o qual viveu desde os 25 anos. Mas não faltam nos textos papais - antes e depois da queda do Muro - advertências ainda mais graves contra a sociedade permissiva e libertária que era, aparentemente, a grande inimiga dos chamados "socialismos reais". Qual o significado da sua presença junto a Fidel em Cuba, tão estranho, por parte de um, como por parte de outro? Qual o sentido das suas mil viagens? Qual o sentido dos "estádios cheios e das igrejas vazias"? Qual o sentido do seu altivo moralismo? Porque o aplaudiam milhões de jovens que depois não fundavam famílias de 14 filhos, como nos tempos de Maria Teresa da Áustria, ou nem sequer se precipitavam para os ter, como nos tempos da geração dele? Quanto mais medito na ação deste Papa, mais ela me parece paradoxal, mas de um paradoxo que não desafia a razão, antes a busca. Por isso, grande parte do mistério de João Paulo II só será percebido com a passagem do tempo e com os pontificados que se seguirem ao deste Papa tão tirolês quanto carpático ou, se se preferir, tão terra a terra, como céu a céu.


4. Sabe-se como foi recebida a eleição de Bento XVI, conhecem-se os juízos que já se fizeram. Mas não se tem reparado muito (ou então sou eu que tenho andado muito distraído) que ao turbilhão de abril (velório e exéquias de João Paulo II, conclave, etc.) se seguiu um estranho e agudo silêncio. Ouve-se Bach no Vaticano (talvez pela primeira vez).


Perguntam-me o que penso. Pensei mal, quando pensei depressa e me vieram dizer que Ratzinger era o novo Papa. Agora espero para pensar. Bento XVI já não é Ratzinger. É o meu sétimo Papa. Seja minha a solidão deste silêncio, como escreveu o poeta dos 35 Poemas, e dos trinta e cinco cardeais.


por João Bénard da Costa

20 de maio de 2005 in Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS MEUS SETE PAPAS (I)


1. Agora que isto acalmou um bom bocado, quer em matéria de papas quer em matéria de vigílias, posso dar-me ao luxo de desfiar, nos meus romanizados rosários, contas dos papas da minha vida e de os relembrar um a um, entre arminhos e solidéus, sédias gestatórias ou detidas. Setenta anos, sete papas. Muitos anos? Não há dúvida. Muitos papas? Assim agora não me parece ou me aparece, mas a uma média de dez anos por papa, pode ser que as aparências iludam. Embora eu tenha vivido o terceiro pontificado mais longo de que a Igreja conserva memória (João Paulo II) e um dos pontificados mais curtos dos últimos sete séculos (João Paulo I).


2. A bem dizer, o meu primeiro Papa Papa de mim não foi, embora o dr. Freud, que morreu sete meses e dezasseis dias depois dele, me tenha querido ensinar, sem grande resultado, que foi o Papa de que o meu inconsciente mais ouviu falar. Refiro-me a Pio XI, o Papa Ratti, que reinava em Roma quando eu nasci e morreu, três dias depois de eu fazer quatro anos, a 10 de fevereiro de 1939, aos 81 anos. Aos quatro anos, alguém se lembra de papas? Acreditem-me ou não, se não me lembro dele, lembro-me muito bem (vá-se lá saber porquê) do dia da morte dele. Era à hora de almoço. Eu estava em casa de uns tios postiços que moravam no mesmo prédio do que eu, no segundo andar que ficava por baixo da casa da minha avó. Na casa de jantar, havia uma telefonia, dessas com ponteiro, olho luminoso verde e lãzinha branca a aconchegar os baixos. E foi da dita, ou na dita, que deram a notícia da morte do Papa. Não devo ter prestado atenção, pois o que recordo é a voz acaciana do meu velho tio (com idade para ser meu avô) a dizer-me solenemente: "Morreu o Santo Padre." Talvez tenha ficado confundido com a ideia de os santos morrerem. Talvez não associasse padres a santos, de tanto ouvir dizer que os padres ralhavam. Talvez outra razão qualquer. Mas a morte de Pio XI chegou-me em direto. Mais tarde, já grandinho ou já velhote, o Papa que queria que o futuro o conhecesse como "o Papa da Ação Católica", o papa da Mit Brennender Sorge e da Non Abbiamo Bisogno, o Papa que "tarde, demasiado tarde na vida", descobriu que as ameaças à Igreja não vinham só de um lado, e que as do lado oposto não eram menos fortes, esse Papa, Pio XI, dizia eu, olhei-o sempre com particular afeto. A paz de Cristo no Reino de Cristo. Seis meses depois da morte dele, findo um pontificado de dezassete anos (1922-1939) começou a guerra do diabo.


3. Não me lembro de ninguém me ter dito que a 2 de março desse mesmo ano, ao fim de três escrutínios e no primeiro dia de conclave (coisa que há trezentos anos não acontecia), o cardeal Pocelli, que nesse mesmo dia completava 63 anos, fora eleito e tomara o nome de Pio XII. As minhas primeiras imagens dele, ascético e severo, remontam aos dias em que Roma deixou de ser cidade aberta e houve igrejas bombardeadas. Pio XII deixou então o Vaticano para consolar os feridos e chorar os mortos. Quando a guerra acabou, gregos e troianos louvaram o Pastor Angelicus e a sua ação em favor da paz. Em 1950, ex cathedra, num Ano Santo a que só não fui pela maldição de uma bruxa, proclamou o Dogma da Assunção de Maria e, aos 15 anos, extasiei-me, mais do que me interroguei, com essa solene afirmação da infalibilidade papal, a primeira (e a única) desde os tempos de Pio IX.
Depois, ele foi o Papa dos meus anos de brasa, os anos da Ação Católica. Formei-me com a Divino Afflante Spiritu, que relançou os estudos bíblicos, ou com a Mediator Dei sobre a renovação da liturgia. Morreu, diz-se, ouvindo a Sétima Sinfonia de Beethoven, que amava mais do que as outras e Jorge de Sena dedicou-lhe um belíssimo poema na Fidelidade: "Como de Vós, meu Deus, me fio em tudo / mesmo no mal que consentis que eu faça / por ser-Vos indiferente, ou não ser mal / ou ser convosco um bem que eu não conheço." Foi a 9 de outubro de 1958 e soube da notícia no mesmo dia em que soube que ia ser pai pela primeira vez. Para mim, morrera mais do que o meu primeiro Papa. Morrera o meu único Papa. O Papa por antonomásia.


4. Foi assim com algum escândalo (obviamente, o escândalo admissível num crente então fiel e obediente à Igreja) que, a 28 de outubro, soube que fora eleito Papa o cardeal Roncalli, quase a completar 77 anos, ou seja, muito mais perto das idades com que morreram Pio XI (81) e Pio XII (82) do que das idades com que tinham sido eleitos, em papados sensivelmente com a mesma duração. Um amigo meu deu voz ao que eu sentia: "Os cardeais terão mesmo ouvido o Espírito Santo ao escolherem um Papa de transição?" (era a explicação mais correta para a surpresa da escolha: após dois pontificados longos e fortes, um pontificado breve que servisse para pensar no futuro). A primeira surpresa veio com a escolha do nome de João XXIII, recuperado a um anti-Papa de 1410 a 1415 e que ninguém usara mais desde o século XV. Depois vieram todas, todas as surpresas desse papado inacreditável: a convocação do Concílio, a inauguração do Concílio, a Mater et Magistra a Pacem in Terris. O bom Papa João. Repararam bem quão estranho é chamar bom a um Papa? Mas foi com esse cognome que ele ficou, tão amado pelos não crentes como pelos crentes ou mais ainda pelos primeiros do que por muitos segundos. Vivi, sob ele, os mais exultantes anos do meu catolicismo. Não chegaram a ser cinco. João XXIII morreu a 3 de junho de 1963, aos 81 anos.


5. Já quando Pio XII morreu, eles haviam sido os mais "papabile". Refiro-me aos cardeais Alfredo Ottaviani e Giovanni Montini. O primeiro era chefe do Santo Ofício e acusavam-no de reacionarismo. O segundo, arcebispo de Milão, com fama de homem aberto ao novo e ao moderno. "Cantemos ao Senhor um Cântico novo." Os dois voltaram a ser falados em 1963. O que eu rezei para um Papa chamado Montini! E ele chegou, sob o nome de Paulo VI, a 21 de junho, com 65 anos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida e eu tinha apenas 28 anos! E o nome do Papa era o nome do Apóstolo das Gentes.
Poucos meses depois, já se falava de "fundo Roncalli, forma Pacelli", contrastando a rigidez do novo Papa com a bonomia do seu antecessor. Mas o Concílio continuava, começavam as viagens papais (a histórica peregrinação à Terra Santa em janeiro de 1964) e foi a continuidade muito mais que a rutura que eu li na encíclica Ecclesiam Suam de agosto de 1964. Lembro-me que o meu elogio ao texto papal, nas páginas de O Tempo e o Modo, me valeu uma resposta zangada de um amigo ex-católico, então muito mais à esquerda do que eu. Ele, que, agora muito mais à direita, manda para braços anglicanos todos os "protestantes" (mesmo os mais silenciosos) à eleição de Ratzinger, acusava-me então de poetizar e lembrava-me que ao contrário do que dizia o alemão Novalis (compatriota de Ratzinger) o mais poético podia não ser o mais verdadeiro.
Paulo VI na ONU, em 1965. Mas, bruscamente, fez há muito pouco tempo trinta e oito anos, Paulo VI em Fátima, recebido por Salazar. Foi a única vez que vi um Papa. Foi o único Papa que eu vi. Não em Fátima, mas junto ao Mosteiro da Batalha, quando de Fátima ele regressava em carro aberto, olhos imensamente azuis, como nunca até esse dia eu os supusera. Por esses anos, por esses tempos, mudou muito a imagem pretérita de Pio XII, quando os silêncios do Vaticano perante a Alemanha nazi começaram a ser muito falados. Pio XII devia ter falado? Paulo VI devia ter recusado vir a Portugal? Essa questão - ou essas questões - ainda hoje as não resolvi dentro de mim. Se os olharmos como chefes institucionais (e a Igreja é uma instituição), eles defenderam-na como a deviam ter defendido, sem atrevimentos inauditos e sem riscos temerários para a unidade que lhes cabia preservar. Mas se os olharmos como pastores do povo de Deus (e a Igreja é o povo de Deus) por que temeram se o próprio Cristo garantiu a Pedro que as portas do Inferno nunca prevaleceriam contra as da Igreja? E foi no tempo do Papa que eu mais "elegi" que eu cheguei à conclusão que o sumo pontífice não podia ser um modernizador mas um contemporizador, não podia ser uma Antígona mas um Creonte (para recuperar uma imagem antiga). Podia escandalizar intelectuais impacientes como eu, mas não mansos ou feros pobres de espírito. Em 68, com a encíclica Humanae Vitae, Paulo VI enfrentou de peito aberto a revolução sexual nesse ano triunfante. Católicos insurgiram-se por todo o mundo, numa contestação inédita. Quem mudará? Eu, por certo, mudei, nesses últimos dez anos do pontificado de Paulo VI. Octogesima Adveniens? Mas 80 anos depois da Rerum Novarum, onde estavam as coisas novas? Onde estão hoje, em que a Humanae Vitae é menos contestada do que os seus contestatários de 68? Talvez por isso esse Papa seja, na minha memória, o mais amargurado e o mais torturado dos papas da minha vida. Por que é que pensar nele me faz pensar na morte?


6. Estava em casa diante da televisão, quando, em agosto de 1978, pouco depois da morte de Paulo VI, aos 81 anos e com quinze de pontificado, nos foi anunciado novo magnum gaudium. Contra todas as previsões, apareceu-me como Papa João Paulo I, Albino Luciani, patriarca de Veneza (como João XXIII) aos 65 anos. Nunca me esquecerei da alegria - infantil ou angélica - com que surgiu à varanda e com que deu a primeira bênção. Foi o primeiro Papa a usar dois nomes, em dupla homenagem aos seus mais imediatos antecessores. À época escrevia crónicas no Diário de Notícias. E o meu texto sobre a eleição de João Paulo I foi tão delirante que Mário Mesquita (à época diretor do jornal) se espantou com a minha inabalável fé (fé de um ex-católico) no Espírito Santo, que escolhera para Papa o papa do Pinocchio. Depois fui até aos Japões e pensei mais em budistas, à Sylvia Sidney, do que em papas. Já no regresso, no aeroporto de Nova Deli, vindo do Taj-Mahal, folheei um jornal. Numa página interior, em corpo pequeno, falava-se da morte do Papa. "Meu Deus" - pensei eu - "como este jornal é antigo, o Papa já morreu há quase dois meses." Quando li a notícia, percebi. Quem morrera a 28 de setembro, depois de um pontificado de 34 dias, fora esse mesmo João Paulo I, de que eu esperava nem sei bem o quê, mas sei quanto. Nunca acreditei na tese absurda do assassinato. Mas acredito que Deus, às vezes, atravessa muito depressa a vida dos homens. (continua)


por João Bénard da Costa

13 de maio de 2005 in Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS ANOS DE MÁRIO SOARES


1 -
 Quando, em 1940, restauraram os chamados "Painéis de S. Vicente" (…) alguém observou certas semelhanças entre um dos rostos do hipotético "Painel dos Pescadores" e o semblante do Dr. Oliveira Salazar. Ao que se contava (sobre os Painéis não juro nada), quem reparou não resistiu a mandar dar uma "mãozinha" e pediu ao restaurador que retocasse a figura por forma a tornar a parecença mais sensível. Quando eu era criança e me mostravam os Painéis, o suposto Salazar era uma atração quase idêntica ao suposto Infante D. Henrique. Se a história só tem interesse em termos hagiográficos, como manifestação do culto da personalidade, não deixa de ser verdade que Salazar, paramentado à século XV, não destoaria nos Painéis. Ele bem podia ter figurado - se fosse já nascido- entre os 58 personagens que se apertam em torno da imagem duplicada do santo. Não lhe faltava a "malinconia", a austeridade, a severidade, a solenidade, até a rudeza. Se, um dia, se vierem a identificar, com rigor, os protagonistas e figurantes dos Painéis, não me espantava nada que me viessem dizer que um avoengo do homem de Santa Comba se conta entre eles. Falei de Salazar, por causa da história que contei. Se se pensar em Vasco Gonçalves ou em Cunhal, em Freitas do Amaral ou em Cavaco, também os podemos ver prefigurados nessas tábuas. Um há, contudo, que absolutamente, não descende dos vultos dos Painéis. Esse é aquele que se chama Mário Soares e que, na próxima terça-feira, 7 de dezembro, completa 80 anos. Porque é menos português do que os outros? Muito pelo contrário, poucos, como Mário Soares, serão tão retintamente portugueses e tão inseparáveis do nosso passado e do nosso presente. Mas é de outra família. O Vicente de quem descende não é o tristérrimo santo que nos Painéis é figura central. É o Vicente da Barca e dos Almocreves, do Juiz da Beira e dos Farelos, que passa por fundador do nosso teatro. 


Nos tempos em que andei pelo Convento de Jesus a cursar Histórico-Filosóficas - Mário Soares também por lá andou -, o prof. Delfim Santos, ao explicar-nos as diferenças entre os tipos caracterológicos EAS (Emotivo-Ativo-Secundário), os chamados "apaixonados", e EAP (Emotivo-Ativo-Primário) os chamados "coléricos", costumava dar como exemplo dos primeiros Salazar, e como exemplo dos segundos, Francisco da Cunha Leal, então (era isto em 1955 ou 1956) o vulto mais conhecido da oposição democrática. Para grande escândalo das minhas colegas marxistas, via nessa oposição caracterial parte da razão das suas oposições políticas. Nunca conheci pessoalmente Cunha Leal, mas não tenho qualquer dúvida de que, se Mário Soares, nesses anos, já fosse famoso, Delfim Santos teria tido um bem melhor exemplo de antagonismo visceral, não desfazendo nos viscerais antagonismos ideológicos. 


Para tudo resumir: a melancolia e o pessimismo lusitanos nunca pegaram em Mário Soares. Para quase todos nós, a contrição. Para ele, o júbilo. É dos raros políticos nossos de quem nunca ouvimos o fado do sacrifício, ou o fardo do dever. Fados e fardos não são com ele. Sacrifícios, ainda menos. Lembro-me de uma hora mais amarga (não lhe faltaram) em que eu o lamentei. Respondeu-me rápido: " Quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele." E ele soube sempre confundir hábito com habitação. Ou, como escreveu algures Carlos Queiroz: "Só na nossa cama / É que se dorme bem / Só dorme quem ama / a cama que tem."


2 -
 Quando eu "acordei" para a política (maio de 1958, campanha do general Humberto Delgado), Mário Soares, embora já com vasto "curriculum" político para um homem de 33 anos, era ainda, para o "vulgo" em que eu me situava, um nome relativamente desconhecido. Só o vim conhecer pessoalmente em 1962 e em circunstâncias que nada tiveram de político. Eu era, à época, professor eventual do Liceu Camões, e Rui Grácio, que eu tinha substituído no ano anterior no Liceu Francês, escreveu-me a dizer que Mário Soares procurava um professor de História para o Colégio Moderno (então dirigido pelo pai dele) e que lhe sugerira o meu nome.


Fui visitá-lo. Entre os 27 e os 37 anos, dez anos são grande diferença, que senti mais acentuada pela pose "diretorial" com que Soares me recebeu. Ele conhecia bem o meu "curriculum" de "católico progressista" do grupo da Morais e do António Alçada (de quem era muito amigo) e conhecia até, como vim a verificar pelo decorrer da conversa, o meu "curriculum" como professor errático, com três anos de inexperiência.


Mas não procurou "pontes". Fez-me um interrogatório cerrado (meramente pedagógico) que me deixou pouco à vontade. Fiquei com a impressão de que não me ia entender com aquele homem (impressão que foi prevalecente durante coisa de vinte anos) e declinei o convite em que ele não insistiu. Se relato este insignificante episódio, é para salientar dois outros traços da personalidade de Soares que o futuro tão largamente confirmou: a autoridade natural, que três anos depois (em 1965) o catapultou para líder da oposição não comunista e o gosto de jogar ao gato e ao rato, quando lhe aparecia pela frente alguém com mais olhos que barriga. Mal sabia eu "que ce n'était qu'un début". Dois meses depois, quando o grupo fundador de "O Tempo e o Modo" decidiu abrir-se a não católicos, o António Alçada avançou imediatamente com os nomes de Mário Soares e Salgado Zenha, com quem julgava mais fácil estabelecer o famoso "diálogo" crentes-não crentes. Assim nós achámos todos (depois daquela história da "Avé-Maria" que eu tornei célebre) no conselho consultivo da revista, onde também tinham assento, além dos católicos da Morais, os jovens expoentes da crise universitária desse ano: Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Vítor Wengorovius, etc. Nessa altura, aprendi, depressa e muito, as clivagens entre esses vários grupos: o que era a ASP (Ação Socialista Portuguesa), como desconfiava dela a geração de 62, em tempos do MAR (Movimento de Ação Revolucionária), e como havia mais medos de um conluio "democrata-cristão" (nós) e "sociais-democratas" (Soares-Zenha) do que de quem guardava domingos e dias santos de guarda. Aprendi a admirar, em Soares, a diplomacia e o otimismo. Quando se tratava de engolir coisas que eu queria fazer passar, como "primado do espiritual" ou "primado da pessoa humana", Soares deixava essas guerras ao quezilento Zenha e distanciava-se ironicamente delas. Muito mais do que as reuniões, até altas horas da noite, interessavam-lhe os convívios ao jantar ou, depois das ditas, de que era o grande animador. O regime estava sempre a acabar. "Não dura até ao fim do ano", foi uma frase que invariavelmente lhe ouvi, entre 1963 e 1974. À 12ª vez acertou. Outras vezes, eram histórias heroicas da oposição, em Nelas ou em Vila Pouca de Aguiar.


"Tínhamos connosco todas as forças vivas da terra." "Oh, dr. Bénard" - interrompia, sarcástico, Salgado Zenha - "o que o dr. Mário Soares chama 'forças vivas' era um farmacêutico e um notário que se borravam de medo de cada vez que ouviam falar da PIDE." Quem não tinha medo da PIDE era ele, apesar das oito ou nove prisões que já contava. Eu já conhecia, de ouvir contar, os míticos silêncios de Cunhal e a célebre história da inofensiva chave, que se recusou a identificar durante doze dias de tortura do sono. "Para perceberem que eu não falo nunca." Soares escolhera a tática inversa. Preso, falava sem cessar, mas nunca ninguém o apanhou numa palavra que não devesse ser dita. Resistiu até a uma acareação com um denunciante, que acabou com este a desdizer-se e a pedir-lhe desculpa por ter inventado uma história que era mais do que verdadeira. Quando o deixavam isolado na cela durante meses, ocupava o tempo a escrever romances. "Quando me mandaram cá para fora, estava tão entretido, que até me apeteceu pedir-lhes que me deixassem acabar o capítulo." Algumas vezes me passou pela cabeça que aquele homem viria a ser Presidente da República? Nunca. E no entanto... E, no entanto, há um instantâneo que eu nunca mais esqueci e me está tão gravado na memória como se fosse ontem. Foi em 1964, no Cinema Europa, ali a Campo de Ourique, por ocasião de um festival de cinema qualquer. Eu estava à porta da sala e, de repente, algo me fez olhar para a entrada.


Mário Soares vinha a entrar, vagarosamente, acompanhado por alguns amigos, vestindo um sobretudo de pelo de camelo. Não se passou nada de especial, a maior parte dos presentes nem sequer o conhecia. Mas eu disse ao Nuno de Bragança: "Parece que chegou o Presidente da República." E no entanto... A despedida que Salazar lhe preparou, em 1968, quando o exilou para São Tomé, com a carga pidesca sobre quem ousara despedir-se dele (foi a única vez que fui sovado pela polícia, com requintes de humilhação) mostrava que o ditador estava menos distraído do que eu e media melhor a perigosidade daquele homem, que regressou, meses depois, quando o outro caiu da cadeira abaixo. Em 1969, andámos às bulhas entre a CEUD a CDE.


Vi-o tão duro a atacar como magnânimo a esquecer. Como é que ele dizia? "Enquanto o regime durar não tenho inimigos à direita; depois, não terei inimigos à esquerda." Ou era ao contrário? Já não me lembro bem, mas tanto faz. Ele mudou sempre, mas foi sempre o mesmo. "Mudar só não mudam os burros", foi outra frase dele. O resto é conhecido. Em 1985, findas muitas desavenças, aceitei, desde a primeira hora, integrar a Comissão de Honra dele e vi-o a passar de candidato dos dez por cento a vencedor, em janeiro de 1986. Aos 61 anos, chegava ao lugar em que eu o vira, por uns segundos, em 1964. E foram dez anos de uma gloriosa presidência, jubilosamente vivida. Da última vez que falei com ele, citou-me um adversário que, fulo com ele, começou por protestar elevada consideração pelo pai da nossa democracia e - continuou Soares - "desfiou aquelas balelas todas". Balelas? Quando um homem chega aos 80 anos e fez o que ele fez, dele e do país, e viveu o que ele viveu, ele e o país, "balelas" só mesmo na boca dele. Parabéns, Mário Soares! Todos, sempre, lhe deveremos tudo. Mesmo os que não o sabem.


por João Bénard da Costa
3 de dezembro 2004, Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
A BÍBLIA DOS JERÓNIMOS 


1. "Sometimes, there is God. But so quickly", diz Blanche DuBois na peça de Tennessee Williams "A Streetcar Named Desire", da única vez que lhe parece acontecer uma coisa boa. No meio de todas estas coisas tão pretas, tive essa sensação, na semana passada, na Torre do Tombo, quando fui assistir ao lançamento de "A Bíblia dos Jerónimos", edição da Bertrand e da Franco Maria Ricci. Assim, caída do céu aos trambolhões, apareceu naquele espaço uma obra magnífica, que só de ouvido ouvira e em que nunca tinha posto os olhos em vida minha. Os meus exageros habituais? Já vamos conversar, mas deixem-me que vos diga que o próprio cardeal-patriarca, que presidiu à sessão, foi o primeiro a falar de "êxtase". E certamente pesou bem a palavra e certamente não a empregou em vão. Se o quiserem comprovar, aproveitem o Natal para pedir ao Menino Jesus que vos ponha o livro no sapatinho, passe a publicidade com que neste caso posso bem. 


Por falar em publicidade, é bem possível que algumas mentes maledicentes reparem, ou vos façam reparar, que, nestas minhas casas encantadas, já me encantei cinco vezes com Franco Maria Ricci, proporção que nem Manoel de Oliveira bate. Sosseguem que tenho os bolsos vazios e não é por usar fato novo. Da revista - "FMR", como bem saberão os meus mais fiéis leitores - sou apenas um simples assinante e nem sempre bem tratado, pois que, se há crítica a fazer-lhe, é o tempo que demora a cá chegar e os frequentes atrasos na expedição. Das duas co-edições com a Bertrand - os "Presépios de Machado de Castro" no ano passado, "A Bíblia dos Jerónimos" neste - não receio que me desmintam ou que achem que estou a fazer fretes a alguém (para os favores que lhe devo, como dizia a outra, ainda mais desgraçada do que a Blanche DuBois) se disser que são os dois mais belos livros de arte algumas vez publicados em Portugal. Nada fazia prever que o fossem, o que dilata a minha sensação de milagre e a minha convicção de que às vezes - raríssimas é certo - há divinas surpresas neste país. Neste caso, tão inesperado que, ainda há pouquíssimo tempo, confundi nesta coluna a Bíblia em causa com um hipotético Atlas de D. Manuel que só existiu na minha imaginação. Corrigido o erro, já posso passar ao assunto sem mais preâmbulos.


2. O que é "A Bíblia dos Jerónimos"? Se comprarem o livro, terão muito mais informação do que a que vou resumir, pois não lhe faltam eruditos ensaios que são a única fonte do meu saber. Mas estou aqui para vo-la anunciar e não para fazer de sabichão, que, na matéria, estou longe de ser. "A Bíblia dos Jerónimos" é uma série de sete livros de iluminuras - "in hoc ornatissimo volumine" - (oito, se lhe acrescentarmos as "Sentenças" de Pedro Lombardo, que a completam artística e historicamente) em que, em 3060 folhas de pergaminho, um vasto número de copistas inscreveu o texto bíblico, acompanhado por "postilhas" ou "explanações" de Nicolau de Lira (1270?-1349) que passa por ser "o comentador da Sagrada Escritura mais importante do seu tempo e aquele que maior influência exerceu nos dois séculos posteriores" (cito Arnaldo Pinto Cardoso no estudo "Texto, conteúdo e decoração", inserido na edição de que vos falo). 


Se é enorme o valor histórico e exegético desta "Bíblia" (escrita em latim), o que mais deslumbra quem lhe deite a vista são as iluminuras que a ilustram, obra do florentino Vante Gabriel d'Attavante (1452-1517), um dos mais famosos - senão o mais famoso - dos miniaturistas daquela cidade. "Da oficina de Attavante" - cito agora o Prof. Martim de Albuquerque, autor de outro grande estudo da obra agora editada - "saíram as realizações mais sumptuosas da iluminura renascentista italiana - a Bíblia do Duque de Urbino e dos Jerónimos, o Missal de Thomas James, Bispo de Dol, e numerosas obras para o rei da Hungria Mathias Corvino. Attavante, ele próprio, tem sido apontado como fazendo parte da escola de Verrochio e influenciado por Ghirlandaio". Vasari gabou-lhe a "graziosissima grazia" e o prodigioso colorido ("i colori non possono essere piúi belli"). Ao que aprendi, discute-se ainda quem encomendou à oficina de Attavante a fabulosa "Bíblia", mas o que é certo é que ela foi manuscrita e iluminada para D. Manuel I, entre 1495 e 1497. Além das armas portuguesas e das múltiplas referências ao rei Venturoso, a esfera armilar é um dos ícones da obra. Na posse de D. Manuel se conservou até à sua morte, tendo sido legada por testamento de 1517 (D. Manuel morreu em 1521) ao Convento dos Jerónimos. "Item mando que se de ao Mosteiro de N. Senhora de Bellem a Custódia que fez Gil Vicente para a dita Caza, e a Cruz Grande, que esta em meu thesouro, que fez o dito Gil Vicente, e asyi as Bíblias escritas de pena, que andam em minha guardaroupa as quais são guarnecidas de prata e cobertas de veludo carmesim." Nos Jerónimos, jazeu a Bíblia de Jerusalém, de 1521 a 1807. Não se conhecem muitos encómios acerca dela (as exceções são Francisco de Holanda e D. António Caetano de Sousa) e tudo o que sabe, pelo último, é que, antes de 1737, foi a obra reencadernada, substituindo-se o veludo pelo marroquim. Mas muita gente devia saber que um tal tesouro estava nesta Lisboa, a que, no mesmo século XVIII, o Cavaleiro de Oliveira chamava "fermosa estrebaria". D. João VI não achou azado levá-la para o Brasil, quando nos despojou de muito mais do que o terramoto das costas largas. Mais informado foi Junot, que, mal chegado a Lisboa, pediu logo para ver a "Bíblia". Recusou-a o Dom Abade. Mas se não cedeu às boas, cedeu às más. Em agosto de 1808 já a tinha, e com ele a levou para França. De Junot passou à viúva, a célebre Duquesa de Abrantès e esta recusou-se a restituí-la, alegando que eram bens dos filhos. Valeu-nos a monarquia de julho e os favores de Luís XVIII, que a comprou a Laura Junot pela soma - à época fabulosa - de 80.000 francos e a devolveu a Portugal, em 1815. Mas os Jerónimos, que tinham guardado a "Bíblia" por quase trezentos anos e que, por isso, justamente lhe deram o nome por que é e foi conhecida, não a chegaram a conservar sequer por mais vinte. Em 1833, chegada a hora do Mata-Frades e da extinção das ordens religiosas, passou a "Bíblia" para as mãos do Estado, que, com a Custódia e outras iguarias, a guardou na Casa da Moeda. Em 1839, aportou por fim à Torre do Tombo, já sem as guarnições nem a prata, provavelmente fundidas como moeda para os liberais. Na segunda metade do século XIX, e no principio do século XX, começaram os eruditos e os curiosos a estudá-la e a manuseá-la e espalhou-se pelo mundo (muito menos por Portugal) a fama que possuíamos um livro de iluminuras "ao qual nenhum outro se pode comparar". Estabeleceu-se o juízo que a "Bíblia dos Jerónimos", com a de Frederico de Montefeltro (esse Frederico do nariz adunco, terror da Mónica e amor de Piero Della Francesca) eram "as duas obras mais monumentais da oficina de Attavante" (Peragallo).


3. Mas livros - sobretudo desta qualidade e deste valor - têm sorte muito mais ingrata do que estátuas, quadros, desenhos ou pinturas. Compreensivelmente, não se põem obras destas nas mãos das turbas, nem mesmo dos filhos de algo, sem boas qualificações profissionais. Assim, a lenda e os factos misturavam-se num juízo sobre a lendária "Bíblia". Acresce que somos bastante desconfiados de valores próprios, mais propensos a minimizá-los ou a esquecê-los que a acreditarmos em esmola grande. Ao longo da vida, ouvi, de tempos a tempos, loas sobre o preciosíssimo incunábulo. Mas, mais que as nozes, foram as vozes de quem dizia que o manto diáfano também cobria uma realidade mais crua, ou pelo menos relativamente vulgar face a obras congéneres. O grande mérito desta edição é acabar com essa lenda invertida. Pela primeira vez, mais de cinco séculos depois de ter sido copiada e miniaturada, a "Bíblia dos Jerónimos" está acessível, senão, como é evidente, na sua integralidade, através das suas páginas mais belas, sobretudo das oito páginas de grandes iluminuras com que abre cada volume (os "incipit"). E, como Franco Maria Ricci não deixa créditos por mãos alheias e Massimo Listri, que fotografou as iluminuras, é um génio, a obra agora editada, com grande profusão de pormenores e ampliação de muitas das imagens, permite uma visão que nem os próprios originais nos dão com igual esplendor. Pude fazer a experiência: durante alguns dias, coincidindo com o lançamento do livro, a Torre do Tombo expôs os oito volumes aos olhos dos simples mortais. Aberta nalgumas páginas mais esplendorosas, e convenientemente protegidas por vitrinas resistentes, eram fabulosas de ver, mas não nos davam (pelo menos a mim não me deram) a fulgurante beleza das reproduções da edição. Quem quiser "ver" (no mais amplo sentido do mais amplo verbo) as iluminuras florentinas de "A Bíblia dos Jerónimos", "vê-as" melhor no livro de 2004 do que nos fólios de 1495. Às vezes, a reprodutibilidade das obras de arte permite milagres destes.


4. Para acabar, fico-me com o frontispício direito do volume V (Livro do Profeta Ezequiel e Livro dos Macabeus) "S. Jerónimo no estúdio entre dois frades". O chapéu cardinalício pendurado na parede. O quadro que representa a Virgem e o Menino, rodeados por um anjo verde e por um anjo branco. O leão sossegadíssimo e silentíssimo aos pés do Santo e fronteiro a ele. O relógio e a ampulheta. A janelinha entreaberta para uma paisagem meiguíssima e azul. A parede cobáltica contra o encarnado do manto de Jerónimo. A concentração do escriba, cinzelando e escrevendo. Ghirlandaio? Pollaiuollo? Verrochio? Filippino Lippi? Mais belos não são certamente. O apogeu do Renascimento está também nestes oito volumes, sem dúvida a única obra de arte que o representa em Portugal.


por João Bénard da Costa

17 de dezembro 2004, Público