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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De  14 a 20 de julho de 2025


Destacamos hoje a comunicação do novo Papa Leão XIV às Igrejas Orientais, exprimindo um conjunto importante de orientações que merecem leitura atenta num momento de especial incerteza.

 

 

 Leia-se com atenção as palavras dirigidas pelo Papa às Igrejas Orientais por ocasião do respetivo jubileu em 14 de maio de 2025. Simbolicamente e tocando o tema fundamental da unidade e coerência dos cristãos, o Papa Leão XIV afirmou: «A Igreja precisa de vós! Como é grande a contribuição que o Oriente cristão nos pode oferecer hoje! Quanta necessidade temos de recuperar o sentido do mistério, tão vivo nas vossas liturgias, que abrangem a pessoa humana na sua totalidade, cantam a beleza da salvação e suscitam o enlevo pela grandeza divina que abraça a pequenez humana! E como é importante redescobrir, também no Ocidente cristão, o sentido do primado de Deus, o valor da mistagogia, da intercessão incessante, da penitência, do jejum, do pranto pelos pecados, próprios e de toda a humanidade (penthos), tão típicos das espiritualidades orientais! Por isso, é fundamental valorizar as vossas tradições sem as diluir, talvez por praticidade e comodidade, para que não sejam corrompidas por um espírito consumista e utilitarista». Nesta linha de pensamento, o Papa procura ir ao encontro das virtualidades de um verdadeiro diálogo centrado nos valores essenciais: «As vossas espiritualidades, antigas e sempre novas, são medicinais. Nelas, o sentido dramático da miséria humana funde-se com a admiração pela misericórdia divina, de tal modo que as nossas baixezas não provoquem desespero, mas convidem a acolher a graça de ser criaturas curadas, divinizadas e elevadas às alturas celestiais. É preciso louvar e dar graças incessantes ao Senhor por isto!».


Contudo, o Sumo Pontífice não se limita à afirmação de grandes princípios. Encara frontalmente a grave situação internacional e o tema das guerras em curso, afirmando: «Farei todos os esforços para que esta paz se propague. A Santa Sé está disponível para que os inimigos se encontrem e se fitem nos olhos, para que aos povos se devolvam a esperança e a dignidade que merecem, a dignidade da paz. Os povos querem a paz e eu, com o coração nas mãos, digo aos responsáveis dos povos: encontremo-nos, dialoguemos, negociemos! A guerra nunca é inevitável, as armas podem e devem ser silenciadas, pois não resolvem os problemas mas só os aumentam; pois ficará na história quem semeia a paz, não quem ceifa vítimas; pois os outros não são sobretudo inimigos, mas seres humanos: não vilões a odiar, mas pessoas com quem falar. Rejeitemos as visões maniqueístas típicas das narrações violentas, que dividem o mundo entre bons e maus. A Igreja não se cansará de repetir: silenciem as armas! E gostaria de dar graças a Deus por aqueles que, no silêncio, na oração, na oferta, tecem fios de paz; e aos cristãos - orientais e latinos - que, sobretudo no Médio Oriente, perseveram e resistem nas suas terras, mais fortes do que a tentação de as abandonar. Aos cristãos deve ser dada a oportunidade, não apenas palavras, de permanecer nas suas terras com todos os direitos necessários para uma existência segura. Por favor, que se lute por isto!»


O apelo feito de um modo veemente não se limita a dirigir-se intra muros, procura ser ouvido “urbi et orbi”. «Que as vossas Igrejas sirvam de exemplo e os Pastores promovam com retidão a comunhão, especialmente nos Sínodos dos Bispos, para que sejam lugares de colegialidade e de autêntica corresponsabilidade. Que haja transparência na gestão dos bens, que se dê testemunho de humilde e total dedicação ao povo santo de Deus, sem apego às honras, aos poderes do mundo e à própria imagem. São Simeão, o Novo Teólogo, indicava um bom exemplo: «Assim como alguém, lançando pó sobre a chama de uma fornalha ardente, a apaga, do mesmo modo as preocupações desta vida e toda a espécie de apego a coisas mesquinhas e sem valor destroem o calor do coração aceso nos primórdios» (Capítulos práticos e teológicos, 63). O esplendor do Oriente cristão exige, hoje mais do que nunca, a libertação de toda a dependência mundana e de quaisquer tendências contrárias à comunhão, para ser fiel na obediência e no testemunho evangélicos». Esta passagem é muito significativa, uma vez que, além do apelo a que haja uma influência positiva no sentido da paz, também se definem caminhos claros de colegialidade e de corresponsabilidade. Por outro lado, trata-se de construir uma Igreja pobre e com sobriedade, sem apego às honras e ao luxo, apta a contribuir para uma administração justa dos recursos que nos são atribuídos em comum, em lugar de uma economia que mata. Nota-se, assim, que são dados sinais claros e inequívocos sobre as orientações necessárias do novo pontificado: gestos concretos no sentido da construção da paz, da mobilização da sociedade com tal objetivo, do respeito inteiro pelo bem comum, da participação de todos com um papel acrescido da mulher, do espírito de serviço, do cuidado e da atenção ao próximo, da colegialidade e da corresponsabilidade no aprofundamento do método sinodal.


Personalidade diferente da de Francisco, o Papa Leão XIV apresenta um programa de continuidade e de reforma segundo uma atitude, que se deseja de coragem e determinação, no sentido do combate pela justiça e pela paz, com a tomada de consciência de que há passos concretos que terão de ser dados ao encontro dos grandes desafios da sociedade contemporânea, com preservação da unidade e da coerência e salvaguarda da dignidade humana para todos. Será um caminho difícil que exigirá o despertar das consciências para a ponderação de fatores contraditórios numa sociedade receosa e dividida entre a indiferença e a ilusão, entre a certeza e a imperfeição.  


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  

De  7 a 13 de julho de 2025


Passam 50 Anos depois da Independência de Cabo Verde e relemos “A Construção da Identidade Nacional – Análise da Imprensa entre 1877 e 1975” (Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2006) de Manuel Brito-Semedo.


UMA IDENTIDADE ESPECIAL
Sentimos o pulsar de uma sociedade que se afirma e de uma nação que nasce. “A identidade cabo-verdiana não poderia ter sido decretada por nenhum poder: foi, como aconteceu com todos os povos, o resultado final de muitas interações…”. E é muito cativante poder seguir a evolução do pensamento da elite intelectual, através de um processo de aumento progressivo dos níveis de instrução, sem o qual não é possível entender a riqueza e a singularidade da cultura cabo-verdiana. Os nativistas da passagem do século XIX para o XX, da geração de Eugénio Tavares (1867-1930), sobretudo autodidatas, passaram o testemunho aos regionalistas, de 1930 e 1940, já formados no Liceu e alguns com o ensino superior, que abriram caminho aos nacionalistas, formados nas Universidades da Metrópole. Houve, assim, uma continuidade que definiu um processo de maturação, que permite hoje entender a consolidação de uma identidade cultural complexa. Saliente-se, em especial, o papel desempenhado pelo magistério pedagógico de Baltasar Lopes da Silva (S. Nicolau, 1907-1989) e de António Aurélio Gonçalves (S. Vicente 1901-1984) que permitiu uma sólida transmissão da mensagem identitária aberta e culta de Cabo Verde. Enquanto no tempo de Eugénio Tavares prevaleceu o combate contra as leis discriminatórias que afetavam o nativo, reivindicando um estatuto semelhante ao que vigorava para os habitantes dos Açores e da Madeira, o período sob influência de Baltazar Lopes pretendeu definir Cabo Verde como um caso de “regionalismo europeu”, cuja identidade singular mereceria a consideração como ponto de encontro e força criadora.


UMA GERAÇÃO MODERNA
Depois, a geração de Amílcar Cabral, com Gabriel Mariano, Manecas e Abílio Monteiro Duarte, José Leitão da Graça, José Araújo, Corsino Fortes e Onésimo Silveira enalteceu a componente cultural africana, como um caso de “regionalismo africano”. A dialética afirmação / negação marcou, assim, o século passado, o que permitiu enriquecer a “identidade complexa”, e abrir o caminho da independência e da abertura cultural. De facto, uma síntese pressupõe sempre que se afirmem e, num dado momento, até se extremem, os diversos polos em presença, o que permite o enriquecimento do resultado do que podemos designar hoje como “caboverdianidade” contemporânea. E assim o homem crioulo, resultado e síntese de um encontro de quantos aportaram às ilhas, afirmou-se em diálogo e em confronto – que envolveu o sobressalto nativista, que valorizou os valores originais, e que evoluiu, naturalmente, para a tomada de consciência regionalista e nacionalista, que conduziu à identidade nacional. As três gerações marcantes representaram, deste modo, uma continuidade, com conflitos e as aproximações inerentes às difíceis relações inter-geracionais. A reclamação de um estatuto de igualdade, a reivindicação da diferenciação regional e a exigência de uma autonomia política surgiram, deste modo, imbuídos de uma coerência que foi concretizando a construção da identidade nacional e a compreensão das especificidades que correspondem às dimensões cultural e político-ideológica a considerar.


O CASO DA REVISTA “CLARIDADE” 
Saliente-se o caso da revista “Claridade”, de Baltazar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Aurélio Gonçalves, publicada em S. Vicente, entre 1936 e 1960, por entre muitas dificuldades e vicissitudes materiais, considerando a dispersão de colaborações. O programa, no dizer de Manuel Lopes (1907-2005), era “fincar os pés na terra cabo-verdeana” e que teve uma influência muito significativa no sentido de uma autêntica impregnação cívica e da procura das raízes mais fundas da cultura cabo-verdeana – “em contacto com a terra os pés se transformaram em raízes e as raízes se embeberiam no húmus autêntico das nossas ilhas”. Aí esteve a modernidade crioula, ligada ao que era próprio e genuíno e ao que era universal na busca da emancipação… “Você Brasil, é parecido com a minha terra. / As secas do Ceará sãos nossas estiagens, / com a mesma intensidade de dramas e renúncias” – disse Jorge Barbosa. E é muito estimulante verificar a interdependência entre o conteúdo da imprensa cabo-verdiana e a construção paulatina da identidade nacional, bem como o facto de o discurso jornalístico ter funcionado como expressão e fonte de influencia no processo de construção da identidade crioula de Cabo Verde. E se falamos de identidade crioula, não podemos esquecer a raiz etimológica dessa palavra que tem exatamente a ver com um permanente ato de criação. Se referimos a geração da “Claridade” e a importância do movimento, muito para além de qualquer circunstância temporal ou política, temos ainda de aludir a outras influências: a Academia Cultivar, ainda na senda do movimento claridoso (tendo como órgão de imprensa “Certeza – Folha da Academia”, 1944, S. Vicente), a “Nova Largada” (Praia, 1958, com o Suplemento Cultural do “Cabo Verde”, com Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano, Francisco Lopes da Silva…) e do Seló (Praia, Folha de Novíssimos, 1962). “Perante os discursos totalizantes europeísta e africanista, provámos (diz Brito-Semedo) que uma posição rígida e extremada (…) não é senão uma visão enviesada de um todo, que surgiu como resultado de um processo histórico-político-social que fez a elaboração dessas duas componentes, a africana e a europeia, e que levou à integração destas duas posições, que hoje constituem a vivência cabo-verdiana”. Construção gradual, a cultura cabo-verdiana  afirma-se em cada dia que passa quer nas suas características originais, quer nos elementos específicos que resultam de uma rica complementaridade de diferentes perspetivas. Como um património cultural vivo, Cabo Verde constitui um Caleidoscópio que nos permite compreender o potencial universalista da cultura da língua portuguesa. 


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  

De  30 de junho a 6 de julho de 2025


É tempo de recordar que a Constituição da República fará em breve cinquenta anos, e que celebrámos meio século das primeiras eleições com sufrágio universal, pelo que importa tirar lições no sentido de aprofundar o compromisso democrático.


O segundo Pacto MFA-Partidos foi assinado em 26 de fevereiro de 1976. Era uma nova solução e não uma simples modificação do primeiro Pacto. Como reconheceu Miguel Galvão Teles, os nossos militares conseguiram fazer uma coisa extraordinária: cumpriram rigorosamente a sua missão de fazer sair as Forças Armadas da cena política. Os militares conseguiram preparar a sua saída do palco no sentido do normal jogo democrático, deslocando a legitimidade para os partidos políticos e para o Presidente da República. O compromisso constitucional de 1976 procurou, assim, ser coerente com o conceito de democracia representativa pluralista, limitada pela competência revolucionária militar e jurisdicional do Conselho da Revolução, semipresidencial ou de parlamentarismo racionalizado, descentralizada, participativa, no âmbito de um Estado de Direito. Marcam-no a tentativa de fazer uma síntese original entre a democracia representativa tradicional e a formulação de um programa de transformação económica. A articulação entre os direitos, liberdades e garantias fundamentais e os direitos económicos e sociais consignavam uma autêntica liberdade económica que devia gozar de proteção idêntica a qualquer outra das liberdades previstas na Lei Fundamental. Aliás, a definição do setor privado da economia por exclusão de partes levava, por exemplo, António Sousa Franco a considerar tal setor como regra, segundo a noção de uma Constituição material consagradora da liberdade do mercado.

O carácter compromissório da Constituição é assim evidente. Veja-se que os direitos, liberdades e garantias e a democracia política resultam da convergência PS, PPD e CDS; o socialismo, da confluência do PS, PPD e PCP; os aspetos coletivistas do entendimento PS-PCP; o sentido personalista – PPD-CDS; os direitos sociais, a autogestão e o planeamento foram defendidos pelo PS; as autonomias regional e local e as garantias jurisdicionais pelo PPD; a defesa das nacionalizações, a reforma agrária e as organizações populares de base pelo PCP; e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a iniciativa privada pelo CDS, como salientou Jorge Miranda. Os diversos contributos são nítidos e dão ao texto constitucional de 1976 uma configuração poliédrica e aberta, que se tem adaptado bem à evolução da realidade. Num primeiro período que podemos autonomizar na vigência constitucional (1976-1982), verifica-se uma separação de esferas de competência entre as instituições militares e as civis – sequela do período revolucionário. Após a revisão constitucional de 1982 dar-se-ia início ao segundo período de vigência da Constituição, já numa lógica europeia, tendo sido extinto o Conselho da Revolução e institucionalizada a subordinação das FA ao poder civil democrático, procedendo-se a uma redistribuição das competências do órgão extinto. Foi então criado o Tribunal Constitucional e na Constituição Económica procedeu-se à atenuação das fórmulas ideológicas unilaterais. Já com a revisão constitucional de 1989 deu-se início a um terceiro período de vigência constitucional, dominado pela abertura económica, pelo fim do princípio da irreversibilidade das nacionalizações (graças à interpretação segundo a qual a dupla revisão constitucional permitia superar a “irreversibilidade”) e pela abertura da possibilidade de reprivatizações a cem por cento de empresas nacionalizadas após 25 de abril de 1974.

No domínio cultural, importa recordar o que afirmou a deputada constituinte Sophia de Mello Breyner Andresen sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura”. A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política” – insistiu a deputada. “Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra os referidos dogmatismos indiscutíveis e os maximalismos irreais. Por isso, atacava o “poder totalitário”, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. Mas havia que considerar a educação como objetivo essencial. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderíamos encontrar para falar do tema da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola vista como lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade.

O compromisso complexo alcançado em 1976 correspondeu, pois, ao culminar de um processo de construção democrática marcado não só pela história constitucional inaugurada em 1820, mas também pela longa experiência de uma nação antiga fundada no que Jaime Cortesão designou como fatores democráticos. Assim, o compromisso assumido em 25 de abril de 1974 pelo Movimento das Forças Armadas pôde ser cumprido pela convergência entre os poderes militar e civil, e pelo acordo político estabelecido entre as forças políticas com assento na Assembleia Constituinte.

O processo complexo de génese do compromisso constitucional corresponde à convergência entre o impulso insubstituível do Movimento das Forças Armadas e a capacidade alcançada pelos partidos políticos e movimentos sociais no sentido de gerarem um documento marcado pelo tempo em que foi elaborado, mas suficientemente flexível para se adaptar às novas circunstâncias, em especial da integração europeia e da relação com o mundo da língua portuguesa, no âmbito da CPLP. O Movimento das Forças Armadas soube, assim, superar naturais vicissitudes internas, e as forças políticas e sociais democráticas puderam preservar o pluralismo e a legitimidade representativa dos interesses e valores da sociedade e da cidadania. Na história constitucional portuguesa temos hoje um período singularmente longo de permanência do sistema, graças às suas virtualidades, suscetíveis de aperfeiçoamento até pela previsão (ainda não concretizada) de um círculo nacional (artigo 149º), introduzido na revisão constitucional de 1997. Importa assim salvaguardar momento a momento “o respeito da vontade do povo português”.   


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 23 a 29 de junho de 2025

 

Foi há 80 anos! Em 1945, a 13 de maio, o Centro Nacional de Cultura foi fundado por Afonso Botelho, António Seabra e Gastão da Cunha Ferreira, vindos de uma peregrinação a Fátima.

 

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Passava uma semana sob o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa. Desde o primeiro momento, as ideias novas e a modernidade estiveram bem presentes no CNC. E o Centro tornou-se, no Largo de S. Roque, ponto de encontro pioneiro de jovens artistas, escritores, pessoas do teatro, defensores avant-la-lettre do meio ambiente e da fidelidade às raízes, com os olhos postos no futuro. Sarah Afonso foi a primeira mulher no Centro, graças à participação de Almada Negreiros. Este e Fernando Amado fizeram do tempo novo a regra e o princípio. E, sem cuidar das naturais vicissitudes de um grupo que ganhou direitos de alforria sonhando uma «Cidade Nova», notamos que depressa foi o desejo de ar fresco e de liberdade de espírito que prevaleceu neste grupo de jovens monárquicos que desejavam usufruir de uma necessária liberdade. Tudo começou logo em 1946 com um grupo de teatro que levou à cena “A Caixa de Pandora” com Fernando Amado, Ruy Cinatti, João Maria Bravo e Vasco Futscher Pereira. Houve uma rádio de curta duração, mas foi muito importante uma auspiciosa “Exposição de Arte Moderna” com Almada, António Dacosta, Eduardo Viana, Carlos Botelho, António Lino e Cândido Costa Pinto... Nesta primeira fase, o Centro andará com a casa às costas, sucessivamente na Rua da Horta Seca, na Rua do Ataíde e na Rua do Loreto 42-1º andar, até 1952, altura em que assenta armas e bagagens na Rua António Maria Cardoso, nº 68. Era presidente da direção João Camossa Saldanha. São aprovados os estatutos com Gonçalo Ribeiro Telles. Têm lugar cursos sobre a Saudade, com Afonso Botelho, a que se seguem conferências marcantes de Delfim Santos e Gabriel Marcel. Presidem aos destinos do CNC Adriano Vaz Pinto e António Seabra. Até que, a partir de 1957 a figura marcante passará a ser Francisco Sousa Tavares, que se afirma contra todo o conformismo. Foi ele quem primeiro definiu o Centro como humanista e um lugar de autonomia e de criação, de liberdade e de inteligência. E Gonçalo Ribeiro Telles ligou a revista “Cidade Nova” à natureza e à terra. Para a realização de sessões e conferências, à falta de cadeiras, usavam-se cestos de vime… Em 1954 o grupo de teatro leva à criação da Casa da Comédia, centrada no grupo Fernando Pessoa, com «O Marinheiro», que realiza em 1962 a memorável tournée no Brasil, onde encontrou Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Sousa Tavares e António Alçada Baptista marcam por essa altura decisivamente o CNC, num sentido personalista, democrático e constitucional. Lourdes de Castro faz com José Escada a sua primeira exposição organizada pelo Centro. No CNC reúnem-se os fundadores do jornal “57”, José Marinho, Álvaro Ribeiro, Afonso Botelho, Orlando Vitorino e António Quadros, num tempo em que também se ouve a «Heterodoxia» de Eduardo Lourenço. Dos debates monárquicos, bastante acesos, passa-se à ideia democrática, com a candidatura de Humberto Delgado (1958), o apoio ao Bispo do Porto, a reflexão sobre o “dever social dos cristãos”, em que pontua o facto de António Alçada Baptista ter comprado uma pequena livraria jurídica que se abalança a ganhar dimensão. A aventura da Livraria Moraes e do Círculo do Humanismo Cristão. O Concílio Vaticano II e o tema da abertura democrática põem o Centro no coração dos temas atuais e necessários. Em 1961 realizam-se as conferências de quinta-feira, sob impulso da nova presidente da direção, Helena Cidade Moura. São convidados como oradores o Padre Manuel Antunes, Joel Serrão, Virgínia Rau, Vitorino Magalhães Godinho, Ruy Belo, Adérito Sedas Nunes, David Mourão-Ferreira, Luís Francisco Rebelo. Alçada Baptista cria a partir de 1963 as revistas «O Tempo e o Modo» e «Concilum». «A ação começa na consciência. A consciência pela ação insere-se no tempo. Assim a consciência procurará o moo de influir no tempo. Por isso se a consciência for atenta e virtuosa, assim será o tempo e o modo» - proclama a fórmula de Pedro Tamen. João Bénard da Costa, Alberto Vaz da Silva e Nuno Bragança apontam caminhos novos na criação e na crítica literárias. De Agustina a Jorge de Sena há novos valores a considerar. Nasce a Resistência Cristã com Nuno de Bragança, José Pedro Pinto Leite e João Bénard da Costa. O início da Guerra de África e invasão de Goa suscitam reações contraditórias, mas a exigência de liberdade torna-se premente. Depois do fecho da Sociedade Portuguesa de Escritores, pela atribuição do prémio a Luandino Vieira pelo romance “Luuanda”, Sophia de Mello Breyner assume a presidência e torna o Centro um lugar de resistência intelectual. «Perfeito é não quebrar / A imaginária linha // Exata é a recusa / E puro é o nojo». Henrique Martins de Carvalho exerce as funções de Presidente da Assembleia Geral, onde se manterá até 1974. Coincidindo com as crises académicas e com a presença marcante no CNC de Sophia de Mello Breyner e Francisco de Sousa Tavares, jovens universitários tornam-se presença assídua – Jorge Sampaio, António Reis, Jaime Gama, José Luís Nunes, Eduardo Prado Coelho, Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Nuno Júdice, Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra. Com a presidência de Francisco Lino Neto, realiza-se o 1º Encontro Nacional de Críticos de Arte. Contesta-se a guerra do Vietnam. José Manuel Galvão Teles preside ao Centro e Joana Lopes é membro da direção. É o marcelismo. Jorge de Sena vem falar. Na Sociedade Nacional de Belas Artes organiza-se o ciclo “Lusitânia, Quo Vadis?”. Há cargas policiais e detenções. Há dirigentes presos e o debate democrático é vivo e intenso, com Sousa Tavares a regressar à presidência. «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar» - diz Sophia numa vigília de cristãos na igreja de S. Domingos, e nada pode ficar como dantes. Em 1970, António Alçada Baptista e Nuno Teotónio Pereira trazem para o Centro a “Associação para a Liberdade da Cultura”, presidida por Pierre Emmanuel. Entre nós, sob a designação de Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias tem um papel muito importante, tendo sido constituída por António Alçada Baptista, Padre Manuel Antunes, S.J., João Bénard da Costa; Nuno de Bragança; José Cardoso Pires; José-Augusto França; João de Freitas Branco; Luís Filipe Lindley Cintra; Maria de Loures Belchior; João Pedro Miller Guerra; Mário Murteira; José Palla e Carmo; José Ribeiro dos Santos; Rui Grácio; João Salgueiro; Adérito Sedas Nunes; Joel Serrão e Nuno Teotónio Pereira. António Alçada Baptista (1971-72); José Cardoso Pires (1972-73); João de Freitas Branco (1973-74) assumem rotativamente a Presidência do Centro Nacional de Cultura, cabendo a João Bénard da Costa a função de Secretário Permanente (1970-74). É um momento de contradições e perplexidades – se Nuno Teotónio Pereira é preso, Veiga Simão, o novo Ministro da Educação, constitui uma Comissão de Cultura onde se encontram membros do CNC. Mas a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos também aqui funciona clandestinamente... Um dia, Frei Bento Domingues é convocado para a PIDE e diz que na rua só conhece o Centro Nacional de Cultura… É a democracia que começa a afirmar-se. A liberdade de imprensa é defendida como essencial. Há cursos livres sobre temas proibidos, realizam-se os jornais falados. Uma sessão com José Afonso é proibida e acaba em carga policial. Em 25 de Abril de 1974, chega a democracia. Sophia escreve. «Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial, inteiro e limpo, / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo». Francisco Sousa Tavares está em 25 de Abril de 1974 no Largo do Carmo, como sempre estivera, na primeira linha da defesa da liberdade. É o primeiro civil a falar publicamente. A legalização dos partidos políticos faz o CNC interrogar-se. José-Augusto França à frente dos destinos do Centro instala aqui o departamento de História de Arte da Universidade Nova – e permite a sobrevivência. José Régio inspira o novo tempo. «Davam grandes passeios aos domingos». Helena Vaz da Silva assume a presidência do CNC com a direção da “Raiz e Utopia” (1977-2002), plena de entusiasmo e de novíssimas ideias. Inicia-se uma nova fase de debates, de percursos, de mil projetos sobre o Património Cultural e sobre a presença portuguesa no mundo… António José Saraiva e Eduardo Lourenço fazem da liberdade de pensamento um exercício de crítica e de recusa de lugares comuns – a psicanálise mítica do destino português e «Os Filhos de Saturno» desenvolvem-se como sinais de controvérsia e diálogo. A educação, a ciência, a cultura, as artes são poderosos fatores mobilizadores. Jovens cidadãos sobre rodas, “Os Portugueses ao Encontro da sua História”, o património cultural como realidade viva… As bolsas de jovens criadores e criar lusofonia ligam-se ainda  à formação nos temas europeus, no turismo cultural e nos roteiros patrimoniais. “Os Caminhos de Fátima” constituem uma iniciativa no âmbito dos roteiros do turismo religiosos que o CNC tem coordenado, sob a inspiração de Gonçalo Ribeiro Telles. O Centro teve  ainda a responsabilidade das Jornadas Europeias do Património do Conselho da Europa e aqui nasceu e concretizou-se a Convenção de Faro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, assinada em 2005, ratificada e em vigor desde 2011… Guilherme d’Oliveira Martins (2002-2016) e Maria Calado (2016) assumiram a Presidência do CNC. A partir de 2012, aquando da realização do Congresso da Europa Nostra em Lisboa no Mosteiro dos Jerónimos, com a presença dos Príncipes das Astúrias, foi instituído com a Europa Nostra o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a divulgação do Património Cultural, cuja lista de premiados é a seguinte: Claudio Magris (2013); Orhan Pamuk (2014); Jordi Savall (2015); Eduardo Lourenço e Jean Plantureux – Plantu (2016); Wim Wenders (2017); Bettany Hughes (2018); Fabiola Gianotti(2019); José Tolentino Mendonça (2020); Anne Teresa De Keersmaeker (2021); Oksana Lyniv (2022); Jorge Chaminé (2023) e Thomas Struth (2024). Em 2025 teve lugar a décima terceira edição do Disquiet, encontros internacionais organizados em parceria com a Dzanc Books do Michigan (EUA) com uma centena de escritores norte-americanos em diálogo com escritores portugueses. A iniciativa nasceu sob a inspiração da memória do poeta Alberto Lacerda, invocando o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa / Bernardo Soares. Ao celebrar oitenta anos de vida, o Centro Nacional de Cultura constitui, pela continuidade e pela presença marcante, um exemplo que merece evocação.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

A VIDA DOS LIVROS

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  De 16 a 22 de junho de 2025

 

A publicação do Dicionário da “Geração de 70”, em coedição da Imprensa Nacional e da Presença, constitui um momento especialmente importante no panorama cultural, sobretudo graças à extraordinária colaboração que foi possível reunir, numa ação que durou cerca de trinta anos, envolvendo os melhores especialistas sobre o século de oitocentos.

 

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A minha homenagem vai, antes de mais, para as minhas colegas Ana Maria Almeida Martins e Manuela Rego, sem cuja determinação e conhecimento não teria sido possível chegarmos a bom porto. E se falo de quem hoje merece homenagem, começo por referir o saudoso editor Francisco Espadinha, que, desde a primeira hora, esteve de acordo em lançar a iniciativa, sendo sucedido por Manuel Aquino e pela equipa da Presença. Duarte Azinheira na Imprensa Nacional compreendeu o caráter de serviço público do Dicionário e garantiu que o mesmo pudesse ser concretizado em condições de qualidade. Não podemos esquecer Eduardo Lourenço, autor da Introdução, que sempre incentivou esta obra que envolveu sessenta e oito colaboradores. Infelizmente, muitos desses autores não puderam chegar connosco ao termo da jornada e salientamos os seus nomes: A. H. de Oliveira Marques, António Machado Pires, António Monteiro Cardoso, Afonso Praça, António Pedro Vicente, Embaixador Dário Castro Alves, Eugénio Lisboa, Joaquim-Francisco Coelho, José-Augusto França, José Augusto Seabra, João Bigotte Chorão, Joel Serrão, Luís Francisco Rebelo, Luís Sá, Raul Rego e Rui Feijó. A sua presença física faz-nos muita falta, mas fica a sua afetuosa recordação pela memória que nos deixaram e pelos textos impressivos que estão connosco.

 

Chamámos a esta geração paradoxal e simbolizámo-lo no diálogo final de “Os Maias” entre Carlos e João da Ega. “A poesia e a reflexão de Antero de Quental apontam num sentido de uma liberdade estoica, mobilizadora de vontades. O diálogo entre Carlos da Maia e João da Ega tem contornos paradoxais, pois o pessimismo não impedia que ainda desejassem correr para apanhar na Rampa de Santos o Americano como símbolo do progresso, e Jacinto e Zé Fernandes ou Gonçalo Mendes Ramires não desistiam de vislumbrar um outro futuro; o mesmo se diga de As Farpas de Ramalho e Eça ou do Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins finalizando com a metáfora entre o sono e a capacidade de despertar, ou do Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro, disposto a largar a albarda, com Ramalho a dizer: ‘um dia virá em que ele mude de figura e mude também de nome, para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo’. O sopro mítico e simbólico deixado pela Geração de 70 é o do sentido crítico, da dureza sem apelo nem agravo, da mobilização de vontades e da recusa da oscilação entre a glória e a vergonha. Sermos nós obriga a recusar a ilusão”.

 

Onde está o paradoxo? No contraponto entre a crítica severa e inexorável e a determinação em querer tornar melhor a sociedade mercê de um espírito saudavelmente reformista. E como Eduardo Lourenço refere, trata-se de compreender o carácter precursor de quem acreditava não ser possível viver sem ideias. Lembremo-nos, por isso, do momento crucial em que se realizaram as Conferências do Casino Lisbonense, em maio de 1871, enquanto em Paris, na sequência da Guerra Franco-Prussiana, a cidade estava a ferro e fogo a viver os dias da Comuna. “O que é novo na Geração de 70 é que ela começa como manifestação literária que toma rapidamente – talvez por causa da consciência que já tinha Antero de Quental, de uma espécie de missão – um carácter de intervenção com características que ultrapassam a literatura para se tornarem um acontecimento de natureza cultural. Logo nas primeiras manifestações adivinha-se que está em curso uma espécie de revolução cultural, coisa que o Romantismo só o é a título literário; e mesmo se o é no plano político, os dois estão separados”. Eis a originalidade do que designamos como “geração”, que marcou decisivamente o país, muito para além do tempo fugaz que lhes foi dado viver. E o que é extraordinário tem a ver com a independência de cada um dos seus membros e a complementaridade dos respetivos contributos. Nas suas diferenças, há um pensamento comum, que se torna perene, e que permite uma influência transversal nas gerações que se seguiram, quer no tempo, quer nas diversas famílias de ideias. Essa é a razão que explica ter chegado a sua influência até aos nossos dias, independentemente de vogas e de tónicas, para além da literatura.

 

Em vez da futilidade das circunstâncias, podemos encontrar a arguta consideração dos problemas essenciais. Os temas do atraso e da decadência ocuparam especialmente esta geração. E o certo é que, como Eduardo Lourenço salienta, o tempo foi temperando as análises e a questão da decadência tornou-se mais nuancée do que foi apresentada por Antero no Casino Lisbonense. “A verdade é que esse mito criado pela ideia de um atraso objetivo de Portugal manifesta-se não apenas naquilo que nós chamamos a vida material da sociedade, que era visível em relação a outros paradigmas, mas em relação áquilo que eram as expressões mais avançadas do progresso material noutros países da Europa, sobretudo nos países de ponta. A comparação é sempre feita não com aquilo que eram as condições de vida da sociedade, mas com a imagem que aqui havia dessas sociedade mais avançadas”. Tratava-se de recusar o fatalismo do atraso, buscando as razões objetivas para essa distância, no sentido de as superar através de medidas concretas, capazes de obter resultados positivos. A ligação aos primeiros românticos, de que o contacto direto com Herculano foi um exemplo, e a herança transmitida do século XX, envolvendo a Renascença Portuguesa, a Seara Nova até ao Orpheu permite entender que pôr Portugal ao ritmo do progresso constituiu uma marca indelével de quem manteve um sentido de atualidade e pertinência que nos conduz à importância do papel dos clercs na sociedade contemporânea. Eis por que razão este Dicionário se revelou como paradigmático, na sua conceção e na sua execução. A mobilização de um conjunto tão diversificado de colaboradores e o próprio tempo de execução correspondem a uma preocupação de abrangência e abertura, que poderia ter ficado pelo caminho, mas que foi possível completar. Estamos perante uma obra de análise e de síntese, que os leitores e a posteridade julgarão, sendo evidente que a diversidade de pontos de vista pode ajudar-nos a compreender o carácter inequivocamente paradoxal de uma Geração claramente influente, ainda hoje.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

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  De 9 a 15 de junho de 2025

 

"O Sonho de uma Nova Manhã – Cartas ao Papa" de Tomás Halik é uma reflexão tanto mais oportuna quanto corresponde ao início de um novo pontificado, num mundo de grandes incertezas.

 

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O autor escreveu estas cartas no final do pontificado do Papa Francisco e o certo é que ganharam uma evidente atualidade, pelo que nelas se lê e pelo sentido prospetivo que contêm. A eleição do Papa Leão XIV obriga à consideração de um novo tempo, por diversas razões. Antes de mais, a herança do Papa Francisco exige a ponderação de um método sinodal que ficou delineado quanto ao futuro próximo e que deve continuar. Há um conjunto de exigências que correspondem a desafios múltiplos e complexos, desde a resposta à reorganização da Cúria, à recuperação da credibilidade afetada pelos escândalos morais, passando pela resposta da Igreja Católica, como realidade global, relativamente à crise das vocações, ao papel das mulheres e à mobilização de todas as energias disponíveis. O novo Papa declarou-se missionário, e importa encontrar as melhores respostas relativamente a esse perfil de ação. E importa não esquecer ainda que a leitura dos sinais dos tempos faz-nos regressar ao pressupostos da encíclica “Pacem in Terris”. Num mundo dominado pela incerteza e pela violência, são pedidas ao “Povo de Deus” diligências concretas para que haja avanços no diálogo e na mediação para que a paz não seja uma palavra vã. Em simultâneo, importa tomar-se consciência de que o desenvolvimento humano obriga a recusar a inércia da indiferença, bem como exige a definição de prioridades que correspondem à resposta ao vazio de valores éticos, à situação dramática das desigualdades e injustiças e à dramática crise ambiental.

 

Tomás Halík imagina um Papa surgido num novo tempo, com o nome de Rafael: «um dos temas-chave nas minhas conversas com o papa Rafael é a questão de como passar da reforma, no sentido de apenas mudanças exteriores na forma, à transformação interior do ‘coração das coisas’. Como, no processo de reforma, não perder, mas sim descobrir algo novo e revitalizar aquilo que constitui a identidade cristã, aquilo que é para ela o ‘sal da terra’ e o fermento do pão fresco para os dias de amanhã?» Se falamos de transformação, temos de entender a ideia de metamorfose, que a natureza nos ensina. Há um caminho. Por isso, o método sinodal faz sentido como gradual reflexão e como ação com consequências práticas. «Os movimentos de renovação da Igreja têm de ser avaliados, na medida em que contribuem para que tudo o que é humano na Igreja esteja cada vez mais aberto a esta dinâmica transformadora da presença de Deus. Jesus, na sua famosa parábola, fala sobre o grão que tem de morrer para dar fruto». Mas quem somos? Vivemos numa circunstância perigosa. Pessoas com identidades pessoais fracas e incertas facilmente sucumbem ao mercado das seitas, de ideologias fundamentalistas, fanáticas e totalitárias. Por outro lado, os meios e os fins confundem-se e perde-se o sentido de um tempo que não se esgota no imediato e no instrumental.

 

Charles Péguy e Jacques Maritain falaram dos polos político e profético da vida – ambos são indispensáveis, no primeiro, cuidamos da relação entre as pessoas na cidade; no outro, procuramos sentido para além do imediato. A vida faz-se dessas duas referências. Daí que a sinodalidade seja não apenas “a necessidade de caminharmos juntos e de pensarmos juntos, mas também a oportunidade de percebermos ao longo desse caminho a compatibilidade entre temas que são, muitas vezes, discutidos separadamente. Cada passo no caminho para uma compreensão mais profunda de um dos grandes temas teológicos traz uma nova luz sobre os outros”. Não podemos viver sem transcendência e a liberdade de consciência permite distinguir e completar os planos, de modo que a dimensão espiritual não ponha em causa o espaço plural da polis. E assim Teilhard de Chardin está presente na lição de “Fratelli Tutti”, considerando “a cooperação, a parceria e o apreço mútuo como motores do desenvolvimento em vez da luta pela sobrevivência”. A idade do Espírito Santo de Joaquim de Flora deve, assim, ser lida não como um contraponto relativamente à presença do Pai e do Filho, mas como uma continuidade. O Pentecostes é natural presença do Espírito na História. Afinal, como ensinou o Mestre Eckhart, “o homem exterior tem um deus exterior e o homem interior tem um Deus interior”. Como realidades do mundo da vida, “religare” e “relegere” constituem o fenómeno religioso como natural no seio da humanidade, fator de coesão e de reflexão, de ligação e de confiança. Somos uma comunidade de peregrinos, a quem se pede que saibamos escutar-nos uns aos outros. “A igreja tem a obrigação de ser a voz daqueles que não têm voz e tem de interpretar a mensagem que nos é dirigida e nos é transmitida por Deus fora das fronteiras da fala humana”.

 

A noção de ecumenismo alarga as fronteiras e chega à compreensão franciscana da “Laudato Si’”. Tomás Halik crê, assim, sinceramente numa renovação sinodal, numa partilha de responsabilidades, num encontro de todas as mulheres e homens de boa vontade. Não se trata de alimentar qualquer ilusão, mas de compreender quem é o nosso próximo e de fazer da atenção e do cuidado a nossa ordem do dia. E esta renovação sinodal “inclui o aprofundamento do respeito mútuo e do diálogo entre três componentes da Igreja; a hierárquica (representando a continuidade da tradição), a democrática (representando o sensus fidelium, a experiência da fé de todo o povo de Deus) e a carismático-profética (representando a presença do Espírito de Deus). Se a Igreja realmente enveredar por esse caminho, a relação entre a fé do indivíduo e a fé de uma Igreja assim entendida será muito mais dinâmica, mais rica, e mais profunda. Não se tratará de uma obediência de tipo militar, mas de uma escuta comum, de um enriquecimento mútuo, uma complementaridade, uma busca comum, uma viagem comum a profundidades inesgotáveis”. Eis a atualidade de uma obra que nos põe perante os desafios fundamentais do mundo contemporâneo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  

De 2 a 8 de junho de 2025


André Malraux inaugurou em 1965 o Centro Cultural Português de Paris na antiga residência de Calouste Gulbenkian. Desse acontecimento damos aqui conta.


Quando a 3 de maio de 1965 André Malraux, ministro de Estado francês encarregado das questões culturais, ao lado de José de Azeredo Perdigão, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, inaugurou o Centro Cultural Português, na avenue d’Iéna em Paris ocorreu um facto muito mais importante do que à primeira vista poderia parecer. Havia nuvens negras a toldar as relações de Portugal com o mundo, em virtude da questão colonial, tendo o próprio General De Gaulle resolvido em França a questão da Argélia, ao abrir o caminho da descolonização. No entanto, sem qualquer cedência aos princípios, Malraux, em diálogo com o Embaixador Marcello Mathias, com a autorização para a vinda para Lisboa de peças fundamentais para o Museu Gulbenkian e com o reconhecimento da importância da nova instituição, contribuiu decisivamente para a abertura de horizontes com vista à democratização portuguesa. De facto, a hoje Delegação da Fundação Gulbenkian em Paris foi uma guarda avançada na função de concretizar a liberdade cultural entre nós. Malraux compreendeu-o. E pode dizer-se que a inteligência dos intervenientes na definição do modus vivendi  em Paris permitiu, de forma voluntária, uma presença da Fundação, com criação da Casa dos Estudantes portugueses André de Gouveia na Cidade Universitária e com uma intervenção relevante no mundo da língua portuguesa, da qual faz parte a importante Biblioteca. E assim a Fundação Gulbenkian, em 1965, instalou na antiga residência de Calouste Gulbenkian em Paris a estrutura de apoio aos estudos portugueses nas universidades francesas, associada ao ensino da língua, a concertos, recitais e conferências. Numa palavra, tratava-se de criar uma instituição que serviu para dar protagonismo e fazer conhecer em França os valores da cultura portuguesa com repercussões nas ciências, letras e artes, na escala universitária e nos níveis mais elevados do conhecimento.


O Centro começou a funcionar em 1967-68, sendo o seu primeiro diretor Joaquim Veríssimo Serrão (1967-1972), a quem sucedeu José Vitorino de Pina Martins (1972-1982). Léon Bourdon e Marcel Bataillon aconselhavam o novo centro. E a Biblioteca foi sobretudo organizada por António Coimbra Martins, com o apoio de Almeida Langhans, com a preocupação de abranger as diversas culturas da língua portuguesa, em que o Brasil ocupava lugar relevante. Orlando Ribeiro foi um dos primeiros conferencista convidados, e iniciaram-se as publicações, com Solange Parvaux, Albert Silbert e Armand Guibert. Foi um tempo de iniciativas sobretudo académicas, O Centro sofreu as naturais repercussões dos acontecimentos parisienses de Maio de 1968, mas na institucionalização da democracia, a atividade do Centro evidenciou-se pela qualidade das ações levadas a cabo e pela respetiva importância. No centenário da morte de Damião de Góis, em 1974, destacaram-se as iniciativas realizadas, designadamente a conferência de Marcel Bataillon e de outros lusitanistas. Os Arquivos publicaram um debate muito rico sobre a identidade do autor da tragédia A Castro entre Adrien Roig, Paul Teyssier e Roger Bismut. Os temas históricos prevaleciam então. Em 1984, publicou-se o estudo contemporâneo sobre Herberto Helder.  Contudo, Eduardo Lourenço definiu exemplarmente o lugar da instituição, na história cultural. “Quando nasceu a Fundação, a imagem da cultura tinha ainda um estatuto que a assimilava ao sagrado e, se não era um domínio reservado, era ao menos um privilégio ao qual só as elites poderiam ter acesso ou onde tinham assento natural. Segundo a sua génese, a Fundação contribuiu para aperfeiçoar e sublimar este estatuto de exceção do cultural na vida social portuguesa, antes de se tornar instrumento da metamorfose”. O exercício da liberdade tornava-se possível. Nesse sentido, o final dos anos setenta conheceram não apenas debates sobre a atualidade cultural, mas também sobre os novos desafios europeus.


O Centro Cultural português evoluiu deste modo desde a erudição lusitanista até ao diálogo da Europa das culturas. A mudança operou-se nas direções de José-Augusto França (1983-1989), de Maria de Lourdes Belchior (1989-1997) e de António Coimbra Martins (1997-1998), ainda sob a supervisão de José Blanco, o Administrador do Serviço Internacional. José-Augusto França considera deverem abrir-se perspetivas novas: “o Brasil e os países africanos de língua oficial ou veicular portuguesa devem ser parceiros privilegiados na consumação de tarefas que envolvam o diálogo entre culturas”. Só assim seria possível chegar às gerações mais jovens. Haveria que mudar de paradigma e que considerar a natureza internacional da Fundação. Daí a importância da cooperação com outras instituições e o estudo de novos temas – “A Arte portuguesa no século XIX” numa exposição no Petit Palais, o colóquio “Literaturas Africanas de Língua Portuguesa” (1984). Maria de Lourdes Belchior segue a mesma linha e promove um grande colóquio internacional de homenagem a Marcel Bataillon, além do apoio a traduções da literatura portuguesa. O panorama cultural transformava-se e nascia a designada como Delegação em França, compreendendo um novo conjunto de missões, que não punham em causa o seu papel estratégico, já não ligado exclusivamente à língua portuguesa, mas cada vez mais às culturas da língua portuguesa num mundo global. Além dos portugueses e luso-descendentes, tratava-se de dar resposta ao número crescente de estudiosos das literaturas e das realidades do mundo global da língua portuguesa.


João Pedro Garcia, João Caraça, Nuno Vassallo e Silva e Miguel Magalhães delinearam, assim, uma ação de âmbito internacional que atribuía à Delegação da Fundação Gulbenkian um papel estratégico, que reforçou a vocação internacional da instituição. A consolidação da Biblioteca como um serviço de grande valia para os lusitanistas, a realização de Exposição dedicada a Amadeu de Souza-Cardoso no Grand Palais, a cooperação com o Centro Pompidou ou o apoio ao o Festival de Avignon, a título de exemplo, constituem marcas que pretendem alargar a intervenção da instituição no nundo contemporâneo. Em Paris, a Fundação vai, assim, gradualmente conquistando e reforçando um lugar com base em experiência adquirida, adaptando-se à novas circunstâncias. Não se trata de repetir o que anteriormente foi feito, mas de partir de um valor indiscutível para o alargar, mercê da cooperação e das suas virtualidades. Quando hoje lemos a correspondência entre Saint-John Perse e Calouste Gulbenkian, podemos entender como a cultura pode contribuir para a melhor compreensão do mundo...


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 26 de maio a 1 de junho de 2025


Bernardim Ribeiro é um dos mistérios da nossa literatura. Pouco se sabe sobre ele, muito se especula. “Menina e Moça” encerra em si uma revelação sobre o fundo complexo e múltiplo, lírico e trágico, da nossa cultura.


Bernardim Ribeiro foi amigo de Francisco Sá de Miranda, mas o certo é que “Menina e Moça ou a novela Saudades” (publicado em Itália, em Ferrara, no ano de 1554) é um verdadeiro símbolo da nossa tradição lírica, bucólica e romanesca… Mas, mais do que isso, revela-nos o carácter complexo da nossa cultura. Assim começa esse texto fundamental: «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha». Para Pina Martins, a história de “Menina e Moça” é apenas uma novela sentimental. «Há que lê-la e não subentende-la. Há que interpretá-la à luz das categorias do seu tempo e não do nosso…». O romance principia com o monólogo de uma jovem que não conhecemos nem de nome nem de condição, num processo que parece seguir a antiga tradição lírica e lembra as cantigas de amigo. A jovem protagonista queixa-se de uma dolorosa separação e de mudanças que a atiraram para o desterro de um monte solitário, onde está há dois anos. E vai-nos contar o que ocorreu dias antes, estando mergulhada numa solidão sem medida. Viu então a manhã formosa por entre os prados verdejantes do vale, sentando-se debaixo de um freixo, à beira-rio, e então numa ramada vem poisar um rouxinol. A ave canta um triste trinado e cai morta na corrente larga da água, que a arrasta para longe. Aproxima-se então uma mulher idosa e então com ela a jovem inicia uma conversa em torno das desventuras de cada uma. Esta contou-lhe então a maldição daquele lugar, em que dois amigos acabaram mortos à traição, deixando sós as suas amadas. Entra aqui a tradição conhecida dos relatos de amor cavalheiresco, na linha de Amadis de Gaula. Assim se conta a história do cavaleiro Lamentor, chegado de longes terras, acompanhado de duas irmãs, Belisa, dele grávida, e Aónia. Belisa dá à luz Arima, mas morre quando dá à luz. Num momento inesperado e trágico, Lamentor mata um cavaleiro que se dedicava a guardar uma ponte e chega um desconhecido, Binmarder, que se apaixona por Aónia e pela sua extraordinária beleza. Temos, assim, três núcleos do enredo: Lamentor e Belisa, que correspondem ao início do relato, Binmarder e Aónia; e, por fim, Avalor e Arima… Os dois amigos que marcam a tragédia são Binmarder e Avalor e entre os dois há uma geração de permeio, que vai de Aónia a sua sobrinha Arima, órfã de Belisa. Cabe dizer que Aónia e Arima encontram destinos semelhantes; amam e são amadas por homens comprometidos anteriormente com Aquelísia e a Senhora Deserdada. Binmarder e Avalor estão condenados a viver o sofrimento da separação. Aquelísia ama Binmarder que ama Aónia, que por sua vez é obrigada a casar com um vizinho. A Senhora Deserdada ama Avalor que ama Arima. Encontramos, assim, um mundo de amores e desencontros – num romance que termina de modo inesperado com uma dama ultrajada nos seus desejos amorosos a pedir ajuda a Avalor… O amor e o sofrimento estão, assim, sempre presentes. E é a saudade ou soydade que faz Lamentor ficar para sempre ligado à memória de Belisa, como Avalor à esperança de encontrar Arima. A saudade, como lembrança e desejo, surge como expressão do sofrimento e da esperança, alimentados pela separação e pela ânsia de regresso, numa perspetiva religiosa e amorosa, que Pina Martins considera cristã, e que Helder Macedo prefere interpretar à luz da tradição judaica. Bernardim é, assim, um símbolo da tradição do amor saudoso que vem dos trovadores…Com uma ou a outra das influências, a verdade é que Bernardim Ribeiro é, simultaneamente, marcado pela fundo cristão e pela marca judaica. Estamos perante uma cultura diversificada e complexa, que se torna reveladora de uma capacidade para ir ao encontro de realidades diferentes.


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 19 a 25 de maio de 2025


Recordamos hoje o primeiro centenário do nascimento de Maria Barroso.
 


No centenário do nascimento de Maria Barroso, importa lembrar um tandem com uma importância muito grande quer na preparação da democracia portuguesa, quer na sua institucionalização e consolidação. Leonor Xavier quando escreveu Um Olhar sobre a Vida de Maria Barroso (Oficina do Livro, 2012) compreendeu-o perfeitamente. Esse tandem associou Mário Soares e Maria Barroso. No percurso que analisou com grande cuidado e rigor dá-nos a dimensão da cidadã, com uma vocação própria, que se afirma com uma singular qualidade, como aluna do Conservatório, como estudante da Faculdade de Letras, como prometedora artista do Teatro Nacional, com reconhecimento unanime, e ainda como pedagoga e como parlamentar e militante da sociedade civil. Encontramo-la nascida numa família algarvia de raiz democrática, com o pai preso e deportado para os Açores. Frequenta o Liceu Dona Filipa de Lencastre e é aluna do curso de Arte Dramática. Depois de concluir o curso dos liceus no Pedro Nunes, inicia a frequência de Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras. David Mourão-Ferreira recorda esses tempos, no Convento de Jesus: “Mal nos apercebíamos da luminosa rede de afetos que ali se ia tecendo”. Tal grupo reunia personalidades que viriam a ser marcantes na cultura portuguesa: Sebastião da Gama. Luís Filipe Lindley Cintra, Matilde Rosa Araújo, Eurico Lisboa, Maria de Lourdes Belchior, Joel Serrão, Helena Cidade Moura. A jovem destaca como mestres Vitorino Nemésio, Jacinto do Prado Coelho, Hernâni Cidade, Andrée Crabé Rocha e Virgínia Rau. Maria de Jesus admira especialmente Delfim Santos professor da Filosofia Antiga ou Vieira de Almeida na cadeira de Lógica.  


Vai às aulas da parte da manhã, vem a casa almoçar e segue para os ensaios no teatro. A mãe acompanha-a no caminho e fica à sua espera no camarim, durante as representações noturnas. Estreia-se no Teatro Nacional em 1944 no Auto da Pastora Perdida e da Velha Gaiteira de Santiago Presado. Norberto Lopes fala de “uma promessa radiosa com a qual o teatro português deve contar”. E é nos corredores da Faculdade que conhece Mário Soares num episódio ligado a uma injustiça de que foi vítima, com uma falta inexistente dada pelos compromissos com o teatro. Em maio de 1945, participa na grande manifestação estudantil do final da Guerra em que Mário Soares intervém. Maria Barroso não assiste até ao fim, pois tem de correr para o ensaio geral no Teatro Nacional. Representava o papel de Elsa, a dactilógrafa, na peça Vidas sem Rumo, com Raul de Carvalho, Paiva Raposo e José Gamboa. Pouco depois, por escolha de Amélia Rey Colaço desempenha no Frei Luís de Sousa o papel de Maria de Noronha, ao lado de Palmira Bastos, destacando-se junto do público e dos críticos, pela segurança e pela emoção com que representa. Fernando Fragoso dirá “É um atriz que sobe a olhos vistos. E defendeu-se briosamente envolta num halo de graça e de frescura”. Mário Soares é preso em 1947, o regime endurece na perseguição dos seus opositores. É o tempo do MUD juvenil e o final da Guerra exigia a abertura democrática. Maria de Jesus  envolve-se na ação política em memoráveis recitais poéticos. Diz poesia como ninguém mais. São extraordinárias as suas aparições, começadas em Santarém, que alertaram a polícia política. Traz para a praça pública a poesia do Novo Cancioneiro empolgando um público entusiástico. O poema de Álvaro Feijó Nossa Senhora da Apresentação era emblemático“Aquela que não tem mantos da cor do céu / Aquela que não tem fios nos cabelos”, como denúncia da injustiça, da miséria e da fome. Mas também fazia ouvir as palavras fortes de Mataram a Tuna, de Manuel da Fonseca – “Ah meus amigos desgraçados, se a vida é curta e a morte certa / despertemos e vamos / eia / vamos fazer qualquer coisa de louco e heroico / como era a Tuna do Zé Jacinto / tocando a marcha Almadanim!”. E havia ainda Dois poemas de Amor na Hora Triste, de Álvaro Feijó, Chácara das Bruxas Dançando, de Carlos de Oliveira, Elegia ao Companheiro Morto, de Mário Dionísio, Mar Atlântico de Manuel da Fonseca e Prometeu Agrilhoado, de Joaquim Namorado. A voz compassada e firme não podia deixar indiferentes os que a ouviam. Ecoa no nosso ouvido a lembrança da sua voz!


No Teatro Nacional, o seu desempenho continua a destacar-se. Robles Monteiro convida-a para protagonizar Benilde ou a Virgem Mãe de José Régio. E este faz confiança. É um grande sucesso, que entusiasma o próprio Régio. Logo a seguir representa Retablo de Maravillas em comemoração do centenário de Cervantes. No papel de Adela, na peça A Casa de Bernarda Alba de Garcia Lorc,a é aplaudida entusiasticamente pelo público. Norberto Lopes diz: “Dentre a gente nova (…) permitimo-nos destacar o nome de Maria Barroso, que está em plena curva ascensional de uma carreira brilhante, onde pode vir a ocupar um lugar de primeiro plano, se os fados não a desviarem do caminho florido que tem à sua frente”. O final do texto revelar-se-ia profético, por más razões. A polícia política rondava. Infelizmente, com a terceira prisão de Mário Soares, coincidente com a encenação da peça Paulina Vestida de Azul, de Joaquim Paço d’Arcos, vem  a terrível decisão. Não poderia  continuar a trabalhar no D. Maria II, por uma ordem vinda da polícia e do Ministério da Educação. “Foi um desgosto. Senti que era uma injustiça” – confessa Maria Barroso. Amélia Rey Colaço considera um golpe fatal, que atinge o coração do Teatro.  Leonor Xavier sintetiza de modo exemplar uma lição de vida, que corresponde à coragem permanente de alguém que não se deixa abater, seguindo em frente. “Para o cenário de uma vida, há os momentos iluminado de palco, as emoções que se exprimem na força do significado, os silêncios quietos na sombra dos bastidores. Na história de Maria de Jesus, o cenário é arte de amor e de liberdade, de compadecimento e de paz”.


Ao reler Leonor, na biografia de Maria Barroso, senti uma grande gratidão. A admiração que sempre tive por uma cidadã exemplar, por uma mulher de armas, fica como um exemplo que o tempo se encarregará de afirmar e reavivar. Em tudo o que fez deixou uma luminosidade especial, que ainda persiste na herança que nos deixou. O tandem que comecei por referir é uma marca irrepetível da nossa democracia. Tive o raro privilégio de acompanhar essa ligação extraordinária, humana, cívica e política. E não esquecei nunca o dia em que, convidando-a para evocar os Cadernos da Poesia, e sem qualquer preparação, pudemos ouvir a sua voz fantástica a recordar a grande poesia como voz de liberdade. “Porque os outros vão à sombra dos abrigos / E tu vais de mãos dadas com os perigos. / Porque os outros calculam mas tu não” – como disse Sophia. E muito fica por contar. 


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 12 a 18 de maio de 2025


Passa em 2025, o primeiro centenário do nascimento de Joaquim Veríssimo Serrão, antigo Presidente da Academia Portuguesa da História e historiador com importante obra, recordamo-lo hoje.


O testemunho que importa deixar em memória de Joaquim Veríssimo Serrão tem como marco fundamental a entrega total que dedicou ao estudo da História portuguesa. Os diversos domínios da sua investigação correspondem a uma procura sistemática das profundas razões que determinaram a afirmação da autonomia de Portugal no contexto mundial. Desde os alvores da nacionalidade, encontramos motivações complexas que não podem ser resumidas em razões simplistas. Esse facto, levou o historiador a recusar considerações simplistas ou unilaterais. A cada passo, encontramos uma convergência entre razões geográficas, políticas, económicas, sociais e culturais para os diferentes acontecimentos e fenómenos. E às razões prevalecentes em cada momento, vamos acrescentando outras que nos permitem avançar na compreensão de uma existência diversa e multifacetada. Os séculos XV, XVI e XVII, para Portugal e para o Brasil são os períodos que mais ocuparam a investigação do historiador, com destaque para a monarquia dual e para sua evolução, no contexto internacional.


Cem anos, já. Celebramos o primeiro centenário do nascimento de um historiador probo, de um estudioso incansável, que nos deixou uma herança rica e positiva de investigação e estudo sobre as nossas raízes e desenvolvimentos históricos. Nascido em Santarém, em 8 de julho de 1925, Joaquim Veríssimo Serrão licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 1948, tendo militado cedo no MUD juvenil. Profundamente interessado pela ligação entre a história regional e a projeção internacional da mesma, dera à estampa, um ano antes, “Ensaio Histórico sobre o Significado da Tomada de Santarém aos Mouros em 1147”,  estudo na linha dos ensinamentos de Alexandre Herculano, o verdadeiro fundador da moderna historiografia portuguesa. Em 1948, estreara-se como conferencista, apresentando “A mundividência na poesia de Guilherme de Azevedo”, sobre o talentoso poeta e jornalista de Santarém (1839-1882), com estreitas relações com a Geração de 70, colaborador do Álbum das Glórias com o pseudónimo de João Rialto.


Em 1950, partiu para Toulouse, no sul de França, onde foi nomeado leitor de Cultura Portuguesa da Universidade. Durante este período teve contacto estreito com os mais brilhantes lusitanistas, como Paul Teyssier (1915-2002), León Bourdon (1900-1994) e Jean Roche (1917-2006). Recorde-se que qualquer um dos três considerou sempre a grande importância das culturas da língua  portuguesa de Portugal até ao Brasil. Durante este período publicou “A Infanta D. Maria (1521-1577) e a sua Fortuna no Sul da França”. Trata-se de um importante estudo que se insere no papel fundamental desempenhado pela corte portuguesa no movimento cultural renascentista, depois da chegada Portugal de Cataldo Parísio Sículo (1455-1517). Reveste-se, aliás, de especial importância o papel desempenhado pela Infanta D. Maria de Portugal, filha de D. Manuel, estudada exaustivamente por Carolina Michaelis de Vasconcelos. Por outro lado, deu ainda a conhecer importantes investigações sobre António de Gouveia, Francisco Sanches, Diogo de Teive, Manuel Álvares e outros letrados portugueses que frequentaram aquela universidade.


Em 1957 defendeu a tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, intitulada “O Reinado de D. António Prior do Crato: 1580-88”, sobre um período pouco estudado da história portuguesa e iniciou funções docentes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Na década seguinte, o historiador foi particularmente profícuo: além de dar aulas e conferências, publicou trabalhos sobre humanistas portugueses nas universidades de Salamanca, Montpellier e Toulouse, as relações externas entre Portugal e as cortes europeias no século XVI, o Brasil colonial (séculos XVI e XVII) e a crise dinástica de finais do século XVI. Fez ainda parte dos colaboradores da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e do Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, onde assinou diversas entradas.Entre 1967 e 1972, suspendeu a atividade docente, por ter sido nomeado diretor do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris. Nestas funções destacou-se na divulgação dos estudos portugueses através dos “Arquivos do Centro Cultural Português”. É muito importante a sua ação em Paris pelas iniciativas que levou a cabo e pelos conferencistas e estudiosos que convidou para animarem tão relevante ação internacional, num tempo em que a projeção da cultura além fronteiras estava limitada pelas circunstâncias políticas. As relações que estabeleceu com J. V. de Pina Martins constituíram um exemplo de diálogo cultural muito fecundo, de que foi largamente beneficiária não apenas a história da literatura e da arte, mas também a história das instituições – tendo a Fundação Gulbenkian sido um catalisador extramente importante. Em 1973 regressou a Portugal para a docência na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, da qual foi reitor até 1974, cargo que deixou após a Revolução de 25 de Abril. Pouco depois, com grande coerência, o historiador deu testemunho das suas relações de amizade com Marcello Caetano, publicando “Confidências no Exílio” (1985) e “Correspondência com Marcello Caetano 1974-1980” (1994). Desde 1975 até 2006 presidiu à Academia Portuguesa da História. A sua “História de Portugal” (Editorial Verbo, 1978-2010) de dezoito volumes (Vol. I - 1080-1415; Vol. II - 1415-1495; Vol. III - 1495-1580; Vol. IV - 1580-1640; Vol. V - 1640-1750; Vol. VI - 1750-1807; Vol. VII - 1807-1832; Vol. VIII - 1832-1851; Vol. IX - 1851-1890; Vol. X - 1890-1910; Vol. XI - 1910-1926; Vol. XII - 1910-1926; Vol. XIII - 1926-1935; Vol. XIV - 1935-1941; Vol. XV - 1941-1951; Vol. XVI - 1951-1960; Vol. XVII - 1951-1960; Vol. XVIII - 1960-1968) constitui um significativo contributo para o conhecimento e divulgação pedagógica dos contributos portugueses para a evolução do mundo.  Joaquim Veríssimo Serrão foi sócio de mérito, membro honorário e correspondente de inúmeras sociedades científicas, portuguesas e estrangeiras, tendo recebido diferentes distinções, condecorações e prémios, bem como doutoramentos “honoris causa” por universidades francesas, espanholas e portuguesas. Recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias de Ciências Sociais em 1995.


Guilherme d'Oliveira Martins

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