Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Para Jean d’Ormesson em «O Mundo é uma Coisa Estranha, Afinal», Guerra e Paz, 2015, a imaginação de qualquer romancista revela-se elementar ao lado dos grandes mistérios do universo. As leis da ciência e da natureza são necessárias e arbitrárias. Eis a justificação de todos os dilemas e paradoxos…
UM MUNDO INESGOTÁVEL Ao falarmos da importância da bioética nos dias de hoje, vem à lembrança o que nos disse Jean d’Ormesson: «O mundo no qual vivemos não é apenas inesgotável. Com a luz, e com o tempo, mistério dos mistérios, e com essa coisa inaudita que é a vida, e essa mais inaudita ainda que é o pensamento, o mundo é também, e sobretudo, inverosímil» («O Mundo é uma Coisa Estranha, Afinal», 2015). A imaginação de qualquer romancista revela-se elementar ao lado dos grandes mistérios do universo. As leis da ciência e da natureza são necessárias e arbitrárias. Eis a justificação de todos os dilemas e paradoxos… E a vida é o mais banal dos milagres. Escapa a qualquer definição. Por isso, as descobertas científicas baseiam-se tantas vezes num ápice intuitivo…. Eis por que razão pessoas como o Padre Luís Archer, S.J. ou Maria de Sousa puderam trilhar simultaneamente os caminhos da ciência, da poesia e da investigação – estando permanentemente disponíveis para se interrogar sobre o mundo misterioso da vida. Charles Darwin limitou-se, afinal, apenas a entreabrir uma pequena fresta no conhecimento em «A Origem das Espécies», e hoje chegamos a um antepassado universal e comum de todos os seres vivos: uma célula batizada LUCA (Last Universal Common Ancestor).
PORQUE HÁ ALGO EM VEZ DE NADA? Einstein segreda-nos: «Aquilo que há de mais incompreensível é o mundo ser compreensível». E inesperadamente Leibniz – o mesmo que pergunta «cur aliquid potius nihil?» («Porque há algo em vez de nada?») – afirma que o mundo é composto por átomos impercetíveis e indestrutíveis – mónadas -, que refletem todo o universo, que está assim presente em cada um dos seus pontos. Assim, Einstein procurou encontrar a conexão entre Universo e pensamento, estabelecida desde o começo… Deste modo, no caminho ao encontro do começo das coisas, encontramos três elementos essenciais: a inteligência humana, capaz de descobrir os segredos do Universo; a luz, que nos permite viver sob o Sol e distinguir os seres e as coisas à nossa volta – apesar de viajarmos lentamente, considerando a imensidão do espaço. «Vemos o Sol tal qual ele era há oito minutos, a galáxia Andrómeda tal como era há dois milhões de anos, o enxame de galáxias Virgem, tal como era há quarenta milhões de anos, os quasares nos confins do Universo como eram há uma dezena de milhões de anos» … E o terceiro elemento é o tempo, sobre que já mostrámos a nossa perplexidade e as suas extraordinárias virtualidades… Um escritor de romances sobre a efemeridade do tempo e das mentalidades, como «Au Plaisir de Dieu», sobre um castelo que conheceu bem durante a infância e sobre os seus fantasmas, põe-se no centro das suas próprias interrogações, entre Espinosa, Pascal, Montaigne e Leibniz – jogando com as perplexidades de Albert Einstein e Max Planck. E refere-nos o golpe de génio do cristianismo, ao assumir o «que o distingue de todas as outras religiões» - a Encarnação e, na expressão de René Girard, a condenação de um inocente. E lembramo-nos dos ensinamentos de Teilhard de Chardin, que seguiu os caminhos da ciência, para fazer luz sobre o conhecimento e a compreensão de Deus, da natureza e da humanidade. Quantas incompreensões! Num tempo em que a bioética assume uma importância indiscutível e cada vez maior, exigindo um diálogo fecundo entre pessoas e saberes, salientamos a importância do trabalho realizado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (1996-2001).
UM DIÁLOGO APAIXONANTE O diálogo entre a ciência e a cultura é apaixonante. É verdade que muitas vezes se torna difícil e pleno de perplexidades, mas revela-se fecundo, sobretudo quando estamos perante espíritos livres e abertos, disponíveis para usar a razão como chave para aprofundar as descobertas do espírito. Lembramo-nos de Pascal, personalidade única e fascinante, para quem fé e ciência eram naturalmente complementares, salvaguardadas as diferenças no domínio da ação. Hoje quando lemos ou relemos o autor de «Pensamentos» sentimos um espacial apelo ao sentido crítico e à permanente interrogação sobre os limites. Ficamos, afinal, prevenidos contra as tentações de um positivismo fechado e constrangedor, que apenas nos torna mais ignorantes, perante a tremenda confusão entre certezas e ilusões. Perante tantas contradições e paradoxos, entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, entre o passado e o futuro, apenas nos resta a exigência de não baixar os braços e de manter os olhos bem abertos, para podermos ver e tentar perceber para além da ignorância. E podemos dar o exemplo de Leibniz, para quem a criação é sempre complexa, envolvendo a natureza, a humanidade e a transcendência. E o Padre Joaquim Carreira das Neves, quando lia Stephen Hawking, fazia-o com rigor e serenidade, sem pôr em causa os conhecimentos do cientista e o seu caminho fundamental, mas interrogando os limites. Entender os limites do conhecimento – eis o grande desafio do conhecimento. Que é a inteligência senão a capacidade de compreender as limitações, a fim de que os problemas sejam respondidos com a modéstia própria do saber de experiências feito?... Nunca saberemos o suficiente para ser intolerantes, como afirmou Karl Popper. Daí a necessidade de usar as nossas capacidades para melhor conhecer e compreender. A maravilha da criação apenas pode ser entendida se pudermos ligar a atenção ao que nos cerca ao cuidado dos outros. Cabe-nos ter acesso a uma pequenina parte da verdade científica e o grande desafio é o de nos dispormos a continuar a dar passos para ir para diante. A sociedade contemporânea avança a um ritmo alucinante. No mundo da ciência e da técnica os progressos ocorrem com cada vez maior intensidade. As comunicações atingiram um nível de desenvolvimento rápido, alucinante e inesperado. Em especial, no domínio da medicina, os avanços permitiram combater e pôr fim a doenças mortais anteriormente incuráveis e encontrar em poucos meses a vacina para uma pandemia. Tudo isso significa progresso e maior esperança de vida para a humanidade. Mas todo este progresso é para o bem ou para o mal? Surge, assim, uma preocupação ética e moral que se traduz nos grandes debates acerca da eutanásia, do aborto, da pena de morte, da bioética, da ecologia e da pobreza. Estas controvérsias provocam uma divisão entre partidários e detratores, com repercussões na opinião pública e nos movimentos sociais. A dimensão ética é imprescindível, porque o ser humano rege-se por critérios que lhe servem de orientação, dando coerência e pleno sentido a tudo o que faz.
Homenagear hoje Eça de Queiroz é reconhecer o lugar cimeiro que o autor de “Os Maias” tem na cultura da Língua Portuguesa e não apenas no Portugal europeu.
DEMONSTRAÇÃO DE GRANDEZA
Quando lemos nas “Notas Contemporâneas” o artigo de Eça de Queiroz sobre “Os Grandes Homens de França”, escrito em 1892 na “Gazeta de Notícias”, encontramos um exercício de fina ironia que demonstra as qualidades do extraordinário prosador. Do que se trata não é de um juízo sobre o futuro, mas de uma crítica relativamente à procura artificial de grandes homens, como se tratasse de um jogo ou de um inventário de celebridades… Tem sentido a lição do autor de “A Ilustre Casa de Ramires”, distinguindo o reconhecimento do valor da cidadania e da contribuição para o bem comum da cultura de uma qualquer feira de vaidades. Falando de Vítor Hugo, Eça diz apenas que “a demonstração fica sujeita a dúvidas, a contestações, a protestos. Fica sobretudo incompreendida pela multidão. Vítor Hugo, pelo menos, é um grande homem – que não necessita demonstração”. Assim ocorre com os realmente melhores, que merecem o nosso reconhecimento. Uma leitura inteligente deste texto permite compreender que as sociedades têm o direito e o dever de reconhecer aqueles que se destacam e constituem exemplo para todos. E cabe a quem pensa e não abdica de ter sentido crítico afirmar, como fez Eça de Queiroz, de modo claro que o reconhecimento obriga a homenagear os melhores como exemplos e com um critério que não se confunda com um exercício ilusório sobre glórias passageiras e vãs.
Compreendamos assim o que o crítico nos quis dizer. Tem razão o reparo sobre a busca frenética de “grandes homens”. Não é disso que se trata quando afirmamos que o reconhecimento dos melhores tem de ficar demonstrado por si mesmo. Por isso, há muito considero que faz sentido o reconhecimento de Eça de Queiroz no Panteão, pelo que fez e pelo que nos legou como exemplo maior para a cultura da língua portuguesa. Haverá outros, certamente, mas importa fazer justiça e destacar este exemplo, já que uma sociedade se afirma e valoriza escolhendo quem não precisa de demonstração. A decisão de homenagear num edifício próprio e com um estatuto especial ilustres figuras portuguesas é apanágio das sociedades antigas, que aprendem a valorizar as suas raízes. Em 1836, o então ministro do Reino Passos Manuel decretou a edificação de um Panteão Nacional ainda sem local definido. O objetivo era dignificar os heróis que tornaram possível a Revolução liberal de 1820 e o início do constitucionalismo. E assim seria possível reerguer a memória coletiva de grandes referências que não poderiam perder-se no esquecimento, como, por exemplo, Luís de Camões. O Panteão Nacional destina-se, assim, a homenagear e perpetuar a memória dos portugueses que se distinguiram por “obras valorosas”, por serviços prestados ao País, pelo exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade. As honras do Panteão podem consistir na deposição, dos restos mortais dos cidadãos distinguidos ou na afixação de uma lápide alusiva à sua vida e à sua obra.
CONTRA QUALQUER BANALIZAÇÃO
Para impedir qualquer banalização, urge garantir o que preocupava o próprio Eça, escolhendo quem não precisa de demonstração. Em Portugal, o estatuto de Panteão Nacional está atribuído ao antigo templo de Santa Engrácia em Lisboa e ao Mosteiro Santa Cruz em Coimbra, onde se encontram os túmulos dos dois primeiros reis de Portugal - D. Afonso Henriques e D. Sancho I. No primeiro destes monumentos estão sepultadas diversas personalidades da história portuguesa: quatro Presidentes de República, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Sidónio Pais e Óscar Fragoso Carmona; e ainda Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Humberto Delgado, Aquilino Ribeiro, Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira. Estão ainda recordados, através de “cenotáfios”, os nomes de seis figuras históricas: Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Luís de Camões. O mosteiro dos Jerónimos, que funcionou provisoriamente como Panteão, antes de Santa Engrácia estar completada, não tem hoje esse estatuto formal, ainda que tenha os túmulos de Vasco de Gama e de Luís de Camões, na nave do templo, e do historiador Alexandre Herculano, na antiga Sala do Capítulo. Em 1985 o corpo de Fernando Pessoa foi transladado para o Claustro dos Jerónimos, sendo o seu túmulo da autoria de Lagoa Henriques. Importa ainda dizer que em Lisboa, no templo de S. Vicente de Fora, encontra-se o Panteão Real da Dinastia de Bragança, de natureza diferente, onde se encontram sepultados em número significativo os membros da família que reinou após a Restauração de 1640.
Desde a antiga Grécia e depois em Roma, a palavra Panteão designava o templo onde se honravam os vários deuses com culto reconhecido. A palavra é grega e significa literalmente “todos os deuses”. Em Roma, o Panteão que chegou aos nossos dias é uma homenagem ao cônsul Marco Agripa (63-12 a.C.), que o mandou construir em 27 a.C. No ano 80, foi praticamente destruído por um incêndio. Quatro décadas depois, o imperador Adriano (76-138) ordenou a sua reconstrução. Foi o cristianismo que, em virtude da doação de um rei bizantino ao Papa Bonifácio IV no século VII, salvou o monumento da pilhagem e da destruição, adotando o orago de Santa Maria e Todos os Santos. Já no Panteão de Paris, as obras para construção foram iniciadas em 1764, sob encomenda de Luís XV, em ação de graças por ter recuperado de uma grave enfermidade. O templo apenas foi concluído em 1790, depois da Revolução tendo sido então transformado num edifício secularizado, com a função de homenagear os vultos da França que se notabilizassem. Então o Panteão passou a funcionar como lugar de homenagem reconhecida da Pátria aos melhores dos seus filhos. Também na Abadia de Westminster, em Londres, estão sepultados grandes vultos britânicos como William Shakespeare, Isaac Newton e Charles Darwin. É assim a partir duma tradição religiosa e secular que foram criados os Panteões Nacionais. Os modernos Panteões nascem, pois, de uma tradição antiga de raízes heterogéneas, desde o paganismo ao secularismo, passando pela dimensão religiosa. Trata-se, em qualquer caso, de honrar os melhores através do reconhecimento dos cidadãos. É este o espírito que hoje devemos recordar. Eça de Queiroz é uma referência fundamental nas culturas da língua portuguesa, correspondendo a sua presença entre os nossos maiores no Panteão Nacional a um ato de elementar justiça, não um mero gesto formal, mas como apresentação de um exemplo para todos. Um reconhecimento de justiça.
Autor de “Revelação e experiência do Espírito” (Paulinas), Yves Congar foi um dos grandes teólogos do século XX. Assim, o novo Patriarca de Lisboa fez questão de o referir na entrada solene nas novas funções.
UMA ATITUDE RENOVADORA E ABERTA Como lembrou Frei Bento Domingues, O.P., dominicano Yves Congar muito lutou e sofreu para publicar as suas investigações que punham em causa tabus, doutrinas e apologéticas que sufocavam a revisão teológica da sua história e impediam as reformas de que precisava para se abrir às outras Igrejas cristãs, ao universo das outras religiões e ao mundo contemporâneo. Nasceu em 1904 e faleceu em Paris a 22 de junho de 1995. Os seus restos mortais repousam no cemitério de Montparnasse, ao lado da sepultura que evoca a vida do seu confrade e amigo, Marie-Dominique Chenu. A sua vida e a sua obra são uma fonte de inspiração, para quem ama a Igreja e luta para que nunca se esqueça que a sua lei, na graça do Espírito de Jesus Cristo. Elaborou a sua teologia – em constante evolução e revisão – a partir do centro da vida e da história da Igreja Católica, em diálogo com as outras Igrejas cristãs, em escuta do universo das religiões não-cristãs e das correntes que agitam o mundo. Nos anos 30, em face da crescente descrença e indiferença religiosa, sintetizou o seu diagnóstico perspicaz: a uma religião sem mundo sucedeu um mundo sem religião. Acompanhou e marcou os grandes movimentos eclesiais que precederam o Concílio Vaticano II, designadamente no ecumenismo, na teologia do laicado e na reforma da Igreja. Congar afirmou: “As grandes causas que procurei servir chegaram ao Concílio: renovação da Eclesiologia, estudo da Tradição e das tradições, reforma na Igreja, ecumenismo, laicado, missão, ministérios”…
UM NOVO TEMPO A nomeação de D. Rui Valério como novo Patriarca de Lisboa constitui motivo de alegria e de esperança num momento especialmente importante e exigente na vida da Igreja entre nós, perante inúmeros desafios marcados pelo período sinodal e pela necessidade de mobilizar energias no sentido de superar graves dificuldades recentes, de aproveitar o impulso das Jornadas Mundiais da Juventude e de apresentar à sociedade um sentido de renovação e de responsabilidade. É de bom augúrio a declaração do novo Patriarca segundo a qual se propõe dar à Igreja de Lisboa o que tem dado sempre ao longo da sua vida sacerdotal e como bispo: através da presença e da proximidade. “Vou ser um bispo da estrada, um bispo da rua, um bispo junto das pessoas. E é nessa ótica que vou concretizar e alinhar a minha ação”. Esta ideia de caminho, de atenção às periferias e de mobilização de todos, no sentido que tem sido dado pelo Papa Francisco, constitui um sinal forte e necessário.
A declaração solene feita no momento de entrada na diocese constitui um motivo de reflexão e de responsabilidade para toda a Igreja. «Tal como sempre, também hoje, à Igreja, incumbe a grave responsabilidade de indicar o verdadeiro alimento, a verdadeira água, e oferecê-lo. É essa a sua missão urgente». E não é por acaso que à presença necessária se junta o sentido da urgência. E continua D. Rui Valério: «Como já anotava o teólogo Yves Congar, acerca da pertinência da missão evangelizadora, conservando uma desarmante atualidade: “o nosso mundo já não está naquela espécie de harmonia e homogeneidade com a cultura católica, com os seus símbolos, com as formas de expressão católicas. Simplesmente é profano, secular, laico; é científico e técnico; mas também, cada vez mais, utilitário, hiper sensual, violento, afrodisíaco. Em larga medida é ateu, não porque esteja demonstrada a inexistência de Deus, mas porque se constrói cada vez mais fora da perspetiva de Deus e do seu culto. E Congar rematava: hoje, exigem-se gestos verdadeiros, uma palavra simples e verdadeira, sinais fortes e compreensíveis. Quer-se que a liturgia seja de Alguém, que seja expressão da sua alma e, por isso, que envolva e diga respeito à vida». E nesse sentido o Patriarca afirmou, no sentido do tom geral da Jornadas da Juventude: «Queremos ser Igreja Missionária que, ao estilo de Maria, se levanta apressadamente para a montanha do mundo e da humanidade.» Importa, assim, seguir um caminho audacioso e seguro, permitindo-nos exprimir gratidão e homenagem ao Cardeal D. Manuel Clemente, anterior Patriarca, pelo que realizou, pelas fecundas sementes que deixou e pelo muito que ainda tem para nos dar, na ação e no exemplo.
LEMBRAR A HISTÓRIA Lembremos que Lisboa tem uma presença da Igreja Católica que vem dos primeiros séculos do Cristianismo. Foi elevada a metrópole eclesiástica, em 1393, tendo em 1716 o Papa Clemente XI, pela Bula de 7 de novembro, «In Supremo Apostolatus Solio», criado o Patriarcado de Lisboa, primeiro na Capela Real, em Lisboa Ocidental, estendendo-se em 1740 o referido estatuto a Lisboa Oriental. A decisão envolveu um acontecimento eclesial e régio. As razões que levaram o Papa a esta concessão inédita, diferente da de Veneza, que recebeu o título patriarcal já existente no Adriático, têm a ver imediatamente com a armada enviada por D. João V para deter o avanço turco no Mediterrâneo, seguindo um apelo insistente do referido Papa Clemente XI. A este facto, associa-se o zelo missionário de Portugal. Foi na verdade o auxílio prestado por D. João V ao Pontífice que decidiu a Santa Sé a reconhecer a importância da antiga capela real portuguesa. Assim a célebre embaixada do Marquês de Fontes (1712), enviada a Roma para defender o padroado português do Oriente e conseguir também o título patriarcal de Lisboa, obteve resultados positivos, graças ao auxílio político contra os turcos, que o Papa recompensou excelentemente. Pode dizer-se, contudo, que é o zelo missionário a razão decisiva para a permanência deste estatuto – que recorda os cinco patriarcados clássicos, Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém e se prolonga no Patriarcado da Índias Orientais, de Goa e Damão. O primeiro Patriarca de Lisboa foi D. Tomás de Almeida (1670-1754), notável teólogo, que veio do Porto para Lisboa, acompanhando D. João V até ao fim do seu longo reinado. Refira-se ainda, neste mês, o início do Ano Jubilar Vicentino, recordando o primeiro padroeiro da Cidade de Lisboa, São Vicente, cujas relíquias chegaram a Lisboa no dia 15 de setembro de 1173 e ficaram primeiro depositadas na Igreja de Santa Justa, sendo transladadas, no ano seguinte, para a capela-mor da Sé. Para assinalar a efeméride o Patriarcado de Lisboa, o Cabido da Sé e a Câmara Municipal de Lisboa concordaram numa série de celebrações comemorativas, em curso.
“Manuel Teixeira Gomes – Biografia” de José Alberto Quaresma (INCM) constitui um repositório essencial para a compreensão do grande escritor e cidadão que tomou posse como Presidente da República há cem anos.
PRESIDENTE HÁ CEM ANOS A lembrança dos cem anos da eleição de Manuel Teixeira Gomes constitui oportunidade para refletirmos sobre a afirmação portuguesa da cultura na democracia. Se o escritor algarvio nunca escondeu a importância que atribuía à ligação entre a cidadania e as artes, a verdade é que tal nos permite salientar que os fatores democráticos devem ser alimentados pela consagração de instituições estáveis e de mecanismos de mediação capazes de representar adequadamente os cidadãos e de criar condições favoráveis ao desenvolvimento humano. Longe da ideia de sociedade perfeita, que motiva os tiranos, importa ligar o primado da lei e as legitimidades do voto e do exercício. Se é verdade que o Presidente Teixeira Gomes invocou razões pessoais para deixar as funções de primeiro magistrado, tal ficou no panorama cultural e ético como referência fundamental.
E recordo a célebre carta de Tunis de 1927 que enviou ao seu amigo João de Barros (publicada pela inesquecível jornalista Manuela de Azevedo): “quando já cansado projetava, ou melhor, preparava, a saída do meu posto (em Londres), abriu-se-me outro período ainda mais adverso a devaneios: o da Presidência, onde tudo dependia da colaboração e boa vontade alheia, isto é, dos políticos. Um presidente constitucional, no nosso país, que se conserve fiel aos juramentos prestados, é um misto de ‘boneco de palha’ e de ‘Senhor da cana verde’: o primeiro para ser mandado e o segundo para ser insultado. Mas perguntará o meu amigo: ‘E não teve pena de deixar a sua casa, as suas filhas, os seus livros, o seu mar, a sua paisagem?...’ Nenhuma, ou se a tive não me lembro; e como nunca me arrependi do que fiz, nem mesmo essa arrelia me pungiu, se porventura alguma vez julguei que fizera asneira. A minha vida em Londres foi de luta ininterrupta, e mais divertida, infinitamente, do que poderia ser contemplativa. Não escrevia romances: vivia-os e a miúdo com êxitos a que jamais me teria dado aspirar na literatura escrita. E era-me constante motivo de satisfação, ver chegar a Londres os nossos grandes e pequenos homens de todos os partidos, firmemente convencidos de que o sucessor de Soveral não podia ter feito caminho algum, e observar o espanto – que o não ocultavam – com que, sem demora, verificavam o contrário”.
CIDADÃO REFERENCIAL Só alguém imbuído do melhor sentido cívico poderia pronunciar-se deste modo. Solto de Belém, poderia ter voltado à vida antiga – no antigo escritório de Portimão, onde tinha a livraria, em Lisboa, na Gibalta, onde estavam as coisas vindas de Londres, podendo encetar o trabalho de seleção dos manuscritos, de correção, polimento e conserto. Contudo, quinze anos de intervalo, abriam “um barranco largo e fundo, sobre o qual dificilmente” se lançaria “ponte sólida”. Além de que “a flor da sensibilidade de um escritor aparece logo no seu primeiro livro” … E tinha razão, até considerando a qualidade por si manifestada precocemente. Contudo, o artista andou sempre fora da “atmosfera da ilusão”. E quando o recordamos, percebemos que o cidadão juntou a sensibilidade do amante da qualidade e da beleza à capacidade criadora do extraordinário intérprete da vida e da natureza. “Edificar para que a eternidade nos soletre o nome? Que insensatez! Na história do mundo, tudo tem prazo, que, para a glória, é sempre curto”. O que importaria, porém, era o gosto, o valor da obra de arte ou da paisagem, em suma, a compreensão da beleza. Por isso, eram limitadas as tiragens das suas obras, “presumindo que seriam suficientes para encontrar uma ou outra rara alma afim, que os gostasse”. E confessa: “Se eu fosse suscetível de arrependimento, experimentá-lo-ia por ter intitulado um dos meus livros ‘Cartas sem moral nenhuma’, como chamariz obsceno. Não me importava nada que a obra fosse realmente indecente, mas importava-me, contrariava-me o chamariz. Caí naquele título quase involuntariamente. Devia ser ‘Cartas de um imoralista’ (e talvez não fosse melhor, nem mais são, mas era menos desbragado), quando nas vésperas do seu aparecimento me chegou noticia do romance do Gide, ‘O Imoralista’. Designação ainda nova, para fugir ao plagiato, tomei outro título, o primeiro que me ocorreu”. Ética e estética relacionavam-se para o escritor, sem contradição, como exigência constante da dignidade da vida e de respeito mútuo, ante o fulgor das diferenças.
UMA RARA COERÊNCIA Ao decidir terminantemente fechar a carreira política, o escritor percebeu a dificuldade de empreender uma campanha de desafronta ou de desforra, tanta tinha sido a intriga e a difamação de que fora alvo. E assim “empregou artes de ninguém saber nem suspeitar em mim o antigo chefe de Estado, o que me permite viver modestissimamente e em plena liberdade de movimentos”. E assim a existência voltou a ser propícia e feliz, sem motivo para mudar de rumo. Confessa ter saído de Portugal, a bordo do “Zeus”, sem um livro, sem um papel, sem um apontamento ou nota; nada que recordasse o antigo literato ou o político. E assim abriu na vida uma página perfeitamente em branco. Lia pouco, comia e bebia com apetite e proveito, dormia à noite em dois sonos de pedra, fazia uma hora de ginástica todas as manhãs, à tarde caminhava regularmente dez quilómetros, e os passeios a pé mereciam menção especialíssima, pois eram o que designava como eflorescência do dia. “Os museus, as igrejas, os monumentos abrem-se-me como outras tantas portas para o paraíso” … Além do espetáculo das ruas, olhava «para o céu, para o mar, para as montanhas, para a paisagem com a encantada curiosidade de um ressuscitado”. E escrevia a alguns amigos com a abundância. Assim consumia «à semelhança de certos animais que hibernam, a própria enxundia, adquirida com o magro chorume das leituras passadas, e repito invariavelmente ao fim de cada dia: ‘este já ninguém mo tira’». Ao lermos esta carta, compreendemos bem como o artista se mantinha desperto. E temos o supremo prazer de gozar o talento de um espírito superior. Em menino era sonâmbulo - tendo, quando “acordado, facilidade de desassociar a inteligência da sensibilidade”. E os seus leitores compreendem bem a abundância do verbo. “Amiúde mergulho nas recordações de viagem, e a sucessão das cenas e quadros esquecidos, que retomam a cor, é de uma riqueza e de uma exatidão assombrosa”. E, sem surpresa, ouvimo-lo: acompanhando visões de extrema precisão, vendo-o os poetas recitar versos que nunca soube; os filósofos discutir sistemas, que mal conhecia, os historiadores lembrando lutas, raças e reinados, a que jamais prestara atenção, tecendo enredos e sucessos verosímeis, embora nenhuma notícia certa deles tivesse … E seguia a música, a sensualidade e o amor. E assim se explica como foi sempre voltando à literatura, quase mesmo sem o desejar, em quinze anos de um exílio de criação fértil.
Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925) foi a referência fundamental do folhetim deste verão no CNC. Por isso destacamos a sua obra “A Saudade Portuguesa”, que permite conhecermo-nos melhor através da rigorosa análise desta mulher excecional.
Esta obra compõe-se do que a autora designa como divagações filológicas, designadamente em torno de Inês de Castro e do Cantar Velho «Saudade Minha - Quando te veria?». A segunda edição, revista e acrescentada coube à Renascença Portuguesa, no Porto, à Seara Nova, em Lisboa, e ao Anuário do Brasil do Rio de Janeiro. 1922. Os especialistas consideram o estudo de grande brilhantismo e profundidade, sendo dividido em nove capítulos, com um post scriptum e um vasto conjunto de anotações. Os capítulos têm os seguintes títulos: Inês de Castro: história e lenda - O drama inesiano ‘Reinar despues de morir’; A canção ‘Saudade minha - Quando vos veria?’; D. Sancho I e Maria Paes, a Ribeirinha; Saudosistas autênticos e apócrifos; O que é a saudade, linguisticamente; O que é a saudade, psicologicamente; Soledades; Cantares velhos; Motes e Voltas. Com recurso a uma segura hermenêutica, a autora analisa um grande número de textos da literatura popular e da literatura palaciana em que é usada a palavra saudade, desfazendo atribuições e datações erradas e iluminando, de forma inovadora, a história de Inês de Castro. Trata-se, pois de uma obra imprescindível para o estudo deste tema central da filologia, literatura e cultura portuguesas.
Na rua da Cedofeita, na cidade do Porto, a casa dos Vasconcelos era um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases do progresso baseado na cultura e na liberdade. O conhecimento sobre a realidade portuguesa de Carolina Michaelis enchia de espanto os seus leitores. É impressionante a lista dos trabalhos que publicou sobre história e crítica literárias. Lembremos os estudos sobre o "Cancioneiro da Ajuda" e o glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado. A literatura portuguesa foi um inesgotável campo para a sua investigação sobre as origens da poesia peninsular. Em 1901, D. Carlos concedeu a Carolina Michaelis o grau de oficial da Ordem de Santiago da Espada, como preito de homenagem ao seu labor científico. E em 1911, logo após a implantação da República, foi nomeada professora da nova Faculdade de Letras de Lisboa, lugar que não aceitou, por motivos familiares. No entanto, assumiu o encargo na Universidade de Coimbra, onde recebeu, em 1916, o grau de doutora honoris causa. Em 1923 foi-lhe outorgada idêntica honra na Universidade de Hamburgo. Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor, a sua vida demonstra a importância da ligação entre a opção pessoal e a vocação científica. Considerou a Saudade como um “traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas”, muito mais do que a Sehnsucht, característica da alma germânica. “Refletida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou do imperativo energético da atividade ponderada”, a palavra alemã teria “muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios”. “A saudade e o morrer de amor” são para a estudiosa “as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome”. Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e os livros que estilisticamente derivam dele, como a “Consolação de Israel” de Samuel Usque, as “Saudades da Terra” de Gaspar Frutuoso, as “Rimas” de Camões, os Episódios e as Prosopopeias de “Os Lusíadas”, as “Cartas da Religiosa Portuguesa” e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de Frei Luís de Sousa. Não faltam no Cancioneiro do povo; nem na sua fase arcaica, os reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é, nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até Pedro e Inês. E logo no alvorecer da poesia, surgiram naturalmente “lindos lamentos de amor e de ausência, como na singela composição, em que o rei D. Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: cuidado e desejo”.
Vendo a mestra com olhos de hoje, não passa despercebida a intenção claramente emancipadora da mulher que defendia a liberdade e a igualdade, a igualdade e a diferença como faces do mesmo espelho, nunca como realidades antagónicas. Como disse Gerhard Moldenhauer na oração fúnebre: “Quem, para mais conscientemente se orgulhar de ser português, alguma vez se interessou pela nossa herança espiritual, encontrou sempre no excecional espírito de Carolina Michaelis o mais amável dos mestres e o mais seguro dos guias”.
O falecimento com 94 anos de Hélène Carrère d’Encausse, Secretária Perpétua da Academia Francesa, autora de “L’Empire Eclaté”, (Flammarion, 1978) constitui oportunidade para homenagear uma referência maior da cultura contemporânea.
O falecimento com 94 anos da Secretária Perpétua da Academia Francesa constitui oportunidade de homenagear uma referência maior da cultura contemporânea, pela qualidade da personalidade e da obra da historiadora, mas também por ocorrer num momento em que os acontecimentos ligados à guerra da Ucrânia têm gerado uma perniciosa e injusta desconfiança relativamente à cultura russa, que é riquíssima e não pode confundir-se com as tentações do neoimperialismo de qualquer governação. Hélène Carrère d’Encausse deixou-nos uma obra muito importante, da qual resulta uma ideia fundamental – o reconhecimento da relevância da componente russa na História europeia. Ao contrário de um certo discurso radical russófilo, não é possível compreender a História da Europa e a cultura do velho continente sem o reconhecimento dos grandes autores de origem russa, na literatura, na música, nas artes ou no pensamento. A historiadora agora desaparecida deixou-nos uma obra muito rica, que demonstra a necessidade de construir a Europa do futuro, através de um entendimento da complementaridade das raízes euroasiáticas da nossa cultura da sua base indo-europeia. Haverá alguma dúvida sobre a importância de Tolstoi, Dostoievski, Chestov, Berdiaev, Tchaikovsky, Kandinsky ou Chagall na alma europeia? A guerra fria e a sua evolução perturbaram esse entendimento natural, mas não o podem destruir. Quando H. Carrère d’Encausse foi recebida na Academia Francesa em novembro de 1991, parecia abrir-se um novo horizonte, que o tempo esbateu. Então a empossada afirmou: “Faço parte de uma geração que, chegada à adolescência no final da última grande guerra, viu-se confrontada com uma infelicidade europeia. A Europa estava amputada de uma parte de si mesma, estava-se perante o Ocidente raptado, como afirmou Milan Kundera. Essa era a nossa perspetiva. Sabíamos que o passado estava abolido, e que o pensamento e os génios antigos não podiam ter o direito de cidade, a não ser para legitimar uma utopia assassina. (…) Dezenas de milhares dos nossos semelhantes foram lançados no inferno gelado dos campos, com a horrível e degradante obrigação de proclamar que essa infelicidade era uma verdadeira felicidade”. Então, no modesto lugar de estudiosa da História, a investigadora disse ter-se esforçado para contribuir a fim de que fosse preservada a memória desses homens e povos que ficaram privados dela. Ora, com o fim do império soviético, um sonho de liberdade poderia estar a realizar-se. Mas a académica não tinha demasiadas ilusões. Nada seria simples nesta nova “Primavera dos Povos”, que apenas acabava de nascer. Haveria, por certo, o hábito do ódio que alimentaria muitos conflitos, e por isso, apesar dos escombros, acreditava nos homens de boa vontade, que tentariam, apesar do caos e da miséria, reconstruir um universo onde a dignidade humana recuperasse o seu lugar.
PALAVRAS PROFÉTICAS
Estas palavras soaram a proféticas, já que o tempo recente confirmou a incerteza e o medo…. Nascida em Paris, na família Zourabichvili, a 6 de julho de 1929, Hélène teve uma infância dividida entre a memória grandiosa do tempo dos Romanov e as provações da condição de emigrados pobres da revolução bolchevique. A família instala-se em França, vinda da Geórgia, com passagem por Istambul, depois da invasão da República Democrática da Geórgia pelo exército russo no fim do inverno de 1921. A jovem aprende a ler em francês, mas também em russo. Seu pai, Georges, filósofo diplomado em economia política começa por ser condutor de táxi em Paris, antes de criar uma empresa de importação-exportação em Bordéus, mas o domínio de cinco línguas levam-no a ser intérprete durante a ocupação pelas autoridades alemãs, facto que levará ao seu desaparecimento no fim da guerra. Hélène vem para Paris com sua mãe, vivendo de início na comunidade ortodoxa russa. Nesse tempo, Maurice Bardèche, cunhado de Robert Brasillach, dirá dela: “Tinha uma alma de jovem heroína, mas também era realista, decidida e lúcida”. Estudante bem classificada no Liceu Moliére, obtém uma formação sólida que prossegue no Instituto de Estudos Políticos. Sendo apátrida, obtém a nacionalidade francesa quando chega à maioridade, recordando essa circunstância em 1987 quando participa na Comissão da Reforma do Código da Nacionalidade. Casa-se em 1952 com Louis Carrère d’Encausse e interessa-se pelo estudo dos povos da Ásia Central e dos emiratos uzbeques, desde Alexandre II a Lenine, o que constituirá tema da sua tese de doutoramento, sob a orientação de Maxime Rodinson (1963). A editora Armand Colin publica o estudo sob o título “Reforma e Revolução entre os muçulmanos do Império Russo: Bukhara 1867-1924” (1966). A historiadora aproveita esse tempo para viajar pelas repúblicas periféricas da União Soviética, do Cazaquistão ao Afeganistão, passando por Tachkent, atual capital do Uzbequistão. Os seus estudos revelam-se fundamentais, pelo conhecimento das populações e pelo entendimento aprofundado de meio século do sistema soviético, bem evidenciado na obra “A União Soviética de Lenine a Estaline 1917-1953” (ed. Richelieu, 1972), reeditada em dois volumes pela Flammarion em 1979, centrada no tema “a ordem pelo terror”. Contudo, depois de publicar o estudo sobre a política soviética no Médio Oriente (1955-1975), em 1976, é com a saída do célebre “L’Empire Eclaté” (Flammarion, 1978) que Hélène Carrère d’Encausse se torna uma figura mediática de primeiro plano. Apesar de não se concretizar a sua tese fundamental – o enfraquecimento da União Soviética pela pressão demográfica das repúblicas asiáticas muçulmanas – a verdade é que a contestação política na Polónia com o Sindicato Solidariedade e a ação de Lech Walesa, bem como a eleição de João Paulo II, um polaco, como Papa anunciam mudanças profundas no mundo soviético, que trazem os temas da historiadora para a ribalta. Um significativo conjunto de estudos ilustram a urgência dos temas que a ocupam: “O Poder Confiscado, governantes e governados na URSS” (1980); “O Grande Irmão: a União Soviética e a Europa sovietizada” (1983); “Nem Guerra nem Paz: o Novo Império Soviético ou do bom uso da distensão” (1986), “O Grande Desafio: os bolcheviques e as nações 1917-1930” (1987), além de um estudo menos conhecido, mas essencial, sobre a desestalinização de Krutchev, que mais tarde constituirá novo sucesso – “A Segunda Morte de Estaline” (2006). Mas a fulgurante síntese intitulada “Le Malheur russe: Essai sur le meurtre politique” (Fayard, 1988), se lida atentamente nos dias de hoje, faz luz sobre a crise russa. É verdade que a análise do poder sanguinário russo apresenta lacunas, mas a transposição da experiência soviética para história ancestral do czarismo em “Os Romanov – Uma dinastia sob o reino do sangue” (2013) obriga a tentar entender o nevoeiro espesso que rodeia a ação de Vladimir Putin. Trata-se de uma situação muito complexa, a exigir a recusa de qualquer simplificação. Foi Henri Troyat o grande defensor da eleição de Hélène Carrère d’Encausse para a Academia, sendo eleita em 1990 e recebida poucos dias depois da morte da União Soviética (1991). Para o punho da sua espada, da autoria do artista da Geórgia Goudji, escolhe o versículo bíblico “Bem-aventurados os pacíficos”. Mulher de saber e autoridade deixa na sua obra vasta muitas pistas relevantes para a compreensão da gravíssima crise europeia e para as suas saídas, obrigando à recusa do reino do sangue e à salvaguarda da dignidade, tão esquecida… Grande mulher das artes e da cultura, como afirmou Jack Lang, manteve uma coerência extrema no seu pensamento sobre a necessidade de pensar no futuro da Europa devendo ser um fator essencial de paz, devendo estreitar-se os laços culturais em todo o continente, com recusa do regresso da lógica do “homo sovieticus” e da lembrança em Praga de 1968…
O “Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa” de Aldónio Gomes (de saudosa memória) e Fernanda Cavacas constitui um documento fundamental para a compreensão da diversidade da Língua Portuguesa.
O CASO DE ALFREDO MARGARIDO
Se nos ativermos ao «Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa» do mestre Aldónio Gomes (nome que não pode ser esquecido, e cuja obra continua a exigir a maior atenção) com Fernanda Cavacas, Alfredo Margarido usou na sua extensa e profusa obra, além do seu próprio nome, pseudónimos como Lúcio Câmara, Manuel Kandiba e Paulo Saraiva, sendo inicialmente técnico agrícola e jornalista, e depois licenciado e doutorado em França. Expulso de Angola por motivos políticos, viveu muitos anos em Paris, tendo sido investigador, pensador, poeta, romancista, ensaísta e crítico literário. «É reconhecido como um dos históricos dos estudos literários africanos com Mário de Andrade e Manuel Ferreira». E como não lembrar Manuela Margarido, sua primeira mulher, figura essencial nas lusofonias africanas, que conheci pessoalmente na UNESCO, e que teve uma presença forte na ligação à cultura africana de Alfredo Margarido?
Eugénio Lisboa bem o definiu: «Era, como os melhores, um monte de contradições: um rezingão inteligente que disfarçava os seus afetos, um cultor da palavra acerada e perscrutadora que escondia, com pudor e alguma malícia, o seu talento de artista plástico, um erudito sólido que fazia, com desenvoltura, poesia e romance, um provocador profissional que amava o convívio e sabia cultivar as amizades, um professor que gostava de desarrumar a sabedoria estabelecida e convidava à irreverência fundamentada, em suma, um cavalheiro de opinião diferente, sempre preparado para nos contradizer, com um sorriso malicioso e uma voz mansa que amaciava o tumulto». Dificilmente se poderia dizer melhor. Estávamos diante de uma inquietude iluminante, de quem tudo lia e por tudo se interessava. A sua obra que tem contado com a extraordinária apresentação de Isabel Castro Henriques, ilustra bem essa faceta de conhecimento e desassossego. Trata-se de um repositório tocante e exaustivo, onde podemos acompanhar um percurso extraordinário de quem foi «um dos pensadores mais lúcidos da nossa realidade» (Perfecto Cuadrado).
UM LONGO DESASSOSSEGO
Falei longamente com o meu querido amigo Eduardo Lourenço sobre Margarido. Era sempre um fascínio ter esta companhia, depois de termos andado às voltas com o papel dos mitos na interpretação da História. Com uma atenção especial a todos os pormenores, foi exprimindo uma sincera admiração pela capacidade de compreensão e de argúcia de Alfredo Margarido, sempre comparando a evolução dos textos e da reflexão com a belíssima obra gráfica. Há uma rara sensibilidade manifestada nos desenhos expostos, o surrealismo é assumido com doçura e ironia, o colorido suave ilustra uma espécie de representação onírica da literatura – o que entusiasma Eduardo: aqui, os vários heterónimos pessoanos num turbilhão ou num caracol de cabeças; acolá Caeiro pastor de rebanhos, mais adiante Feernando Pessoa passeando sobre os telhados ou segurando um balão… Luciana Stegagno Picchio fala de «uma notável técnica de aguarelista», que aproveita «a lição surrealista, modalidade portuguesa de uma geração ilustrada por Alexandre O’Neill ou um Mário Cesariny».
Entre a descoberta dos textos, das referências, das pequenas e grandes audácias, os desenhos entusiasmam o visitante. Eduardo Lourenço recorda o primeiro contacto, no já distante ano de 1953, através de «Poemas com Rosas». Depois lembra o surrealismo em Luanda, com Cruzeiro Seixas («o Margarido era muito sociável e eu preferia o sol e o mar, encontrar um estranho búzio, as noites e a gente jovem»). Perfecto Cuadrado fala da singularidade da expressão artística de Alfredo Margarido. «Lúcido, crítico e livre, poeta no olhar, no pensar e no dizer uma realidade que continua a precisar de uma profunda reabilitação desde os territórios concêntricos e sucessivos do moral, do ético, do político e do estético». E convém lembrar Teixeira de Pascoaes, que tanto entusiasmou o jovem A. Margarido - «a luz é cada vez mais luz». Eduardo Lourenço recorda a importância e o prestígio dos textos no «Diogène» (como «Incidences socio-economiques sur la poèsia noire d’expression portugaise» de 1962) - e vem à baila Marc Ferro a dizer: «Il avait la sagacité de Fernand Braudel, l’inventivité d’Eric Hobsbawm, la curiosité multiforme de Roland Barthes». Lá estão os «Cadernos de Circunstância», com Manuel Villaverde Cabral e Fernando Medeiros.
Os textos têm uma rara pertinência, e ao vê-los em conjunto, percebemos que o autor se manteve sempre atento aos novos fenómenos, sabendo que o desenvolvimento moderno precisa de autonomia e diálogo, de singularidade e reciprocidade. E Eduardo Lourenço aponta-me uma frase, que obriga a um sério repensar. Sinto que se coloca abertamente ao lado de Margarido: «A nossa modernidade, criada pelas independências africanas, obrigou o país a cortar uma parte substancial dos seus laços com o Atlântico, que foi sempre o Oceano das nossas grandes incursões, mesmo se o Índico não pode ser afastado desta reflexão (…). A invenção da lusofonia procura com algum desespero devolver-nos uma parte desse espaço (…). A maior parte dos missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português». Este é um tema fulcral. E. Lourenço sente que ali estão as suas preocupações fundamentais: «A língua nasceu em Portugal e pertence aos portugueses. Não se consegue aceitar o princípio simples de que a língua pertence àqueles que a falam! Aceitemos a leitura crítica do passado, o que será sempre ocasião para impedir que alguns dos nossos melhores vícios se transformem em virtudes». É esse aguilhão da crítica que tem de funcionar, para tirar as lições dos erros e para fazer dos mitos motivo de compreensão.
Recordamos o testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023).
UMA ESTRANHA ESCOLHA
Conta-se que um dia, em 1995, a Cinemateca pediu a Agustina uma sugestão de filme para apresentar na iniciativa “Terças-Feiras Clássicas”. Então sugeriu o filme As You Like de Paul Czinner, de 1936, raríssimo, e que nunca fora exibido naquelas sessões cinéfilas. Era uma opção misteriosa, que causou surpresa entre gente muito habituada a este género de escolhas. Moveram-se céus e terra, e lá apareceu a cópia. Quando houve oportunidade, perguntaram qual o motivo de tão inusitada escolha. E a resposta veio para espanto de todos. Não se tratava de qualquer memória de algo que a escritora tivesse visto alguma vez, nem se tratava de lembrar a primeira interpretação de Sir Laurence Olivier de Shakespeare. Não, Agustina nunca tinha visto o filme e tinha curiosidade em vê-lo pela primeira vez. Interessava-lhe ver o desempenho de Elisabeth Bergner, de quem ouvira falar, quando teria oito ou nove anos, como uma grande atriz, superior à Garbo, e desejava confirmar com os próprios olhos e ouvidos o que ouvira aos amigos de seu Pai, no tempo em que este a levava às matinées do Passos Manuel no Porto. Era assim Agustina, sempre desarmante na enorme capacidade de surpreender.
O testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023), confirma que Agustina Bessa-Luís é um caso especial. “Lembro a Helena e o Alberto Vaz da Silva, o Manuel Lucena e o João Bénard da Costa, que não parava de falar do prodígio da inadjetivável escrita da autora d’A Sibila”. Jorge Alves da Silva, João Botelho e Manuela Viegas juntavam-se a tal grupo de admiradores. “Descíamos juntos a Rua da Misericórdia, ao Chiado, pelo passeio da Guimarães na expectativa de ver exposto na vitrine o último romance de Bessa-Luís”. E havia histórias contadas por Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, do tempo em que visitavam a escritora na sua casa no Porto. E temos de lembrar, na continuação deste preito de homenagem, o outro caso de uma relação contrastada que tem a ver com Manoel de Oliveira. Tratou-se de Francisca. Sem entrarmos nas clássicas discussões sobre as soluções de títulos e de enredos, Agustina teria gostado mais que tivesse sido assumido o título do romance original, Fanny Owen, mas Oliveira preferiu a proximidade, até para que o ambiente romântico ficasse mais evidente. Para o cineasta haveria que garantir a fidelidade aos textos e à palavra, mas igualmente o recurso à magia da representação. Mais do que na representação do teatro, teríamos a fixação das imagens em movimento, suscetíveis de ser repetidas, como se o tempo pudesse ser revisto e a reflexão tivesse uma nova oportunidade. A cena recordada é a dos momentos finais da protagonista no suspiro derradeiro: “Não há por aí um homem que ame?”. Paulo Rocha estava investido no papel de médico e Agustina, fora do plano de cena, assistia ao desenrolar da cena. Rita Azevedo Gomes ocupava-se em ver o desenrolar da filmagem – “a voz ondulada do Paulo Rocha; o riso menineiro e sagaz de Agustina”. E depois importaria que o cerimonial do passamento fosse adequado e sentido: “Os pés nus têm de ficar descobertos”.
LEMBRAR “FRANCISCA”
Teresa Menezes, no papel de Francisca, deveria aparecer como alguém que assumia em pleno o drama representado. E não poderia esquecer a ligação entre as palavras escritas e a vida vivida e mortal. “A alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é um vício”. De facto, falar de Agustina é assumir um paradoxo, uma aposta, a capacidade de ver o avesso e o direito das coisas. Por isso mesmo, ela se lembrou de Elisabeth Bergner em As You Like, preferindo falar não de algo que pudesse conhecer realmente, mas de uma impressão original, apreendida sem preconceitos. Por certo que teria ouvido falar das lendas de Bergner (até nos misteriosos ecos no celebrado All About Eve de J. Mankiewicz), mas o que lhe interessava verdadeiramente era cultivar a surpresa em diferentes registos – para si própria e para os seus interlocutores. Frederico Lourenço, não por acaso, fala de «um percurso, afinal de contas, demasiado desconcertante na sua mescla de arrojo e de convenção para poder almejar esse estatuto incolor, outorgado aos pouquíssimos escritores que têm o azar de ser aclamados por todos os críticos, que é o de serem ‘pardamente consensuais’».
Rita Azevedo Gomes lembra o seu filme A Portuguesa, baseado num texto de Robert Musil. Sobre esse conto, Agustina disse em 1966: “como quem atinge um segredo através do anódino, ele aflorou como ninguém essa sombra melodiosa e fria”. Mas que fique esclarecido: não é infiel a portuguesa; contudo é mais do que isso. “A fidelidade da portuguesa é o que aniquila o marido; é uma fidelidade que não tem nada a ver com a mesura da virtude nem com o reflexo do tédio. “É um estado de graça, algo blasfemo talvez e não se sabe desafiador”. Para quem lê o conto e vê o filme encontra imbrincados dois caminhos paradoxais – a virtude e a sua recusa. Musil terá ido buscar esta portuguesa ruiva ao extraordinário quadro póstumo de Ticiano, feito por encomenda de Carlos V, da muito bela Imperatriz Isabel de Portugal, sentada “como quem espera a confirmação de uma notícia importante, sem ansiedade e também sem abandono”. E, com base nesse conto, emerge um diálogo misterioso escrito por Agustina, a pedido da realizadora. Musil dá-nos o enigma e a romancista encarrega-se de o completar com outra interrogação perturbadora: “Dizem que tenho amor pelos gatos que têm um pacto com o demónio. Os gatos têm uma alma de filósofo. É só isso. O diabo não é filósofo porque inveja Deus e a criação do mundo”. Tudo, afinal, se liga. Agustina era portentosa na definição emblemática dos temas. O lançamento das narrativas envolvia um surpreendente jogo de ideias e de palavras. Por isso, o testemunho de Rita Azevedo Gomes permite compreender encontros e desencontros na representação das palavras. É o princípio da incerteza que funciona, há o ganhar e o perder e os dois eram fascinantes para Agustina. “Portugal é tímido e ama a sua rotina: preza uma felicidade que tem de pagar pelo preço das suas submissões” (As Fúrias). Tinha, ao invés, o prazer da audácia. E volto a Frederico Lourenço: “À cigarra compete apenas concentrar-se no seu próprio canto, independentemente da zurraria dos burros que criticam (cito aqui os termos bem conhecidos do poeta helenístico Calímaco). Lição em que Agustina foi exemplar».
Como acontece no mês de agosto, indicamos hoje vinte e cinco livros recentes, que aconselhamos aos nossos leitores. Como habitualmente a ordem indicada é arbitrária. Todos os livros indicados merecem especial atenção.
(1) O recente desaparecimento de Milan Kundera, leva-nos a aconselhar em primeiro lugar, da D. Quixote, “Um Ocidente Sequestrado”. “No mundo moderno, onde o poder tem tendência a concentrar-se cada vez mais nas mãos de alguns grandes, todas as nações europeias arriscam tornar-se em breve pequenas nações e sofrerem a respetiva sorte”. Eis o que importa reter no cenário de guerra em que nos encontramos. As incertezas são evidentes, e os próximos tempos vão exigir soluções que preparem os cenários que se seguirão à invasão russa da Ucrânia.
(2) Como temos insistido, a obra de Timothy Garton Ash “Pátrias – Uma História Pessoal da Europa” (Temas e Debates) constitui uma reflexão fundamental que nos permite compreender as grandes tendências na vida europeia e mundial na presente conjuntura. Depois da queda do muro de Berlim, as mudanças ocorridas trouxeram surpresas significativas que ainda darão lugar a novas evoluções difíceis de prever.
(3) A Bertrand acaba de publicar “O Eterno Declínio e Queda de Roma”, de Edward J. Watts: “há muitos séculos que o declínio de Roma é uma espécie de trauma que está no centro da cultura ocidental e que por isso tem sido aproveitado por líderes e governqantes como argumento principal para tentar inverter alguma situação com a qual não concordem” O livro procura repôr a verdade e destrói vários mitos.
(4) De João Tordo, a Companhia das Letras publicou “Uma Valsa com a Morte”. “Que fazer da vida, quando a presença sombria, intangível e por vezes cómica da morte nas nossa vidas é um facto incontornável?”.
(5) “Toda a Prosa” de Manuel Alegre (D. Quixote), com prefácio da Paula Morão, é um dos acontecimentos literários do ano de 2023, uma vez que aqui podemos reencontrar a pujança criativa de um dos mais importantes autores portugueses contemporâneos.
(6) A Cavalo de Ferro publica de Júlio Cortázar o clássico “Bestiário”.
(7) A D. Quixote republica “Imperatriz” de Pearl Buck, biografia romanceada da Viúva Cixi, concubina do imperador Xianfeng, depois líder da dinastia Qing.
(8) “Direitos Humanos” de Francisco de Bethencourt publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos é uma obra atualíssima, num tempo em que assistimos a preocupantes retrocessos na vida democrática nas mais inesperadas situações. Daí a necessidade de sermos mais exigentes na criação de instituições e de modos de melhor respeitar o universalismo da dignidade humana.
(9) Jorge de Sena conta com a reedição de “Andanças do Demónio” (na Guerra e Paz). Oito peregrinações aos domínios do demo e do desconhecido.
(10) A Cavalo de Ferro publica “Retrato de Grupo com Senhora” de Heinrich Böll (de 1971) um dos mais belos romances alemães do pós-guerra.
(11) José António Barreiros publicou na Oficina do Livro “O Piloto de Casablanca”, onde conta a vida do piloto José Cabral, que bem poderia ter sido protagonista na viagem do mítico filme com Bogart e Bergman.
(12) “O Quarto de Bebé” de Anabela Mota Ribeiro (da Quetzal) é um testemunho emocionante de um encontro entre o drama e a esperança da vida.
(13) A Gradiva publica “Espelho Imaginário” de Eduardo Lourenço constituído por um notável conjunto de ensaios sobre a Arte Contemprânea.
(14) A Contraponto publica a reedição de “Tempos de Eduardo Lourenço” da autoria de Manuela cruzeiro, Maria Manuel Baptisa e Fernanda de Castro.
(15) Ruy Castro publica na Tinta da China “Vida por Escrito” da autoria do biógrafo de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Para o escritor a única arma do biógrafo é a verdade.
(16) A D. Quixote publica de Lívia Franco “Uma Família Monárquica na Guerra da República”, saga portuguesa que permite compreender melhor o período que vai da queda da monarquia constitucional ao fim da Grande Guerra.
(17) A Guerra e Paz publica de Isaiah Berlin “Esperança e Medo – Dois Conceitos de Liberdade”, que contém um enaio autobiográfico e o célebre ensaio “O Ouriço e a Raposa”.
(18) José Mattoso, que nos deixou há pouco, escreveu “História Contemplativa” editada por “Temas e Debates”, obra essencial para a compreensão da Memória histórica e do Património Cultural.
(19) A Imprensa da Universidade de Lisboa publicou um clásico de Edmund Wilson de 1940, que constitui uma história intelectual das ideias revolucionárias desde 1789 até à chegada de Lenine em 1917 – “Rumo à Estação da Finlândia”. É uma leitura fascinante.
(20) Ana Paula Tavares editou na Caminho “O Sangue da Buganvília”, um livro poderoso desta importante escritora angolana.
(21) João Carlos Espada assina na D. Quixote “Liberdade como Tradição – Um Olhar Euro-Atlântico sobre a Cultura política marítima de língua inglesa”.
(22) José Gardeazabal escreveu “A Mãe e o Crocodilo” na Companhia das Letras. O cenário é a Europa Central e de Leste com todos os perigos e dúvidas. Vladimir confronta-se com uma história de ocultação.
(23) A Relógio d’Água deu à estampa “Os Poemas” de Konstantinos Kavafis, com tradução e prefácio de Joaquim Miguel Magalhães e Nikos Pratsinis.
(24) A Assírio e Alvim publicou “Poesia” de Luiza Neto Jorge.
(25) Adília Lopes escreveu “Choupos” com edição Assírio e Alvim.
Ao falar de identidade nacional, José Mattoso lembrava a anedota que se contava do rei D. Luís quando, já bem adiantado no século XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou se eram portugueses e a resposta foi bem clara: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa de Varzim”.
Com efeito, é sempre complexo o processo de definição do que designamos por identidade nacional. Ela é inseparável de uma perceção coletiva. Por isso a consciência histórica é fundamental, correspondendo à noção de apropriação do poder, tendo no caso de Portugal o Estado precedido a Nação, num processo lento e gradual. Esta anedota serve para se perceber que, longe de um entendimento fechado, estamos perante uma realidade complexa e aberta, que no caso português se traduz num curioso cadinho que, na diversidade, se uniformizou no território, na fronteira, na língua e numa construção convergente realizada de norte para sul e de sul para norte. “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida” – disse-o José Mattoso (cf. A História Contemplativa – Ensaio, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2020). “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida. Uma verifica os vestígios deixados pelo que aconteceu e relaciona-os entre si para representar o que já não existe. A outra é o conjunto dos próprios acontecimentos, que se sucedem no tempo e por isso podem ser recordados por quem os viveu, mas já não existem. Ao escrever a História construímos uma representação, ou seja, uma réplica do que aconteceu. Com efeito, os acontecimentos deram-se em momentos fortuitos, que não podemos representar porque a cada um deles segue-se outro momento”. A História-escrita não explica a reação dos poveiros. E para o historiador o encadeamento dos factos corresponde a operações mentais. Daí a necessidade de sínteses, de classificações, de agrupamentos racionais. Contudo, perante a complexidade temos dificuldade em distinguir o individual e o coletivo, o nacional e o internacional, os fatores sincrónicos e diacrónicos. Assim, a organização do tempo revela-se importante não apenas para distinguir a sucessão dos acontecimentos, mas também para permitir a comparação com o que ocorre noutros horizontes e que converge e diverge entre si. Como há um movimento permanente e simultâneo da sociedade humana, só podemos situar-nos na razão de ser das coisas a partir das referidas operações mentais.
ANÁLISE CERTEIRA E INOVADORA José Mattoso fez uma análise certeira e inovadora, usando uma metáfora feliz: a História-escrita assemelha-se à maquette de um edifício que já não existe, mas que idealizamos e pode ser reconstruída. A História-vivida não tem lugar na realidade, desapareceu, mas pode ser representada pela História-escrita, como operação que procura ser verosímil. É algo que já não existe, uma vez que está a ser apenas objeto de uma projeção – e, sendo-o. Move-se, modifica-se sob o risco de permanente anacronismo, uma vez que a crítica é influenciada pelas mentalidades. Pode aproximar-se da objetividade, sem certezas, mas não está preservada da neutralidade. Lembremo-nos dos conceitos de identidade e de património cultural. José Mattoso teve o cuidado de encarar tais realidades como elementos complexos. “Quando o pensamento moderno se apropriou da História para reconstituir o passado, procurou rever as histórias nacionais para excluir as lendas e milagres, mitos, revelações e fantasias, descobrir causas e efeitos, e enfim impor a racionalidade e a lógica das narrativas anteriores”. Houve, assim, a tentação de reduzir tudo à racionalidade e à mentalidade ocidental. A diversidade, a recusa da superficialidade das análises, a exigência da compreensão do contexto – já que os factos dependem não só das decisões individuais ou coletivas, mas de fatores estruturais, antes desvalorizados. O tempo curto e o tempo longo têm de se articular – ensinou-o Braudel. E a memória recorda o que aconteceu, representando-o, ainda que de um modo fragmentado. No caso dos poveiros, temos a experiência da pesca e do conhecimento do mar no tempo longo e a vulnerabilidade das correntes e da meteorologia, bem como a maior ou menor presença do pescado no tempo curto, os economistas chamam-lhe estrutura e conjuntura. Mas como poderemos analisar a vida humana transcendendo o efémero? E Paul Ricoeur leva-nos para um caminho em que possamos usar uma mediação imperfeita ou incompleta entre o futuro, o passado e o presente. E se falamos de mediações e de instituições estamos no cerne da interrogação sobre como podemos colocar as pessoas como protagonistas da organização da sociedade e da realização do bem comum.
CHEGAR À CONTEMPLAÇÃO Para José Mattoso, chegamos assim à contemplação, que é o único modo de entender a unicidade e a coerência do ser, compreendendo a diversidade e a complementaridade, a prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão, a consideração do método que valoriza o contexto e o conjunto, o reconhecimento do elo entre a unidade e a diversidade da condição humana, além da aprendizagem de uma identidade planetária, da exigência da atenção ao inesperado e ao incerto como marcas do nosso tempo, da educação para a compreensão mútua entre as pessoas de pertenças e culturas diferentes e do desenvolvimento de uma ética do género humano de acordo com uma cidadania inclusiva – em que insiste Edgar Morin. “Ao captar a realidade pluridimensional do Homem no tempo, nasce nele o verbo silencioso forte de imagens, símbolos e alegorias que não o esgotam, mas indicam o sentido da vida humana sobre a terra, tudo o que se passa no tempo – os grandes impérios, o sofrimento dos excluídos, a renúncia aos bens terrenos, o amor e o desejo, o riso das crianças que brincam no campo, a exploração da terra, a composição de uma sinfonia musical – enfim tudo o que é real. Tudo tem sentido, tudo pode desencadear a exaltação de quem descobre esse mesmo sentido”. E eis-nos diante do paradoxo que é a existência humana, evidenciado no mistério revelado na fórmula de Pedro Calderón de la Barca de que “a vida é sonho”. A História-escrita e a História-vivida explicam uma exigência de compreensão da importância do tempo e da reflexão, da contemplação e do mistério… José Mattoso, foi um profundo renovador da moderna historiografia em Portugal, sendo exemplar nos novos métodos e na revelação de muitos enigmas, renovando a investigação como um campo de complexidade e de compreensão, até para se entender a necessidade de uma melhor vivência democrática, bem como da defesa efetiva do património cultural e de uma relação europeia e global mais profícua.