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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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EPÍLOGO

 

E chegamos ao termo deste folhetim de Verão de 2023, para o qual escolhemos como tema a fantasmagoria. O que significou essa escolha? A compreensão de que ao falar de literatura estamos sempre a falar de quem, apesar de já não nos acompanhar fisicamente, persiste em estar connosco. Que é a memória? Foi Mia Couto quem um dia disse, relativamente a seu Pai (que aqui lembrámos), que a presença e a memória daqueles que nos acompanharam não pode cair no esquecimento. A lembrança, acompanha-nos sempre. E tivemos a agradável surpresa assistir a um fenómeno inesperado e feliz. Carolina Michaelis de Vasconcelos tornou-se no folhetim deste ano uma heroína viva. De súbito (e sem que pudéssemos suspeitar ou adivinhar) criou-se um movimento espontâneo de milhares de opiniões, de elogios, de saudades a dizer que há mais de cem anos houve uma mulher que acreditou na audácia de dizer que a liberdade e a igualdade vivem de braço dado e que, indo às raízes da nossa cultura, a ideia de saudade não era uma melancolia triste, mas um apelo de esperança. E se Carolina o disse ao estudar desde os trovadores até à lírica moderna, a verdade é que fomos até ao caminho audacioso de Aurélia de Souza, que com um dedo determinado nos indicou a via de uma cultura viva, moderna, apaixonada…

E foi essa paixão que uniu os fantasmas que fomos encontrando – desde Bernardim Ribeiro a Diadorim, de Gil Vicente à Joaninha dos Olhos Verdes (e até poderia ter sido a Morgadinha dos Canaviais), desde as almas descobertas por Ruben A. ao cair da noite até ao crioulo de Germano Almeida ou de Nhô Baltas, desde a língua mirandesa até às gaitas de foles e aos pauliteiros… E nos confins da Ásia, descobrimos mercadores e missionários a papiar a nossa língua franca, e para maior surpresa Fernão Mendes Pinto tornou-se o verdadeiro intérprete de João de Barros, o Velho, e de Diogo do Couto. E se Garcia de Orta descobriu tudo no Colóquio dos Simples, D. João de Castro revelou os mistérios do magnetismo e importou para a Europa as mais belas plantas da Ásia, enquanto Pedro Nunes abriu os caminhos da navegação pelos números e pelos astros. E de súbito ouvimos:

“O Portugal futuro é um país
Aonde o puro pássaro é possível
E sobre o leito negro do asfalto da estrada
As profundas crianças desenharão a giz
Esse peixe da infância que vem na enxurrada
E me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
É essa a forma do meu país
E chamem elas o que lhe chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
Ter a oeste o mar e a espanha a leste
Tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
E na avenida que houver à beira-mar
Pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
Mas isso era o passado e podia ser duro
Edificar sobre ele o Portugal futuro.”

 

Sim. Aqui está o enigma todo, que Carolina Michaelis procurou encontrar, sem melancolia, mas com o entendimento de que Amadis e Binmarder eram a matéria-prima que fazia deste cadinho um conjunto que permitia fazer sonhar com Pasárgada, sem esquecer os diálogos entre Todo o Mundo e Ninguém com as risadas em fundo de Maria Parda e com as revelações de Frei Dinis. “Mudam-se os tempos, muda-se a vontade; muda-se o ser, muda-se a confiança” … Mil tentativas há para definir a cultura, mas ninguém o fez melhor do que o nosso maior: “E afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor espanto, /Que não se muda já como soía”. Eis por que não poderíamos ter pensado este folhetim senão com fantasmas, sérios, presentes e poéticos, capazes de dizer: “Sonho que sou um cavaleiro andante, / Por desertos, por sóis, por noite escura, / Paladino do amor, busco anelante / O palácio encantado da Ventura”. Mas, em volta da Torre que imaginámos, mesmo escura, mesmo vazia, reuniam-se os antigos familiares “primos vestidos em séculos diferentes e com bigodes conforme a época”. E eis-nos perante o inefável Dom Raymundo, poeta e primo de Dom Afonso Henriques. Não foi por acaso que começamos por ele, ao lado de quem combateu contra os leoneses. Por isso aprendemos o mirandês. E o cavaleiro das aventuras percorreu os montes com Vilancete (que outro nome poderia ter o ginete?). O grande garrano da Ribeira de Lima acompanha-nos, seguido do falcão Abelardo, fiel auxiliar da nossa caça. E para compor o magnífico cenário, eis D. Mafalda, vestida a rigor, com os modelos aconselhados por Garrett, o janota, com desenhos de Watteau e Fragonard e a aprovação de Beckford, mas igualmente a princesa Brites, e sobretudo Madeleine, “prima que veio de Paris cheia de cores”, além de Frey Ciro, com cheiro de santidade e da Bruxa de São Semedo. Era lá possível viver-se sem um bruxedo a sério? Há fantasmas? Não há uma dúvida. Eles encontram-se onde menos se espera. Manuel Bandeira demonstrou-o. «E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d’água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada». Moral da história? Há sempre mais alguma coisa a contar. Percorra-se, por isso, de novo, cada um dos capítulos do folhetim e veja-se que todos contêm enigmas por resolver…

 

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APÊNDICE D

DEDO DE AURÉLIA (O)

 

Como poderíamos aproximar-nos do términus deste folhetim, depois da presença tão forte de Carolina Michaëlis, sem chamarmos à ribalta Aurélia de Souza (1866-1922)?  É uma das personalidades mais marcantes da arte portuguesa, na transição do século XIX para o século XX. A sua obra assume os grandes temas da pintura europeia da época, sendo de destacar a utilização continuada do autorretrato ou da autorrepresentação que se alarga, à semelhança com o que ocorre com os maiores pintores, à construção teatral e onírica de narrativas que envolvem a casa de família e as pessoas das suas relações. Acrescente-se que outro aspeto original da obra de Aurélia é a prática da fotografia como componente, com percursor grau de autonomia, do extraordinário trabalho da pintura.

Não obstante a sua ligação umbilical ao Porto, Aurélia de Souza nasceu em 1866, no Chile, filha de emigrantes portugueses. A artista mudou-se com a família ainda criança para o Porto, sendo sempre considerada à frente do seu tempo, todavia nunca casou, nem teve filhos.

Aurélia foi aluna brilhante da Academia de Belas Artes do Porto e completou a sua formação com uma estada em Paris onde frequentou a Académie Julian (acompanhada pela sua irmã, também pintora, Sofia de Souza). Bem relacionada com o meio artístico e cultural do Porto, participou em exposições em Lisboa, na atitude determinada de se afirmar como uma pintora profissional num meio predominantemente masculino em que as mulheres artistas em princípio não deviam ambicionar mais do que o estatuto subalterno de amadoras.

Aurélia de Souza é um caso especial no panorama da arte portuguesa de finais do século XIX e inícios de XX. Ao contrário de outras mulheres artistas, com quem compartilhou talento, esforço e coragem, a sua vida discreta apenas foi contrabalançada por uma obra que nos surpreende sempre. Uma recente mostra no Museu Soares dos Reis, com curadoria de Maria João Lello Ortigão de Oliveira, apresentou cinco núcleos. O primeiro, “Vidas”, tratou essencialmente do retrato na obra da pintora, correspondendo ao vetor fundamental da sua produção. No segundo, “Espaços”, integraram-se os locais de intimidade que refletiram o cenário a partir do qual teve lugar grande parte da vida de Aurélia de Souza e dos seus talentos na Quinta da China com vista para o Douro. No terceiro núcleo, propunham-se “Temas”, numa obra muito rica que registou uma grande variedade temática de acordo com a grande amplitude dos seus interesses. Finalmente, o último núcleo da exposição, “Cores”, dedicado à exploração do eu, do autorretrato e da autorrepresentação, permite entender a paleta plural usada pela pintora, perante a variedade das paisagens. E a produção de Aurélia de Souza atinge o auge no célebre “retrato do Casaco Vermelho”, finalizando o percurso de homenagem e tornando visível a vida e obra desta fantástica criadora.

Ao seguirmos a obra multifacetada de Aurélia de Souza, compreendemos simultaneamente a identidade cultural da cidade do Porto, de onde houve nome Portugal, o espírito independente da urbe, que foi a única cidade-estado existente em Portugal, o facto de ter sido, ao longo do tempo, capital política e cultural do País – desde a independência, passando pela crise de 1383, pela expansão, pela inserção europeia do comércio do vinho fino, até à vitória do constitucionalismo liberal, ao desembarque do Mindelo (que permitiu a vitória do Cerco do Porto, mas também deu nome à capital da ilha de S. Vicente em Cabo Verde) ao sucesso da causa de D. Pedro IV, à afirmação da liberdade política, económica e cultural, à Regeneração, à Liga Patriótica do Norte, ao 31 de janeiro, à Águia e à Renascença Portuguesa. A riqueza da obra da artista não foi produto do acaso, como não o foi a de Carolina Michaëlis, de Guilhermina Suggia, de Helena Sá e Costa ou de Agustina Bessa-Luís. Em todos os casos, o papel desempenhado por mulheres pioneiras significou a compreensão de que a sua emancipação tinha toda a coerência com o espírito da cidade invicta. E neste folhetim fantasmático, depois de virmos de Entre-Douro-e-Minho, e tendo palmilhado meio mundo, compreendemos que o dedo indicador de Aurélia aponta no sentido da liberdade e da independência. Eis como a arte pode tornar-se libertadora…

 

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APÊNDICE C.

COUTO (MIA)

 

Mia Couto tem entusiasmo por coisas novas, praticando o bom método de "rasgar horizontes". Recordemos o seu poema sobre o curso do tempo. O jogo das palavras permite-nos compreender melhor a substância do tema. «Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia». De facto, que é o andar do tempo senão a compreensão de que só entendemos as raízes, se percebermos o que a elas nos liga? E é esta relação com as raízes que Mia Couto nos transmite. Ao ver as palavras do avesso podemos perceber melhor o que elas representam.

“Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho”. Ah! como é difícil a relação com o sonho. Terra Sonâmbula (1992) tem como pano de fundo os tempos da guerra em Moçambique, da qual se traça um quadro de um realismo forte e brutal. Dentro deste cenário de pesadelo movimentam-se personagens de uma profunda humanidade, por vezes com uma dimensão mágica e mítica, todos vagueando pela terra destroçada, entre o desespero mais pungente e uma esperança que se recusa a morrer. Mia Couto tratou do tema de Terra Sonâmbula de um modo admirável. A crítica literária considera esta, sem dúvida, como uma das melhores obras literárias escritas nos últimos anos em língua portuguesa, sendo considerado como um dos melhores livros africanos do século XX.

Em "O Mapeador de Ausências" (2020), há um poeta “que vem à procura da sua infância" e que "vai começar a perceber que aquilo que é presente para ele no sentido temporal, nasce da ausência de alguém". Vivemos e depois deixamos o nosso espaço e o tempo. Essa ausência mais não representa do que uma continuidade de vida. E Mia Couto recorda o pai - o jornalista e poeta Fernando Leite Couto - entre outras figuras que, apesar de ausentes, permanecem vivas nas suas memórias. A obra é lançada numa altura em que Moçambique é palco de novos confrontos armados, no centro e norte, apelando a que as histórias das vítimas não fiquem por contar. "Acho importante que a informação transmita não só relatórios sobre as agressões, os ataques feitos por terroristas, mas construa a história das pessoas que estão a ser sacrificadas e não podem ser esquecidas".

Mia Couto disse: «Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai quem me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”

Mia Couto é um "escritor da terra", escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a natureza humana na sua relação íntima e umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular perceção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada (como o queixa-andar) como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos - o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano membro correspondente da Academia Brasileira de Letras (ABL), eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa. Atualmente Mia Couto é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24 países.

O encontro com João Guimarães Rosa foi para ele um abalo sísmico. Em “A Terceira Margem”, Mia Couto observou que o escritor mineiro de “Grande Sertão” tornava a oralidade do sertão no modo de se exprimir literariamente, e Mia Couto viu aí uma aproximação natural e necessária. E pode dizer-se que essa familiaridade é marcante na cultura da língua portuguesa da contemporaneidade. «Os livros de João Guimarães Rosa atiravam-me para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto seletivo. Vimos isso já. Para entrar naqueles textos devia fazer uso de um outro ato que não é “ler”, mas que pede um verbo que ainda não tem nome. Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo. Aquela era uma linguagem em estado de transe, como no caso dos médiuns nas cerimónias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exatamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. Ele cria o momento religioso em que emigra o seu próprio corpo». E neste folhetim de fantasmas temos de voltar atrás para entender Diadorim, mas também Binmarder do velho Bernardim e as centenas de personagens que já nos ocuparam neste tempo inesgotável.

«Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia».

De facto, ao ver as palavras às avessas percebemos melhor o que representam.

 

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APÊNDICE B.

BARBELA (A TORRE DA)

 

Quando iniciámos este folhetim, invocámos Ruben A., como eterno fazedor de fantasmas. “A Torre da Barbela” é o melhor romance português sobre fantasmas. Falemos, pois, do seu Autor. "Sedutor fascinante de inteligência e sensibilidade", chamou-lhe Mário Soares. Em bom rigor, a biografia de Ruben Andresen Leitão é digna de Galsworthy. E a sua lógica, um exercício de G. K. Chesterton. Sophia de Mello Breyner Andresen, sua prima direita, recorda o Porto, o Campo Alegre, esse lugar olímpico, com uma inefável ternura: "para uma criança, aquela casa e aquele enorme jardim com os altíssimos plátanos, as tílias, o carvalho, ao lado do ténis, as camélias, o roseiral, o pomar, as adegas, o pinhal, os morangos selvagens, eram um mundo, um reino que em nós permanece como uma inesgotável memória inspiradora". E essa saga da Quinta do Campo Alegre, porque nitidamente romanesca, teve também o dramático de um tiro de pistolão, do fio de armas de fogo mandado instalar por Dona Joana Andresen contra os ladrões, que atingiu o irrequieto Rubinho, deixando-o no território incerto dos mártires. Até que, em março de 1937, faleceu a coluna dorsal daquele mundo, a avó Joana, a "Velha Máquina", que deixou a Ruben, como testamento, a "ânsia desmedida de partir, de romper horizontes".

Ruben é o "sportsman", a promessa do golfe e do "lawn-tennis", que recorda as lições de Adolfo Casais Monteiro. Nas vésperas da Guerra, o jovem incrédulo, em viagem pelo território do drama, pergunta-se: "Guerra?! Pensava eu: que coisa estranha! Guerra? Este mundo quer a Guerra? Para que é que servem os homens inteligentes?". A verdade é que tudo se precipitaria. Agostinho da Silva, o sábio visionário, torna-se grande referência para Ruben… "Trazia livros, deixava-os ficar, como quem deixa ficar maço de cigarros para tentar o vício"… E o vício entrou. Um dia, da boca de Manuel Torre do Valle, "o mais notável tipo da minha geração", ouve dois poemas de Fernando Pessoa, publicados na "Presença", e rende-se a quem passa a considerar como o maior poeta português. E descobre Proust. Novo deslumbramento. Ruben faz admissão a Direito e a Letras. Ao saber da entrada no Convento de Jesus, não tem dúvidas, fica em Histórico-Filosóficas. Mas aí sofrerá o julgamento absurdo de um tal Matos Romão, lente de Psicologia, que o obriga a rumar a Coimbra. "Lisboa fica de luto sem o Rubirosa" e os amigos oferecem-lhe um jantar de despedida nos "Anarquistas"… Torre do Valle está na sombra, mas não aparece. É esse o tempo das grandes leituras ("Eça de fio a pavio, através do António Seabra"), mas sobretudo o do grande arrebatamento pelos modernistas - Rimbaud, Éluard, Sá-Carneiro, Almada… Em Coimbra, funda a primeira República supra-realista em homenagem a Dali, "Babaou - une maison surréaliste".

Tem uma curiosidade intelectual insaciável. Termina o curso. Em Pascal procura "desvendar a luz no campo das trevas" - porque "quando encontramos as 'razões do coração' podemos ter a certeza que dentro de nós qualquer coisa existe que nos transcende". Começa como professor de francês. Ensina, entusiasma os alunos, lê e sonha. Mas vem-lhe a vontade de emigrar. "Emigrava com a saudade de um país geograficamente encantador, inveja dos estrangeiros, mas que à escala humana só com uma lente é possível desvendar a inteligência das coisas, do milagre". A Inglaterra, com que se relaciona, está destruída pela guerra. No King's College conhece Charles Boxer, de quem se torna amigo. O entusiasmo e a sua cultura causam deslumbramento. De Fernão Lopes a Fernando Pessoa, passando pela Geração de 70, Ruben reflete sobre o destino de Portugal… Entretanto, morrera Manuel Torre do Valle, vítima de difteria, na flor da idade e no auge da esperança. É uma perda irreparável. Nas margens do Tamisa, cultiva o inglês, adapta-se ao frio, mata saudades da Pátria, indo buscar ao Aeroporto o seu primo Ruy Leitão e Menez num esplendoroso Rolls-Royce alugado. D. Pedro V serve-lhe de pretexto para frequentar o Castelo de Windsor. Em cada dia que passava mais admirava o reformador-tipo, o nosso primeiro moderno. Ouviam-se as suas "Peregrinações Inglesas" na BBC. Visita Ruy e Menez em Washington, lê Dickens, Dostoievski e Eça, nas margens do Potomac e cada vez mais se convence de que Shakespeare é o primeiríssimo surrealista. Por coincidência, encontra-se com T.S. Eliot… Em 1949, nasce o nome Ruben A., com o primeiro volume das "Páginas" da Coimbra Editora. Mas o segundo volume (1950), caído nas mãos do ditador, vai determinar a ordem para regressar… Para Salazar, "o livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós". Os amigos, os colegas ingleses, a gente de bem mexe-se. O ditador retrocede: "o maluco do homem tem habilidade e competência para o cargo". E fica. Mas o mal estava feito. Ruben parte em 1952: "restava-me arrumar as malas, despedir-me. (…) Paga-se muito caro por ter ideias".

Ruben vê-se desempregado. Refugia-se na Embaixada do Brasil, na publicação "Artes e Letras", que coincide com a renovação de Juscelino Kubitschek e com o período rico de abertura e de pujança democrática. O Brasil contemporâneo de Guimarães Rosa é o grande repositório da cultura da língua. Em 1954 sai o "Caranguejo", de que Eduardo Lourenço dirá: "não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana". Tem uma paixão forte pelo património cultural português. António Quadros chamar-lhe-á por brincadeira Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, o médico e o monstro - "mas a verdade é que me acuso por ter descurado completamente o Dr. Jeckyl, em exclusivo favor dos imaginosos textos impressionistas, memorialistas ou romanescos do Mr. Hyde, o Monstro, cuja leitura, além de tudo o mais, era divertidíssima".

Escreve das melhores memórias autobiográficas da nossa literatura - "O Mundo à Minha Procura". E nasce "A Torre da Barbela" – romance do absurdo genial nascido em Esteiró."A família Barbela identifica-se com a história de Portugal, com os oito séculos da história de Portugal. Os homens mais notáveis do meu romance (confessa o autor) têm, como os da história de Portugal, as suas estátuas. O que dou eu aos Barbelas? Vida. De noite estão vivos, como qualquer de nós, têm os mesmos problemas e mais um, este irremediável: sabem que vão morrer ao nascer do Sol". Ruben tinha horror à mediocridade. No dizer de Pina Martins, severo julgador, tinha "entusiasmo por coisas novas", insistindo em "rasgar horizontes".

 

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APÊNDICE A.

ALMEIDA (GERMANO)

 

O Folhetim de Verão de 2023 está a chegar ao fim. A grande heroína do ano está a ser Carolina Michaelis de Vasconcelos com milhares de gostos e sobretudo o fantástico reconhecimento da sua importância. É uma justíssima homenagem às mulheres. E Joaninha dos olhos verdes está na memória de todos. Mas há fantasmas que ainda estão na fila para entrar. E a verdade é que até ao dia 31 de agosto ainda muito vai acontecer. Já falámos de Cabo Verde e da “Claridade”, mas da Macaronésia ainda fica algo para acrescentar. Vitorino Nemésio foi acarinhado por todos, mas o Atlântico, que esteve logo na letra A não pode ser esquecido.

Hoje, voltamos às ilhas. Germano Almeida é o biógrafo de Cabo Verde. Não podemos compreender a vitalidade cultural do arquipélago e do país sem ler hoje o autor de Do Monte Cara vê-se o Mundo. É verdade que Baltazar Lopes é uma espécie de patriarca da “caboverdianidade” ou que Corsino Fortes é um poeta que sente como ninguém a identidade dessa extraordinária cultura da Macaronésia do Sul, mas Germano busca a naturalidade, a alegria de viver, a ironia, a arte de contar, a diversidade de tipos populares e a sensualidade dos corpos e das relações humanas. Não esqueço o dia que nos encontrámos na Praia, numa iniciativa do Centro Nacional de Cultura, e falámos dum tempo que estava para vir, em que de um modo natural a literatura cabo-verdiana seria reconhecida como exemplo maior na diversidade da língua portuguesa. Esse tempo chegou primeiro com o reconhecimento de Arménio Vieira no Prémio Camões e depois com o próprio Germano Almeida. A vitalidade cultural de Cabo Verde augurava essa evolução como natural. Desde O Testamento do Sr. Napomuceno da Silva Araújo não há qualquer dúvida sobre a qualidade excecional da obra e do autor. E em imaginação, percorremos o caminho iniciático do protagonista. “Atravessou a Rua de Lisboa, o Largo do Palácio e subiu ao Forte de Cónego trotando atrás de Jovita e extasiando-se com a maravilha que era o Mindelo, nunca vira tanta gente junta e sentia-se envergonhado de estar descalço atrás daquela carregadeira que calçava sandálias de plástico. Naquele dia não saiu de casa, temeroso de se perder na cidade enorme ou ser atacado por bandidos que sabia existirem e perseguirem as pessoas de dia ou de noite…”.

Ah, o Mindelo, cidade de história conturbada que Germano Almeida aprendeu a conhecer de trás para a frente. S. Vicente foi povoada tardiamente. Tempo houve em que os piratas usavam a baía do Porto Grande como local de descanso, antes de avançarem para temíveis investidas. O povoamento foi lento, vindo de Santo Antão e S. Nicolau. E foi a memória da gloriosa revolução liberal, em que Garrett e Herculano estavam entre os bravos de Pampelido, que deu o nome à extraordinária cidade que o escritor ama. Aqui acabou a escravatura. E essa invocação do Mindelo mítico é o melhor elogio da liberdade, como recusa a subalternização ou menoridade. E assim se tornou centro de irradiação de uma especial riqueza cultural que aproveitou as potencialidades do entreposto mercantil. Em Do Monte Cara vê-se o Mundo a personagem viva é a própria cidade do Mindelo e a sua gente. O velho Pepe é o cicerone, funcionando como um verdadeiro revelador e encenador de tudo o que vai acontecer. Júlia, Guida, D. Aurora, a Professora Ângela, o Trampinha – todos ilustram uma realidade humana muito rica, com uma ironia inesquecível, sob o olhar divertido e sábio do Monte Cara, em frente à cidade. E eis-nos embrenhados no dédalo que conduz ao Fortim d’El-Rei, à Alfândega Velha ou a Praça Nova, vibrante ao som do funaná. Aqui Nhô Baltas, Manuel Lopes e Jorge Barbosa criaram a “Claridade” – onde Chiquinho começou a ser publicado, com a originalidade cabo-verdiana, “excluindo os portugueses de toda e qualquer discussão referente ao destino das ilhas e dos homens”, como disse Alfredo Margarido.

O percurso de Germano Almeida começou na ilha da Boa Vista, onde aprendeu a viver entre a ruralidade e a cultura urbana. Em Regresso ao Paraíso disse que “da Boa Vista da minha infância pouco mais já resta que o prazer de usar o tempo. É uma noção do tempo em que o hoje e o amanhã, o agora e o mais daqui a bocado, continuam significando a mesmíssima coisa. E quando para lá ia de férias ia sobretudo em busca desse tempo sem relógio, que é nosso está por nossa conta”. O futuro escritor fez a tropa em Angola, numa zona de confronto. Com vinte cinco anos, graças às qualidades da sua escrita consegue uma providencial bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian que lhe permitiu estudar Direito em Lisboa. Em 1977 regressa à pátria e em 1983 funda com Leão Lopes e Rui Figueiredo a revista “Ponto e Vírgula” – onde publicou contos com o pseudónimo de Romualdo Cruz… Seguiu-se uma entrada natural no mundo literário, com obras reveladoras duma originalíssima maneira de usar a língua portuguesa de Cabo Verde, na tradição dos seus melhores compatriotas. A Ilha Fantástica é constituída por um conjunto de textos, saídos na revista “Ponto e Vírgula”, essenciais para a compreensão de uma cultura, onde o picaresco se associa à apetência de compreender e revelar sentimentos. O Fiel Defunto – confirmou a capacidade para privilegiar a ideia do “divertimento” com as pequenas coisas… E alguém pergunta ao “fiel defunto”: “mas deves estar a fazer alguma coisa para assim te divertires durante tanto tempo”. “Sim, respondia galhofeiro, ouço música, navego na internet, espreito o facebook, onde aprendo muito sobre as pessoas em geral e as pequenas vaidades que lhes enchem a alma, leio livros, falo com amigos, faço má-língua, digo mal das criaturas de quem não gosto, cuido das plantas do meu jardim que nunca estiveram tão bonitas de tão bem tratadas” … E assim se confessa imune aos vícios, incapaz de escrever o que não tem para dizer e apenas disponível para deixar passar o tempo, com uma cana de pesca na mão, “sem sequer desejar apanhar um peixe para não ter a maçada de o transportar para casa” … quanto à língua portuguesa, Germano diz ser indispensável um ensino rigoroso do crioulo e o português deve ser muito bem aprendido como língua segunda. A alfabetização em crioulo obriga a cuidados especiais, para evitar barreiras entre ilhas ou comunidades. E é fundamental que o português não seja sentido como língua estranha. Daí Germano Almeida insistir “na necessidade de nós em Cabo Verde dominarmos o português até mais que os portugueses. Com o crioulo não vamos longe, não saímos das ilhas. Com o português vamos a toda a parte".

 

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Z.   ZOMBAR

 

O António Alçada Baptista era um admirador do Millôr. Muitas vezes invocava o seu humor para pôr tónica na liberdade, e na necessidade de não nos levarmos demasiado a sério. Eram inesgotáveis seus comentários. O Alexandre O’Neill concordava plenamente e o António Tabucchi insistia em que Millôr demonstrou que a cultura da língua portuguesa não era apenas lírica e trágica, mas também picaresca. Daí a importância do escárnio e maldizer, desde as nossas raízes, e de muitos diálogos vicentinos, desde o Auto das Barcas ao Pranto de Maria Parda. Millôr Fernandes era um bom exemplo. Dizia ele: “Em geral quando a gente encontra um espírito aberto entra e verifica que está vazio”. E ainda: “A vida consiste de metade de mentiras que a gente é obrigado a dizer, e metade de verdades que a gente é obrigada a calar”. “O passado é o futuro usado”. “Uma criança está deixando de ser criança no dia em que começa a fazer perguntas que têm respostas”.

Millôr Fernandes (ou Milton Viola Fernandes) nasceu em 16 de agosto de 1923, no subúrbio do Rio de Janeiro. Seu pai — Francisco Fernandes — era um espanhol naturalizado brasileiro. Porém, faleceu em 1925, deixando o escritor órfão. Assim, para sustentar os filhos, a mãe foi obrigada a trabalhar como costureira. Millôr iniciou sua vida escolar em 1931 e, três anos depois, apaixonou-se pelas revistas de quadradinhos. Nessa época, já mostrava o seu talento como ilustrador. No entanto, em 1935, perdeu também a sua mãe. Então, o menino foi morar com a família de seu tio materno. Em 1938, o jovem Millôr ingressou no mercado de trabalho, como paquete num consultório médico e na revista “O Cruzeiro”, além de iniciar seus estudos no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Nesse ano, foi o vencedor em um concurso de contos da revista “A Cigarra”, onde viria a trabalhar. Um dia disse: “Quando um técnico vai tratar com imbecis deve levar um imbecil como técnico”. “É porque ninguém gosta de trabalhar que o mundo progride” – como já dizia Confuncio.

No ano seguinte, escreveu para o “Diário da Noite” e tornou-se diretor das revistas “A Cigarra”, “O Guri” e “Detetive”. Já em 1942, fez sua primeira tradução: “A estirpe do dragão”, da escritora americana Pearl S. Buck (1892-1973). Em 1943, terminou seus estudos no Liceu e retornou à revista O Cruzeiro. Cinco anos depois, em 1948, viajou para os Estados Unidos, onde conheceu Walt Disney (1901-1966). Nesse mesmo ano, casou-se com Wanda Rubino e, em 1951, fez uma viagem pelo Brasil, durante quarenta e cinco dias, em companhia do escritor Fernando Sabino (1923-2004), com o intuito de conhecerem melhor o país. “Quando, afinal, nos acostumamos com uma moda é porque ela já está completamente em decadência”. Em 1952, Millôr conheceu ainda a Itália e Israel. A primeira peça teatral de Millôr — “Uma mulher em três atos” — estreou-se em 1953. A partir de então, iniciou uma carreira bem-sucedida no teatro. Também apresentou o programa de televisão Universidade do Méier em 1959. Disse então: “Os clássicos mudam muito de opinião para agradar os que os interpretam”. No ano seguinte, a sua peça “Um elefante no caos” estreou após censura. Com ela, Millôr Fernandes ganhou o prémio de melhor autor da Comissão Municipal de Teatro.

O dramaturgo e ilustrador conheceu o Egito em 1961. Dois anos depois, esteve em Portugal. Nesse mesmo ano foi trabalhar no Correio da Manhã e em 1964, criou a revista Pif-Paf. “Idiota é o indivíduo que ouvindo uma história com duplo sentido não entende nenhum dos dois”. E “chato é o indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós nele”. “Nada é mais falso que uma verdade estabelecida”. Durante a sua vida, teve uma vasta colaboração na imprensa ligando o comentário breve e a ilustração irónica: O Jornal, Tribuna da Imprensa, Veja, O Pasquim, IstoÉ, Jornal do Brasil, O Dia, Folha de S. Paulo, Bundas e O Estado de S. Paulo. Também em Portugal foi celebrada a colaboração semanal no “Diário Popular”. Da década de 1960 até a sua morte, em 27 de março de 2012, o teatro e a televisão foram para ele importantes meios de expressão do artista. E deixou um especial alerta: “Morrer rico é extrema incompetência. Significa que você não usufruiu ou pelo menos que não usufruiu todo o seu dinheiro. Além disso, um rico que gasta tudo o que tem antes de morrer, livra os seus herdeiros do odioso imposto de transmissão”. Mas também deixou escrito: “Se agir sempre com dignidade pode não melhorar o mundo, uma coisa é certa, com dignidade, haverá na terra um canalha a menos”. “Não ter vaidades é a maior de todas”. “Ser diplomata é discordar sem ser discordante”. “Pontual é alguém que resolveu esperar muito”…

Como disse José Paulo Cavalcanti: “Millôr era amigo certo de amigos incertos. Homem reto, apesar do empeno da coluna. Que sentia dores e quase todos os seus derivativos – sobretudo amores, andores e ardores. Apreciador de bolo de rolo; e, para ser justo de outros bolos e outros rolos. Alguém que acreditava na bolsa dos valores e nas boas ações. Que não gostava de roubar nem o tempo dos outros. Magro no corpo. E gordo nos sentimentos. Pobre, não de espírito. E rico, até de ilusões perdidas. Homem justo em uma vida injusta, onde os dias passam tão devagar e os anos passam tão depressa. Dizem que Millôr morreu? Impossível. Que Millôr é terno. Eterno. Viva Millôr”.

Zombar era seu ofício, não como modo de apoucar, mas para dar valor a quem o merece e de tornar claro quem não o merece. Zombar é cuidar da verdade. “O último refúgio do oprimido é a ironia, e nenhum tirano, por mais violento que seja escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, não pode impedir uma caricatura. A mordaça, aumenta a mordacidade”.

 

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Y.   YÉTI – PORTUGUESES NO TIBETE

 

O Yéti corresponde a uma figura, entre o mítico e o real, que representa o “Abominável Homem das Neves”, celebrizado, designadamente, por Hergé em “Tintin au Tibet”, estando presente em diversas culturas, para além dos Himalaias, principalmente em lugares extremamente hostis e montanhosos. O Yéti tornou-se na cultura mundial uma homenagem ao diálogo entre a humanidade e a natureza. Investigadores, conscientes do pouco que se conhece sobre a matéria, sugerem a hipótese de o Yéti ter o estranho costume de acasalar com seres de outras espécies, até os humanos, deixando descendentes por todo o mundo com características muito parecidas com as suas, adaptadas ao clima local. Neste Folhetim de Verão falamos de algo muito pouco conhecido, ou seja, dos primeiros portugueses a demandar o Tibete. E se falamos de portugueses é porque eles foram, sem dúvida, os primeiros europeus nessa aventurosa demanda. O Tibete, região quase mítica, o teto do mundo, manteve-se desconhecida dos europeus até ao início do século XVII, altura em que um grupo de jesuítas portugueses decidiu empreender a exploração de tão misterioso e surpreendente lugar.

Houve uma primeira viagem épica do Padre António de Andrade (Oleiros, 1580 – Goa, 1634), o primeiro ocidental a chegar ao Tibete em 1624. Como Superior da Missão do Mogol, deixou Agra acompanhado por Jahanjir, imperador mogol que viajava para Lahore. Em Deli, encontrou um grande número de peregrinos hindus que rumavam para o fabuloso templo, situado a quarenta dias de viagem. Esperando atingir o Tibete após visitar Lahore, António de Andrade, conjuntamente com o irmão Manuel Marques, começaram o seu caminho, conduzidos pelos “gentios”. A missão teve algum sucesso; foi construída uma pequena igreja na passagem e houve algumas conversões. No entanto, em virtude de um golpe de Estado contra a influência cristã, a missão foi destruída e os portugueses expulsos do país. Andrade deixou o Tibete em 1629 e foi nomeado provincial em Goa em 1630; retomando em 1633 o seu antigo cargo de Reitor do Colégio de S. Paulo em Goa. Em 1634 o padre Andrade foi envenenado, por uma intriga interna, na reitoria do colégio e morreu em 19 de março.

Outros padres abriram novas rotas, que levariam aos reinos de Sikkim, Nepal e Butão – este último percorrido por João Cabral (Celorico da Beira, 1599 – Goa, 1669) e Estêvão Cacella (Avis, 1585- Tibete, 1630). Os dois identificaram o mítico lugar de Shangri-La, bem como o lugar de nascimento do Buda Gautama. A busca do mítico reino do Cataio correspondeu à procura de um lugar onde existiriam cristandades perdidas – desde as planícies de Bengala ao interior do Butão. Contudo, não se confirmou essa presença familiar. No Butão, Cacella e Cabral encontraram Shabdrung Ngawang Namgvel, o unificador do reino, e no fim de uma estada de quase oito meses no país, o padre Estevão Cacella escreveu uma longa carta no Mosteiro Chagri ao superior jesuíta em Cochim. O relatório, A Relação, relativa ao progresso das suas viagens é o único relato de Shabdrung que nos resta.

A aventura dos jesuítas começou em Hoogly, junto a Calcutá, na Índia, de onde partiram os padres Estêvão Cacella, João Cabral, a 2 de agosto de 1626, vestidos de soldados, para melhor passarem despercebidos. Em Bandel, no bairro de Hoogly, cidade fundada pelos portugueses, encontramos uma Igreja dedicada a Nossa Senhora da Boa Viagem, datada de 1599. A peregrinação dos jesuítas rumou ao reino do Cocho, sendo feita pelo Bramaputra e seus afluentes, numa embarcação de tamanho considerável. Os padres transportavam vários objetos: designadamente os necessários presentes sem os quais nada se podia fazer. O destino seguinte foi Gauwathi, capital da província indiana de Assam, a atual Hajo, local de peregrinação para três confissões religiosas – budismo, islão e hinduísmo – então sede das terras do Senhor de Cocho (Cooch Behar). Os padres portugueses foram hóspedes de um rajá local, que os levaria mais tarde à presença do rei do Cocho. O famoso Bir Narayan recebeu-os com pompa e concedeu-lhes salvos condutos para entrada no Reino. A entrada dos jesuítas portugueses no Butão foi feita pela fronteira de Rangamati. Munidos das devidas autorizações de viagem e de um cavalo que lhes transportava a bagagem. Havia montanhas altíssimas e vales muito profundos. Ao fim de vários dias de caminhada avistaram finalmente a aldeia de Rintam. Ali residia um lama que, previamente informado da chegada dos portugueses, obteve autorização do rei do Butão, e conduziu-os a Paro, capital do reino. Cacella e Cabral ficaram maravilhados com o vale de Paro. Também a arquitetura local, assim como o peculiar ordenamento urbano, os impressionou. O padre Cacella foi o primeiro europeu a entrar no Butão e a viajar através dos Himalaias no Inverno. Foi também Cacella que, pela primeira vez, descreveu aos europeus um lugar fictício chamado Shambala (que significa “paz/tranquilidade/felicidade”). De acordo com o budismo tibetano este seria um país ideal localizado a norte ou oeste dos montes Himalaias: no século XX o mito inspirou James Hilton a escrever o romance “Horizonte Perdido”, inspirado em Shangri-La.

Recentemente, a RTP produziu, graças à coordenação do investigador Joaquim Magalhães de Castro, um conjunto de quatro programas sobre essa aventura fundamental, muito pouco conhecida, reveladora das rotas seguidas por um conjunto de intrépidos jesuítas portugueses do início do século XVII nos Himalaias. Tal série documental traduziu uma aventura de milhares de quilómetros através de uma das mais espetaculares e deslumbrantes paisagens do planeta. Terra de mosteiros, alta montanha, lagos de água cristalina e rotas de peregrinação lendárias, o Tibete continua a ser o mais misterioso e aliciante recanto dos Himalaias. Na Biblioteca de Thimpu, atual capital do Butão. o diretor da instituição, Dr. Yonten Dargye, revela a grande riqueza documental disponível para a investigação sobre as relações históricas entre Portugal e o Butão. Joaquim Magalhães de Castro visitou o mosteiro-fortaleza de Punakha, um dos edifícios mais significativos do Butão, sem esquecer o referido mosteiro de Chagri, o primeiro local onde os jesuítas foram recebidos pelo monarca, tendo-lhe estes oferecido armas, pólvora e um telescópio. Aí residiram, estudaram a língua local e tiveram autorização para difundir a fé cristã. É um local de meditação para os monges e destino de eleição para os inúmeros peregrinos que ali rumam ao longo do ano.

 

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X.   XAVIER (S. FRANCISCO) E “PEREGRINAÇÃO”

 

Francisco de Xavier sentiu-se abalado pela conquista do Reino de Navarra por Castela. Então o rei de Portugal D. João III pediu ao Papa Paulo III para que este lhe enviasse missionários para os territórios da Índia. D. João III é aconselhado pelo diretor do Colégio de Santa Bárbara, Diogo de Gouveia, a chamar para os Reino de Portugal jovens da Companhia de Jesus. Inácio de Loyola escolhe Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilla para essa missão, mas este adoece e Francisco é nomeado seu substituto, chegando a Portugal em 1540. Parte no ano seguinte, a 7 de abril, a bordo da nau S. Diogo, a nau capitânia das cinco naus da frota comandada por Martim Afonso de Sousa, que ia que tomar posse do cargo de governador na Índia.

Em agosto ancoraram na ilha de Moçambique e depois em Melinde. Durante a viagem, muito atribulada pela difusão do escorbuto na tripulação, as qualidades e o carisma de Francisco Xavier foram evidentes. A nau Santiago chegou a Goa a 6 de maio de 1542. O trabalho de Francisco de Xavier inauguraria mudanças na Indonésia, tendo-se tornado conhecido como o “Apóstolo das Índias” quando, entre 1546 e 1547, trabalhou nas Molucas. Depois de partir da região já havia entre 50 e 60 mil católicos. Em dezembro de 1547, em Malaca, Francisco de Xavier conhece Fernão Mendes Pinto, que regressava do Japão e trazia consigo um nobre japonês de nome Angiró que ouvira falar de Francisco em 1545 e viajara de Cagoxima para Malaca com o propósito de o conhecer. Angiró, acusado de um crime, fugira do Japão. Abriu o seu coração a Francisco, confessando-lhe a vida que levara até ali, mas também os costumes e cultura da sua terra natal. Angiró foi batizado por Francisco Xavier e adotou o nome português de Paulo de Santa Fé. Como antigo samurai, tornar-se-ia um valiosíssimo mediador e tradutor na missão ao Japão. Francisco teve um forte impacto no Japão, tendo sido o primeiro jesuíta nesse encargo. Os japoneses não se revelaram ouvintes fáceis. Muitos eram budistas e Francisco Xavier teve dificuldade em explicar-lhes o conceito de Deus criador de tudo o que existe e o mesmo relativamente ao inferno. Apesar das diferenças religiosas, Francisco Xavier terá sentido que os japoneses eram um povo bom, como os povos europeus, e que por isso poderiam ser convertidos. Morreu em Sanchoão (1552) às portas da China. Homem santo de três religiões – cristã, hindu e muçulmana – o seu corpo é venerado na Basílica do Bom Jesus de Goa, constituindo caso único na história das religiões.

A “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583) põe-nos diante uma verdadeira personagem romanesca, que assume diferentes acontecimentos e personalidades, e que descreve de um modo notabilíssimo, o que era a vida de um português no Oriente – criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da China, mercador, médico ocasional do rei do Bongo, vagabundo e embaixador -, a verdade é que isso simboliza o português do mundo. Os estudiosos sobre esse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relataram sem ler Fernão Mendes Pinto. Este é a personagem completa, que não precisa de convencer ninguém que deixa de ser quem sempre foi. O próprio título com que a obra foi publicada dá-nos a expressão plena da riqueza do relato. “Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus”. Ao ler a obra, houve entre os contemporâneos quem duvidasse dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos em que andou pela Ásia, tendo sido, na sua própria expressão, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. A escrita começou logo em 1557, com a memória bem fresca, só sendo publicada trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram da veracidade dos relatos, o autor respondeu significativamente: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”.

É memorável o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário, numa situação, em que quiseram saber novidades de Liampó, “porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito”, mas afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto. É inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia “derramador e bebedor do sangue português” e a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. “E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão…”. E lembre-se o episódio da vinda do Embaixador do Rei dos Batas. Pero de Faria fê-lo «agasalhar o mais honradamente que então foi possível». E assim «o despediu bem despachado, e satisfeito do que viera buscar, porque lhe deu ainda algumas cousas além das que lhas pedira, como foram cem panelas de pólvora, e rocas, e bombas de fogo, com que se partiu tão contente desta fortaleza, que chorando de prazer, um dia perante todos os que estavam no tabuleiro da igreja, virando-se para a porta principal dela, com as mãos levantadas, como quem falava com Deus, disse publicamente. Prometo em nome de meu Rei a ti Senhor poderoso, que com descanso e grande alegria vives assentado no tesouro das tuas riquezas que são os espíritos formados da tua vontade, que se te praz dar-nos vitória contra este tirano de Achem (…). E assim te prometo e juro com toda a firmeza de bom e leal, que meu Rei não tenha nunca outro Rei se não este grande português, que agora é senhor de Malaca». Fernão Mendes construiu, deste modo, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, que tem o seu estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». E assim a nossa cultura é inesgotavelmente peregrina!

 

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W.   WENCESLAU DE MORAES

 

E encontrámos Wenceslau com Camilo Martins de Oliveira e José Tolentino Mendonça… Quioto é uma cidade especial. Aqui sente-se a tradição japonesa, como sinal de um povo antigo, sereno, amável e hospitaleiro. Estamos na antiga cidade imperial, qualidade que perdeu em 1868, depois de ter havido entre os séculos XVII e XIX uma partilha de influência política com a cidade de Edo, hoje Tóquio, até à revolução Meiji. A cidade é marcada pelo rio Kamo e está situada entre três montanhas. No bairro de Gion, conhecemos as narrativas e descrições romanescas, e aí podemos ver o desenho de uma antiga cidade nipónica. Há restaurantes tradicionais, há muito movimento, edifícios baixos e pequenos, em madeira, bem ordenados, assinalados com balões coloridos iluminados. Vêem-se geishas em trajes de função. As ruas são estreitas e limpas, a ordem e a organização imperam. A cada passo, as pessoas saúdam-nos com vénias, ora para nos convidarem a entrar, ora para nos agradecerem se lhes demos primazia no burburinho dos passeios. No Outono, há alegria e jovialidade no ar, mesmo depois de cair a noite. Não há humidade e a temperatura ronda os 12 graus. Ao passar pela zona dos teatros, invocamos o Kabuki e a sua evolução. Apesar de ter sido fundado por mulheres, estas foram banidas sob acusação de prostituição, e há muito que o Kabuki passou a ser representado apenas por homens. Complexas maquilhagens permitem distinguirmos o Kabuki do teatro Noh, as diferenças são profundas, indo do burlesco à erudição. Quando no dia seguinte passamos por Gion, de manhã cedo, a quietude impera, num ambiente doce. O rio Kamo é referido com veneração. As suas águas protegem a cidade e os seus habitantes. Nas margens, passamos pela rua de Pontocho, popularíssima e uma das marcas da cidade. Aqui a referência aos portugueses não se faz esperar. Neste local ficaria um banco de areia e diz a tradição que os nossos compatriotas chamar-lhe-iam ponte. Sempre que se falava dos portugueses os olhos dos nossos interlocutores brilhavam de satisfação. Há um genuíno gosto pelo que somos e pelo facto de termos sido os primeiros europeus a chegar. O sol iluminava a cidade e as montanhas e começámos a perceber a beleza extraordinária do «momiji». As árvores que rodeiam a cidade no Outono têm as folhas vermelhas ou amarelas. Wenceslau de Morais (1854-1929), o escritor português que se apaixonou pelo Japão e cujos textos nos acompanham como ajuda preciosa, disse que «as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido». Sentimos entusiasmo ao ver as grandes massas desta folhagem belíssima. Nessa manhã cristalina, fomos, ao Pavilhão de Prata, o Ginkaku-ji, que literalmente se apagava diante daquela natureza outonal pujante. Depressa percebemos que o importante não era o facto de a prata nunca ter sido colocada para tornar o edifício espetacular. Tudo se passa, afinal, como se apenas faltasse a prata para espelhar a pujança dos jardins, pois o essencial é o movimento das plantas e a ordenação magnífica da natureza.

 

O momiji tudo domina, parecendo dizer que a natureza culta, domada pelo ser humano, é dominada pelas folhas escarlate, como se fossem flores. Deambulamos pelos caminhos do jardim, contamos as suas pedras, deslumbramo-nos com os musgos tratados, com as águas, com os lagos, com os jardins secos, com o saibro riscado ou a terra cuidadosamente penteada a representar ilhas, oceanos e os rios da vida. Seguimos pelo caminho dos filósofos ou via dos mestres. Um canal ladeado de cerejeiras segue sinuoso pelo sopé das Montanhas Orientais e há muita gente que caminha, gozando a natureza, conversando, lendo ou simplesmente indo em direção ao templo zen de Nanzen-ji. A designação recente do percurso deve-se ao filósofo Nishida Kitaro (1870-1945), professor da universidade de Quioto, que tornou este lugar simbólico obrigatório para a compreensão da cultura japonesa.

 

As obras de Wenceslau de Moraes são de extrema importância no plano nível cultural com reflexo do pensamento português no mundo e sobre o mundo. Encontra-se em cada palavra sua o cruzamento de ideias e de História, de imaginário e realidade. Torna-se difícil compreender o que Moraes encontrou numa civilização tão diferente da sua, que fez mudar os seus padrões culturais, sempre com os sentimentos do exílio e da saudade presentes na sua alma e no seu coração, sentimentos tão particulares do seu povo.  Um português que procurou manter um contacto diplomático quer com os seus conterrâneos, quer com os japoneses, mas terminou os seus dias sozinho em Tokushima. Wenceslau de Moraes foi autor de um legado sobre assuntos ligados ao Oriente, em especial ao Japão destacando-se as obras: Traços do Extremo Oriente; Cartas do Japão; O Culto do Chá; A Vida Japonesa; Relance da História do Japão; Serões no Japão e Relance da Alma Japonesa.

 

Em Nanzen-ji sentimos que a lição «sê mestre da tua mente» é um elemento fundamental nesta cultura do conhecimento e da compreensão. A colossal Sanmon à entrada do recinto do templo dá-nos a impressão de que estamos num lugar essencial para a cultura zen. Este portão descomunal não tem um prego, foi erguido no século XVII apenas com encaixes que põem à prova a habilidade e a inteligência humanas. Tudo para consolar as almas dos que morreram num cerco do Castelo de Osaka. Nos aposentos do Abade do Convento deparamos com o célebre “Tigre a beber água”, obra-prima da pintura tradicional japonesa do século XVII da autoria de Tamyu Kano, além de uma intervenção de Kobori Enshu, com seixos e pinheiros num impressionante jardim seco. A verdade é que a relação do tempo e do universo tem uma importância especial. Sentimo-lo no equilíbrio entre a arte e a natureza em Nanzen-ji, nos jardins, nos seixos, nas representações, mas especialmente na cerimónia do chá, no templo de Kodai-ji, nessa tarde. A preparação, a simbologia e os gestos – tudo exige um forte domínio do corpo e da presença, em nome do respeito, da tranquilidade, da pureza e da harmonia. O culto é muito mais do que uma tradição, é um gesto litúrgico, até de influência cristã. Folheamos “O Culto do Chá” de Wenceslau de Moraes: «nos templos famosos em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de mostrar as relíquias e os museus». Aqui os nossos queridos fantasmas estão bem vivos. Convivem connosco. Explicam tudo!

 

 

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V.   VASCONCELOS (CAROLINA MICHAELIS DE)

 

Falo-vos de uma mulher excecional. Na rua da Cedofeita, na cidade do Porto, a casa dos Vasconcelos era um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases de um progresso baseado na cultura e na liberdade. A primeira mulher catedrática na Universidade portuguesa nasceu alemã. Veio para Portugal por casamento com um dos grandes intelectuais do século XIX, Joaquim de Vasconcelos, estudioso sobre musicologia, biografia, pintura portuguesa nos séculos XV e XVI, sobre os contactos portugueses com os grandes artistas europeus como Albrecht Dürer, Rafael e Van Eyck, sobre história da ourivesaria, joalharia e cerâmica portuguesas, além da bibliografia crítica da história da literatura portuguesa, sobre Francisco de Holanda, Damião de Góis, Nicolau Clenardo e Duarte Ribeiro de Macedo. No final da década de setenta, Joaquim de Vasconcelos empenhou-se na feitura da Reforma geral do Ensino das Belas-Artes em Portugal (1877-1880). Foi um dos organizadores do Museu Industrial e Comercial do Porto. Enquanto Carolina estudava a evolução da língua, Joaquim de Vasconcelos debruçava-se sobre as raízes flamengas da pintura portuguesa no século de ouro. Tudo estava em saber sobre o melhor modo de interpretar e de chegar à identidade do ser português. Joaquim de Vasconcelos foi dos primeiros a pronunciar-se sobre os painéis ditos de S. Vicente, atribuídos a Nuno Gonçalves, em artigos publicados no “Comércio do Porto” (junho de 1895). A representação do Infante D. Henrique na “Crónica dos Feitos da Guiné” de Zurara pertencente à Biblioteca Nacional de Paris permitiu-lhe fazer as primeiras identificações relativamente aos painéis, a começar pela presumível data da sua feitura.

O conhecimento da realidade portuguesa por Carolina Michaëlis enche de espanto os seus leitores. Sendo mulher afirma, com grande sensibilidade, sobriedade, o espírito científico e a exigência a importância da educação e do conhecimento. Torna-se em 1877 sócia do Instituto de Línguas Vivas de Berlim. E é impressionante a lista dos trabalhos que publica - primeiro em matéria linguística, depois no âmbito da história e da crítica literárias. Lembremos os estudos sobre o "Cancioneiro da Ajuda" e o glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado. A literatura portuguesa é um inesgotável campo para a sua investigação no tocante às origens da poesia peninsular. A Universidade de Friburgo reconhece o labor científico de primeira qualidade de Carolina Michaëlis de Vasconcelos e concede-lhe o grau de Doutor honoris causa. O que a jovem não conseguira em Berlim conseguia-o agora, por via honorífica, mas com indiscutível sentido de justiça. O reconhecimento nacional e internacional de Joaquim de Vasconcelos também é notável: é sócio efetivo da Gesellschaft für Musikforschung de Berlim, da Real Associação dos Arquitetos Civis e Arqueólogos Portugueses (Lisboa), sócio correspondente do Instituto Imperial Germânico de Arqueologia, sócio honorário da Academia Real de Música de Florença, sócio honorário da Sociedade Martins Sarmento (Guimarães) e sócio benemérito da Associação Industrial Portuguesa.

Em 1901, D. Carlos concede a Carolina Michaëlis o grau de oficial da Ordem de Santiago da Espada, como preito de homenagem ao labor científico, que todos continuavam a considerar como de qualidade e interesse excecionais. Em 1911, logo após a implantação da República, Carolina é nomeada professora da nova Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em reconhecimento dos enormes serviços prestados à cultura portuguesa, lugar que não aceitará por motivos da vida familiar. No entanto, aceita o encargo pedagógico e científico, exercendo-o na Universidade de Coimbra. Aí, recebe, em 1916, o grau de doutora honoris causa, em ato solene de homenagem à sua obra, tão rica e relevante. Em 1923 é-lhe outorgada idêntica honra na Universidade de Hamburgo.

Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor – a sua vida demonstra a importância da íntima ligação entre a opção pessoal e a vocação científica. Considera que a Saudade é um “traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas, muito mais do que a Sehnsucht é característica da alma germânica. Refletida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou hoje, do imperativo energético da atividade ponderada”, a palavra alemã “tem muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios”. “A saudade e o morrer de amor (outra face do mesmo prisma de terna afetividade e da mesma resignação apaixonada)” são realmente, para a estudiosa, “as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome. Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e os livros que estilisticamente derivam dele, como a ‘Consolação de Israel’ de Samuel Usque, e as’ Saudades da Terra’ de Gaspar Frutuoso. Perfumam as Rimas de Camões e os Episódios e as Prosopopeias dos Lusíadas. —Perfumam as Cartas da Religiosa Portuguesa; e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de Frei Luís de Sousa. Não faltam no Cancioneiro do povo; nem já faltavam, na sua fase arcaica, nos reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é, nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até os dias de Pedro e Inês. Logo no alvorecer da poesia, ainda antes de 1200, surgem naturalmente lindos lamentos de amor e de ausência. Encontro-os naquela singela composição, em que o rei D. Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: cuidado e desejo.

Se lermos a obra de Carolina Michaëlis e de Joaquim de Vasconcelos, muito rica, diversificada e inovadora, facilmente encontramos uma procura incansável da identidade portuguesa, pelo espírito singular da nossa cultura - demonstrando que essa cultura sempre se enriqueceu quando se abriu ao exterior e a outras culturas e sempre se empobreceu quando se fechou ou se deixou ficar pela inércia conservadora. Cultivaram, assim, ambos um espírito desperto e liberal, aberto e sensível, em busca do que ia para além do superficial e do imediato. Vendo a mestra com olhos de hoje, não passa despercebida uma intenção claramente emancipadora, de quem nunca deixou de assumir a sua qualidade de mulher e de quem considerou sempre, como naturalíssimo, que liberdade e igualdade fossem faces do mesmo espelho, como a igualdade e a diferença, e nunca realidades antagónicas. Mas para que tal acontecesse é preciso enaltecer a atitude de Joaquim de Vasconcelos, grande admirador de sua mulher, que com ela formou um par de características excecionais, pela sua complementaridade e pelo exemplo. Carolina Michaelis fez até morrer aquilo de que gostava e que era a sua vocação – o estudo incansável sobre a cultura portuguesa, as suas raízes e especificidades, sem esquecer que era um exemplo singular, que sempre desejou que deixasse de ser excecional. Como disse Gerhard Moldenhauer na oração fúnebre: “Quem, para mais conscientemente se orgulhar de ser português, alguma vez se interessou pela nossa herança espiritual, encontrou sempre no excecional espírito de Carolina Michaëlis o mais amável dos mestres e o mais seguro dos guias”.

 

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