Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos assinam o prefácio à Antologia de Adélia Prado Tudo o que existe louvará (Assírio e Alvim, 2016) de leitura indispensável.
Alberto da Costa e Silva disse de João Guimarães Rosa que escreveu um romance, novelas e contos como se fizesse poesia, preferindo ser “expressivo, perscrutador e lúdico”. Lembrei esta afirmação perante a atribuição do prémio Camões a Adélia Prado, em simultâneo com o anúncio do prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Notamos, de facto, na personalidade literária desta mineira inconfundível semelhantes características que Alberto exprimiu. Também Adélia, ressalvadas as distâncias, tem as qualidades únicas desse extraordinário cultor da língua comum como ninguém mais fez. E lembramos aquele começo da “partida do audaz navegante” (nas Primeiras Estórias) – “Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha aberta, de alpendre, atrás da pequena casa”. E se Guimarães Rosa assim escreveu, Adélia Prado encanta-nos no mesmo tom: “Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras. / As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha / de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas / fora do seu tempo desejadas”.
José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos afirmam no prefácio à Antologia de Adélia Prado Tudo o que existe louvará (Assírio e Alvim, 2016) que «o religioso sem corpo é triste, incompreensível e anímico, porque é com o corpo que se ama a Deus. O corpo é que nos abre, como janela, para a transcendência: Deus só é experimentável a partir do corpo e na relação com o corpo». E somos levados à leitura da poeta galardoada com o Prémio Camões deste ano: «Tudo o que existe louvará. /Quem tocar vai louvar, /quem cantar vai louvar, /o que pegar a ponta de sua saia /e fizer uma pirueta, vai louvar. /Os meninos, os cachorros, / os gatos desesquivados, / os ressuscitados, /o que sob o céu mover e andar». E não esquecemos o que disse Leonor Xavier, que se estivesse connosco estaria feliz pela justiça deste reconhecimento: “Em verso e prosa, Adélia descobriu a mistura entre as pequenas tarefas de casa, as pessoas que a rodeiam, as coisas e os bichos, o sentir e o pensar, o silêncio da dúvida, a presença de Deus imediata e consciente, na inteireza da sua história de mulher”. E não esquecemos a premonitória opinião de Carlos Drummond de Andrade sobre alguém não conhecido, cujo valor se tornaria indiscutível: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. De facto, a originalidade é uma marca que a torna um especial exemplo de quem usa as palavras, melhor que ninguém para exprimir o que sente e como vive o mundo contemporâneo. E, como disse Pedro Mexia, «os seus textos, que evocam com frequência um meio provinciano e pobre, têm (…) algumas afinidades com o Sul profundo da ficção de Flannery O’Connor, mas enquanto a americana era violenta e sofrida, a brasileira é vitalista e sensual. Poeta de Deus e do corpo, Adélia é também poeta do corpo divinizado e do Deus encarnado». Pessoalmente, é desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, mas seríssima no entendimento das coisas essenciais e por isso na sua escrita o comum e o banal encontram-se, reclamando a transcendência.
UM CASO MUITO ESPECIAL Nascida em Divinópolis (Minas Gerais) em 1935, onde vive, foi professora do ensino básico e formou-se em filosofia. Em 1976, publicou Bagagem, obra que teve uma excelente reação dos leitores e da crítica e que lançou a poeta no mundo da melhor literatura. Em 1978 lançou O coração disparado, também muito bem recebido e galardoado com o Prémio Jabuti. E o sucesso literário permitiu a afirmação de um conjunto de obras, todas elas marcantes, que manifestam o testemunho de uma mulher, profundamente solidária com a importância do reconhecimento da liberdade de pensamento, da igualdade de género e da valorização do quotidiano e da convivialidade. São exemplos desse entusiasmo criador: Soltem os cachorros (1979), Cacos para um vitral (1980), Terra de Santa Cruz (1981) e o romance Os componentes da banda (1984), além de O Pelicano (1987) e A faca no peito (1988). Em 1994, após alguns anos de silêncio poético, ressurge com o livro de prosa O homem da mão seca, sendo lançados no ano de 1999 o romance Manuscritos de Filipa, e o livro de poemas Oráculos de maio. Em 2010 publicou A Duração do Dia e recebeu os Prémios Literário da Fundação Biblioteca Nacional e da Associação Paulista dos Críticos de Arte, publicando em 2013 Miserere. Agora, a atribuição do Prémio Camões reforçou o cânon feminino das literaturas da língua portuguesa, uma vez que a escrita de Adélia Prado é marcadamente ligada ao reconhecimento da importância da mulher na literatura e na vida. Por isso disse: “Fiquei mais corajosa, / igual a mulheres que julgava levianas / e eram só mais humildes” ou “Tenho labirintite. Amei Aristóteles com fervor. / E por longo tempo deixei-o por Platão. /Enfadei-me, saudosa de carne e ossos, / acidez de sangue e suor, / O que deveras existe nos poupa perturbações, / sou uma vestal sem mágoas. / Terei o que desejo, carregando a minha cruz / e morrendo nela”. E Mia Couto confessa o encantamento que sentiu ao ler Adélia Prado, que encontraria pessoalmente na representação de “O último voo do flamingo” em Belo Horizonte, considerando tal encontro como mágico.
Há, de facto, sempre um lado de magia na escrita de Adélia, cultivando permanentemente a esperança de uma alegria inesperada, como diz em “O Homem Humano” de Terra de Santa Cruz: “Se não fosse a esperança de que me aguardas com a mesa posta / o que seria de mim eu não sei. / Sem o Teu Nome / a claridade do mundo não me hospeda, / é crua luz crestante sobre ais”. E, na relação com as palavras, compreendemos que é a vida e o que ela tem, que sobretudo importa: “O que existe são coisas, / Não palavras. Por isso / te ouvirei sem cansaço recitar em búlgaro / como olharei montanhas durante horas, / ou nuvens. / Sinais valem palavras, palavras valem coisas, / coisas não valem nada. / Entender é um rapto, / É o mesmo que desentender…”. E os citados prefaciadores da Antologia que seguimos recordam que a poeta provoca escândalo, porque sobre ela recai “a acusação de ser demasiado religiosa e demasiado provinciana”. Mas, como Drummond bem viu, mais do que tudo, criou “uma obra poética vital que a coloca, com inteira justiça, entre as grandes vozes do nosso tempo: instigadora na proposta, destemida, na invenção antilírica até ao osso e contudo ardente, sem pingo de condescendência, mas magnificamente sensorial, dinamitando as zonas de conforto onde a poesia moderna se instalou, mostrando que a ortodoxia é uma forma radical de heterodoxia e a mais ínfima reverência deve ser mais temida do que a maior blasfémia”…
Acaba de ser atribuído o Prémio Camões, neste ano emblemático de 2024, a Adélia Prado, poeta brasileira, natural de Minas Gerais, como Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa, formada em filosofia, professora, mãe de família, como uma obra notável. E, com inteira justiça, Adélia também receberá por estes dias o Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Na Antologia Tudo o que existe louvará, prefaciada por José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos (Assírio e Alvim, 2016), diz-se, sintomaticamente: «O religioso sem corpo é triste, incompreensível e anímico, porque é com o corpo que se ama a Deus. O corpo é que nos abre, como janela, para a transcendência: Deus só é experimentável a partir do corpo e na relação com o corpo». Ouvimo-la, com entusiasmo: «Tudo o que existe louvará. /Quem tocar vai louvar, /quem cantar vai louvar, /o que pegar a ponta de sua saia /e fizer uma pirueta, vai louvar. /Os meninos, os cachorros, / os gatos desesquivados, / os ressuscitados, /o que sob o céu mover e andar». Aqui se demonstra plenamente o que um dia disse a nossa Leonor Xavier: “Em verso e prosa, Adélia descobriu a mistura entre as pequenas tarefas de casa, as pessoas que a rodeiam, as coisas e os bichos, o sentir e o pensar, o silêncio da dúvida, a presença de Deus imediata e consciente, na inteireza da sua história de mulher”. Para Drummond: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Quem a conhece considera-a desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, seríssima no entendimento das coisas essenciais. Nela o comum e o banal encontram-se, a cada passo, com o transcendente. Como disse Pedro Mexia, «os seus textos, que evocam com frequência um meio provinciano e pobre, têm (…) algumas afinidades com o Sul profundo da ficção de Flannery O’Connor, mas enquanto a americana era violenta e sofrida, a brasileira é vitalista e sensual. Poeta de Deus e do corpo, Adélia é também poeta do corpo divinizado e do Deus encarnado».
Esta atitude aberta e generosa permite-me lembrar que nestes últimos dias celebrámos em Lisboa o 12º “Disquiet” com escritores e intelectuais norte-americanos, promovido pela editora independente Dzanc Books e o Centro Nacional de Cultura, em memória do poeta Alberto Lacerda. Disquiet, evoca o “Desassossego” de Bernardo Soares / Fernando Pessoa. Se associo o novo Prémio Camões a este encontro é porque a abertura de espírito de Adélia Prado tem tudo a ver com esta iniciativa. Jeff Parker e Scott Laughlin, com Teresa Tamen, são a alma do projeto e fazem do diálogo entre literaturas uma festa do espírito. E este ano Katherine Vaz, habitual presença no certame, lançou o romance Linha do Sal, passado na Madeira na década de 1840, sobre a separação e o encontro de duas famílias imigrantes nos Estados Unidos, entre atribulações religiosas, mas em que se sente a “alegre melancolia que é a fonte de calor da alma portuguesa”.
Em leituras natalícias, escolhemos três livros - «Joga-se aqui o essencial – Um olhar sobre o que somos» da autoria de D. Manuel Clemente (Assírio e Alvim); «Tudo o que Existe Louvará» de Adélia Prado (Assírio e Alvim) e «Deus, Religiões e (In)Felicidade» de Anselmo Borges (Gradiva). São três obras recentes, a merecerem uma especial atenção pela sua grande qualidade.
UM LIVRO DO PATRIARCA DE LISBOA «Joga-se aqui o essencial – Um olhar sobre o que somos» da autoria de D. Manuel Clemente, com posfácio de António Araújo (Assírio e Alvim) é uma excelente leitura para este Natal. São textos que dizem respeito ao período de exercício do autor enquanto Patriarca de Lisboa, de 2013 até ao presente. São homílias, mensagens pastorais e intervenções em colóquios académicos e civis, além de conferências várias. É um manancial da maior importância. Estamos, no fundo, perante uma celebração viva da comemoração dos três séculos da Bula de Clemente XI, de 7 de novembro de 1716, que concedeu ao Arcebispo de Lisboa o título de Patriarca. Os temas estão apresentados por ordem alfabética, de forma pedagógica, como D. Manuel bem aprecia e sabe, e constituem uma espécie de dicionário sobre o pensamento do autor. Leia-se, por exemplo, a propósito do Amor o seguinte: «Misericórdia é a palavra nossa que traduz todos os vocábulos com que a Bíblia nos comunica os sentimentos de Deus para com o povo eleito. Amor profundamente sentido e por isso mesmo “entranhado”; compaixão indefectível, mesmo que não correspondida; atenção prioritária aos mais pobres e humildes. Assim mesmo se traduz a misericórdia divina: um coração voltado para quem mais precisa; como todos afinal precisamos, “mendigos do amor”». Afinal, o coração compassivo, representado pela misericórdia, nas suas diferentes manifestações, pressupõe a atenção e o cuidado, que nos aproxima de quem espera por nós. E é esse o desafio ético perante o qual nos encontramos. Percebe-se como aqui se joga o essencial. Do Amor a Zigmunt Bauman, passando pelo Bem Comum Universal, pela Crise, pelo Desenvolvimento, pela Espiritualidade, por José da Cruz Policarpo, pela liberdade Religiosa, pelo Papa Francisco, por Santo António, por Sophia de Mello Breyner, pelo 25 de Abril ou por Xenofobia – todos esses pontos são referências que nos tornam mais atentos e despertos relativamente aos problemas com que se defrontam os cristãos. Em cada um dos diversos temas, do que se trata é de compreender como devemos exercer a liberdade e a responsabilidade, como devemos assumir a dignidade humana, como somos chamados a responder – sobre quem é o nosso irmão; quem é o nosso próximo. É o olhar sobre o que somos. E em mais um Natal temos de saber ouvir quem mais de nós precisa. E deste modo dar é mais exaltante do que receber, percebendo-se sempre que o amor cristão, agapé, obriga a uma troca, generosa e genuína… Como diz S. Francisco de Assis: «Oh Mestre, fazei com que eu procure mais consolar/ Que ser consolado/ Compreender, que ser compreendido/ Amar, que ser amado/ Pois é dando que se recebe/ É perdoando, que se é perdoado/ E é morrendo que se vive para a vida eterna». «O Verbo fez-Se carne e habitou em nós». Como lembra ainda D. Manuel Clemente, «podemos traduzir Verbo, a palavra latina que traduz a palavra grega “logos”, com os teólogos e, antes dos teólogos, ainda, com os filósofos, quer como «razão», quer como “palavra”» - Deus comunica-Se, Deus que nós nunca vimos… Eis como os poetas dizem mais claramente do que os próprios teólogos… Neste Natal compreendamos a Misericórdia e a Encarnação do Verbo – representadas no Presépio, desde a simplicidade dos pastores à homenagem dos sábios, a começar na paradoxal pobreza da manjedoura e de um curral para acolher um Deus Menino…
A POESIA SURPREENDENTE DE ADÉLIA PRADO Ainda na boa maré dos livros, refiro uma obra talvez inesperada, mas extremamente bela, um livro de poemas – de Adélia Prado «Tudo o que existe louvará» (Assírio e Alvim). Como disse Pedro Mexia, «os seus textos, que evocam com frequência um meio provinciano e pobre, têm (…) algumas afinidades com o Sul profundo da ficção de Flannery O’Connor, mas enquanto a americana era violenta e sofrida, a brasileira é vitalista e sensual. Poeta de Deus e do corpo, Adélia é também poeta do corpo divinizado e do Deus encarnado». Podemos compreender isso mesmo, lendo o poema «Antes do Nome», onde sentimos a importância da palavra, em ligação estreita com o Verbo «encarnado». «Não me importa a palavra, esta corriqueira. / Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,/ os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás", / o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível/ muleta que me apoia./ Quem entender a linguagem entende Deus/ cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,/ foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça, infrequentíssimos,/ se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. / Puro susto e terror».
UMA LONGA EXPERIÊNCIA VITAL «Deus, Religiões e In(Felicidade)» da autoria do Padre Anselmo Borges e prefácio de Andrés Torres Queiruga é uma reunião de oportuníssimos textos que estão divididos em três partes: O Enigma: A Morte de Deus; O Diálogo Inter-Religioso e O que traz a felicidade? Como diz o prefaciador: «realmente impressiona a longa experiência vital que está por detrás e no fundo destes textos. Experiência que inclui não só uma rica trajetória na organização de fóruns internacionais sobre o diálogo entre a fé, a ciência e a cultura, mas também amplos estudos e visitas pelo mundo universitário da Europa, e não em último lugar um intenso e vocacionado labor docente». O título remete-nos para uma atitude aberta e compreensiva sobre o fenómeno religioso e a complexidade do sagrado. E o certo é que podemos compreender que «Deus não criou por causa dele mesmo e dos seus interesses, da maior honra e glória, mas apenas por causa das criaturas, homens e mulheres, que quer ver plernamente realizados e felizes para sempre. Assim a última palavra sobre a História, e a História lê-se do fim para o princípio, não é a morte, mas a Vida, a Vida eterna, na bem-aventurança de ver Deus. Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos». E aqui está a chave da ambivalência da Felicidade. A vida é paradoxal, é contraditória, porque a liberdade e a responsabilidade não são de sentido único. É o mistério do tempo que está bem presente. «Já Santo Agostinho se abismava perante o enigma: o que é o tempo? Eu sei. Mas, se alguém me perguntar e eu quiser responder, já não sei. Porque o passado já não é, o futuro ainda não é, e o presente nunca se capta. Ah, se soubéssemos o que é o tempo, teríamos talvez descoberto o mistério de se ser e do ser». Os gregos referiam para o tempo dois símbolos contraditórios: Chrónos e Kairós – respetivamente, o tempo quantitativo e linear, sobre o qual a humanidade não pode intervir e o tempo qualitativo, enquanto crise e oportunidade, sendo as pessoas chamadas a intervir decisivamente. O tempo cronológico e devorador e o tempo kairológico é criador. A leitura é inesgotável e apaixonante!
Guilherme d’Oliveira Martins
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