Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Esta peste que nos assolou ainda vai dar muito trabalho. Mesmo com a vacinação completa, precisamos de mil cuidados. A máscara veio para ficar. Antes, admirávamo-nos com o facto de os orientais que nos visitavam ostentarem máscaras cirúrgicas que nos intrigavam. O facto é que sabemos muito pouco desta doença. Tem havido muita literatura, atual ou antiga, e milhentos especialistas (que, em bom rigor, se confundem entre eles). A ciência tem muito para dar e muito para aprender, e a verdade é que é extraordinário como ao fim de um ano já contamos com vacinas, que são preciosa ajuda. E a solidariedade? Mas não conquistámos nem a imunidade de grupo, nem qualquer certeza sobre proteção e invulnerabilidade. Houve muitas vítimas, diretas e indiretas, prudência e imprudência, responsabilidade e irresponsabilidade… No nosso panorama literário duas obras da mesma autora – uma saída antes da pandemia e outra depois, merecem referência especial. Falo de “Estar em Casa” e de “Dias e Dias” de Adília Lopes (Assírio e Alvim), preciosos auxiliares para a compreensão do inesperado fenómeno que nos atormenta, preocupa e assusta. “Estar em Casa” é de 2018 e assume um carácter quase profético. E não uso de ironia, longe disso. De facto, ao lermos os livros, percebemos a importância e a eficácia da proteção, nossa e dos outros. É verdade que fomos submetidos a uma provação, dura e inesperada, mas pudemos usar a melhor trincheira para combater o inimigo, a casa. Antes dos testes e das vacinas, estar em casa foi a medida mais eficaz. Pascoaes ensinou-nos: “Ah, se não fosse a névoa da manhã / E a velhinha janela, onde me vou / Debruçar, para ouvir a voz das cousas, / Eu não era o que sou”. E compreendemos: “O prazer do texto sim / o frete do texto não”. Ler foi o melhor refúgio. “A Tia Paulina dizia; chuva, vento frio, E também dizia: vento a puxar chuva. Eu digo o mesmo hoje aqui”. E fica-nos o desejo de poder convalescer: “Década a passar mal / e de repente o Sol / como diamantes // Estou bem / depois de estar mal”. Quanto tempo faltará ainda? Entretanto, olhamos pela janela e desejamos não “dar trabalho aos que cá ficam”… E ouvimos um médico a dizer “a novidade estimula” e outro “a capacidade de esquecimento das pessoas é muito grande”. E com linguagem profética, entre recordações sinceras de uma gata “mansa meiga bondosa macia”, temos as palavras de Sophia: “Não aceito a morte a lacuna a perda o desastre / nunca aceitarei / não me venham com tretas”.
Para mim Adília Lopes é sempre Maria José, com pelo menos cento e cinquenta anos de conhecimento. A casa da José Estevão representa a eternidade. “Na casa de jantar havia um aparador, um móvel com loiças, vidros e pratas em exposição e uma taça com frutas”. Em “Dias e Dias”, de setembro de 2020, fica demonstrado como se pode antecipar o tempo. Leio, sentidamente: “muita saúde!, muita alegria!”. Recordamos Cristovam Pavia: “Havia grandes tílias aromáticas… / E pedrinhas brilhantes, coloridas / Conforme a luz…”. E vêm à memória Camilo Pessanha e os pequenos exercícios de José Escada. Neste século e meio de conhecimento, lembramos os pratos onde se comiam os bolos – com tambores ou andorinhas. Tudo memória bem viva. Agora: “É a quarentena do coronavírus. Não devo sair de casa. (…) Aprendo muito, oiço músicas bonitas”. Ironia e dúvida: “Esta música / é linda / mas não anula / o sofrimento / não traz de volta / à vida / aqueles que amei / e que já morreram”. Ideias a fervilhar: “Acho ‘A Colher de Pau’ um livro genial. Cozinhar tem sido alucinante para mim, uma terapia. Vem aí a macacoa, a miséria? Sem esparguete, com coronavírus, a vida não é divertida. Por enquanto divirto-me”. E o que é ainda a quarentena? “Estar em casa / estar a estar / dias e dias”…
Adília Lopes acaba de publicar «Estar em Casa» (Assírio e Alvim, 2018), o terceiro volume de um conjunto autobiográfico, em que se integram «Manhã» (2015) e «Bandolim» (2016), numa série em que a originalidade e a imaginação da autora continuam a afirmar-se plenamente.
UMA CAPA FEITA DE MEMÓRIAS A capa de «Estar em Casa» é muito atraente e representa os brinquedos da infância da poetisa dispostos em cima de uma mesa em sua casa na José Estevão. De facto, a casa está muito presente não só neste livro, mas também nos volumes que o antecederam – e em toda a prolífera obra precedente. A casa é o refúgio, a proteção e a defesa. Com um finíssimo sentido de humor, inconfundível, lemos impressões aparentemente espontâneas e simples, mas profundamente pensadas, palavra por palavra… Adília Lopes tem insistido em dizer que o fascínio que sente pela obra de Sophia de Mello Breyner é exatamente originado pela busca permanente da palavra certa. E a verdade é que, ao longo da obra poética da autora, sentimos essa permanente exigência, em que a imaginação e a lucidez se ligam intimamente num objetivo determinado e exigente em que o non-sense surge de um modo cuidado como ilustração e compreensão da realidade. Ver o mundo às avessas é, assim, procurar vê-lo melhor. Como no casaco de malha, quando parecia faltar-lhe uma casa para o botão… De facto, estava mal abotoado… E lembramo-nos do gosto que José Blanc de Portugal (figura marcante da cultura, que foi tão próximo da nossa autora) tinha pelos «Disparates do Mundo» de Chesterton, que magistralmente traduziu, fácil é de fazer um paralelo com a preocupação que Adília tem em apresentar a realidade sob um ponto de vista atípico e aparentemente cómico ou até chocante, para que se compreenda melhor a singularidade do que nos procura dizer. Sobre essa marca muito especial, lembramo-nos do que disse Paula Rego, quando tomou contacto com a escrita e as recordações de Adília Lopes: «fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultraprotetoras. Adília Lopes é de um grande romantismo e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes». Não é demais dar ênfase ao extraordinário paralelismo, com as distâncias necessárias e as especificidades próprias, entre as duas, Paula e Adília.
VERSO E REVERSO DE UMA MESMA REALIDADE Não devemos esquecer o que um dia disse a autora: «Adília Lopes é água no estado gasoso e Maria José a mesma água em estado sólido». Não se trata de duas facetas diferentes de uma rica e complexa personalidade, de uma transbordante criatividade – mas de verso e reverso de uma mesma realidade, que não esconde as raízes familiares e a determinação em encontrar um caminho próprio, que a levou, naturalmente a migrar da Física para a Literatura e Linguística, numa ilustração evidente sobre as fronteiras ténues que ligam as Humanidades. Mas ficou a paixão da matemática e o sincero gosto pelo rigor científico e pela busca da incerteza. Como diria Pascoaes trata-se de se debruçar da «velhinha janela» para saber ouvir «a voz das cousas». Nunca Adília / Maria José deixou de ter uma atração especial pela Física, como antecâmara natural para uma boa compreensão do mundo da vida. E voltando a José Blanc de Portugal, nele encontramos essa ligação íntima entre o espírito científico (do geógrafo) e a paixão literária, a demonstrar que as humanidades são abrangentes, não albergando duas (ou várias) culturas distantes e separadas. «A literatura continua a ser para mim uma coisa muito séria». A água é a mesma esteja no estado gasoso ou no estado sólido. Daí a importância do conselho de Sebastião e Silva para a “utilização do Compêndio de Matemática” - «adotar um critério de escolha que elimine exercícios supérfluos e exercícios estapafúrdios». E que significa isso? Exatamente, compreender que o real quotidiano é bem mais simples e suscetível de clareza do que julgamos à primeira vista… «Gosto muito de comparações. Escrevo muitas vezes a palavra como. Como gosto muito de comer até tem mais graça». Assim mesmo – como se fosse tudo óbvio. Fernando Pessoa diz: «Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates». E Cristina Campo diz que «não tem mal nenhum uma pessoa repetir-se» Tudo depende de as ideias valerem a pena. E o que é «ser sempre criança»? É fazer da memória uma atenção permanente. «Memória / puzzle». É não esquecer. É pôr os brinquedos na mesa redonda para falarem. E é compreender a magia do escorrega – uma bela comparação para pensar e escrever.
UM MUNDO DE COMPARAÇÕES Em maré de comparações, estamos diante de um mundo inesgotável. É esse o mundo em que Adília habita, com prazer genuíno, mas também com incomodidade. «Ao fim da tarde, depois de os amigos se terem ido embora, a sombra do bule fez-me ver como sou feliz às vezes». E na casa habitam os espíritos, as lembranças, os desejos, as perplexidades – tudo. Proust encontra-se com Cesário, Agustina vai ter com Sophia, Verlaine desencontra-se com Rimbaud. Os brinquedos falam sobre a mesa. «Escrevo / esgravato / com o bico da caneta / o caderno…». No caso de «Estar em Casa» temos de entender que com ele os outros dois livros autobiográficos fazem um conjunto só. O seu valor é do conjunto, das memórias, das dúvidas, das descobertas. «Manhã» e «Bandolim» anunciam «Estar em Casa» - e os três livros ler-se-ão naturalmente em conjunto. «Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar». Se virmos bem há um fio de Ariadne que liga tudo. «Cismar tagarelar». E um médico disse que «a novidade estimula» ou ainda que «a capacidade de esquecimento das pessoas é muito grande»… Isto a propósito da senhora que era pobre e não tinha dinheiro para comprar bibelots. Por isso tinha um baú, donde ia fazendo circular os poucos bibelots que tinha, para dar a impressão de que eram muitos e novos. «Não é bom ser pobre mas é bom ter imaginação». E se agora não encontramos as «caras baratas», vislumbramos a pata firme de Lu, uma gata omnipresente que chegava aos seus dias do fim. «Acho que só os animais são capazes de amar assim tanto. Eu não sou capaz». Maria José / Adília continua a dar-nos o retrato da vida. E diz-nos ser verdade que as flores baloiçam no ar!...
Guilherme d'Oliveira Martins
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