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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

Sois vós entre as mulheres.jpg

 

  Sois vós entre as mulheres

 

Olhe, minha senhora, e depois ele costuma bater-me, aquela coisa de casamentos, não é? Mas só quando está com a pinguita, eu até lhe desculpo, porque é o vinho que fala por ele, no bater.

O meu homem até é homem respeitador, às vezes, vai buscar-me à missa de domingo e tudo, mas, já lá vão três dias e ele parecia-me sem pinga e disse-lhe para vir jantar. Nós comemos sempre junto ao lume no chão da cozinha, casa de pobres, sabe como é? Ele até olhou de lado para a minha barriga, claro, orgulhoso, pois a cria está quase a nascer e de repente agarrou no tacho de ferro da sopa e atirou-ma à barriga. Eu gritei, gritei muito e a minha vizinha ajudou-me com um táxi para o hospital e olhe como tenho a pele toda amarfanhada e solta porque a roupa se lhe pegou. Mas sabe, minha senhora, ele julgava que por cima da roupa não queimava, era mais ou menos uma brincadeira tola e mais nada, que eu até carrego o filho dele. Eu até já pedi a Deus que o não castigue. Isto foi dele ser burro e magoar sem querer. Ele nem me deixa nem nada, pois o coitado não sabe o que seria de mim sem ele, e teme-se. É assim, minha senhora, rezo sempre: Pai Nosso seja feita a vossa vontade aqui na terra e um dia no céu. E cá ando, ponho esta pomadita e uso a fralda do meu mais velho em jeito de penso. Isto vai-me passar, sou mulher de força e, às vezes, muito poucos me entendem, percebe a senhora? E até me olham com estranheza. Mas que isto é amor é, e também resignação como me cabe, é sim senhora. E tenho cortinas na minha casa, tenho sim senhora, lavadinhas e penduradas, é chita, mas da linda, da linda mesmo.

E começou a chorar com a cabeça entre as mãos enquanto dizia:

- ó, minha senhora, às vacas nada lhes falta, nem às galinhas, nem às ovelhas, nem aos coelhos, nem aos campos que neles dou de manhã à noite, e faço o pão e faço tudo porque o pobre é na pinga que se mata, e o que é dele sem mim?

Coitado, está tão arrependido do que me fez agora que dorme na furgoneta que nem portas tem e lá está arrependido e ora veja a senhora, como é que sem a pinga ele se aquecia de noite, naquele arrependimento todo na furgoneta, o pobre?

Sabe, minha senhora, eu tenho um medo de que esta doença que anda aí se lhe pegue que nem sei. Dizem que se fica sem forças. Ora se é assim como pode um dia ajudar-me? Até pode querer, mas…até dizem que pode fazer mal à cabeça. Então o que será de mim se se esquece que só de mim gosta e claro dos filhos que para ele me faz em mim?

E ele anda preocupado, tolhido mesmo, e daí a pinga, pois eu perdi gémeos no ano que passou e é como ele diz, assim só com dois, se este que aqui trago correr bem…, a ajuda do Estado é pouquinha e ainda a pinga que não o deixa trabalhar, o pobre…

É assim, pronto! isto parece coiso, mas é a vida. A Senhora é uma santa, escuta e entende, pois, nada diz. Agora vou-me embora. Tenho de ir buscar a foice para cortar o milho e como se me cansa muito este trabalho meio agachada com este peso todo na barriga, se calhar tenho o filho hoje e o homem fica-me mais calmo vendo que o quente da sopa não fez mal à criança. Ele é muito preocupado, é como eu.

Penso tanto o que é uma mulher sozinha com dois filhos faria se ao meu homem lhe chegarem doenças para o torto.

Ah, e até me esquecia do porque é que aqui vim hoje, mas gostava muito que um filho da senhora fosse padrinho do meu que está aqui aos pontapés, morto por nascer.

Então depois diga-me. Eu já disse ao meu homem que sim, para ele não se tolher mais que ele respeita muito a senhora e seu marido e toda a família pois! E já bem basta não haver dinheiro em casa, hoje, e nem para a pinguita.

Obrigada e até depois. Ficam aqui umas perinhas que trouxe das minhas árvores, docinhas como rebuçados para os seus meninos. Desculpe ser pouco, mas é do coração.

Ai, e a senhora viu na televisão aquelas mulheres com o pano pela cabeça? Ai ! ,que horror. Deus nos proteja!

 

Teresa Bracinha Vieira

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM


Minha Princesa de Além:

 

   Na minha última carta terei deixado claro não ser meu propósito esclarecer (nem tampouco investigar) as circunstâncias, as causas próximas e as propostas de soluções da atual crise afegã, muito embora possa ainda vir a adiantar algumas sugestões de análise e de pistas praticáveis. Por outro lado, continuo a insistir - como ao longo da última década - na fundamental importância de um melhor conhecimento de outros povos, culturas e civilizações para a construção de pontes e entendimentos indispensáveis a uma convivência pacífica e enriquecedora... em vez de continuarmos a ver tudo pela perspetiva do choque de civilizações ou das possíveis hegemonias das grandes potências.

   Na primeira das suas Cartas de Inglaterra, Eça de Queirós escreve sobre duas invasões do Afeganistão pelo poderoso e pesadamente armado exército britânico: a de 1847 e a de 1880. Destaco um trecho: Numa manhã avista-se Candaar ou Gasnat; - e num momento é aniquilado, disperso no pó da planície o pobre exército afegão, com as suas cimitarras de melodrama e as suas colubrinas, do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Gasnat está livre! Candaar está livre! Hurra! - Faz-se imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como Apolos, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser assim em 1880.

   No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela "fronteira científica", lá ficam, pasto de corvos - o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem retórica: aí, são os corvos que fazem a limpeza das ruas - comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas. 

   E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica... Consoladora filosofia das guerras!

   No entanto a Inglaterra goza por algum tempo a «grande vitória do Afeganistão» - com a certeza de ter de recomeçar, daqui a dez anos ou quinze anos...

   O que mais me faz refletir nesta história é o sentimento de superioridade e força que facilmente se apodera das grandes potências, levando-as a ignorar os outros povos e suas culturas, posto que estes vão sempre sendo considerados passivos ou instrumentos disponíveis e utilizáveis, ou, obsessivamente, inimigos, obstáculos ou nocividades a eliminar... No caso do Afeganistão, por exemplo, depois de russos e ingleses, vieram mais russos e soviéticos, norte americanos e NATO, al Qaeda e talibã... Mas neste caso, como em vários outros - apesar de algumas analogias com eventos já passados, e da essencial megalomania dos potentados-- mais preocupante será a opaca ignorância dos outros e suas culturas, bem como a cegueira da própria consciência de si, com a alienação das verdadeiras causas dos seus próprios atos e consequências. Explico...  

  Hoje mesmo, percorrendo jornais e revistas respeitáveis e influentes, sobretudo no universo anglo-americano, deparo com essa jeremíada interrogação sobre se a aparente derrota no Afeganistão será verdadeiramente o canto do cisne do poderio americano como polícia do mundo. Repara, minha Princesa do além de mim, que falo de derrota aparente, e também me interrogo sobre o que será um poder e o seu respetivo desastre. Afinal, e humildemente, porque não sei; ou antes será por não me parecer interessante a pergunta, nem a resposta. Aflige-me a endémica mania das grandes potências se servirem de, ou subsidiarem, mais pequenos, frágeis ou iludíveis, para custearem a prossecução dos seus interesses próximos. Se repararmos bem, os EUA apoiaram, militar e financeiramente os talibã contra os soviéticos, em tempos de guerra fria, tal com são garantes da aliança israelo-saudita, no jogo das potências regionais do médio oriente, ao ponto de parecerem ter esquecido que a Al Qaeda, autora dos atentados de 11 de Setembro de 2001 - cujo 20º aniversário agora decorre - é de raíz wahabita e saudita, e por essa facção islâmica - e o reino que a aconchega - sustentada.

   Não seria mais avisado, sobretudo em tempos de renovação energética, ir-se abandonando a extrema dependência petrolífera do médio oriente arábico, e conduzir uma política de encontros entre culturas e religiões? Hipótese que, aliás, ganha nova força se pensarmos que, por um lado, a maioria dos estados muçulmanos são hoje repúblicas laicas e seculares, e que a renovação do pensamento religioso, ou teológico, islâmico conta, em todo o mundo, com um número crescente de escolas e seguidores? Ainda muito recentemente, o sociólogo do Islão Reda Benkirane defendia que o apregoado regresso da religião muçulmana é, na realidade, uma saída do Islão da política, mantendo-se a sua invocação apenas como instrumento de legitimação do poder, de forma a produzir a ilusão da transcendência deste...

   Num mundo que consideramos crescentemente global, insisto, o conhecimento e respeito mútuo das culturas e religiões, das diferentes comunidades humanas é o passo pioneiro no longo caminho para uma paz consciente. Em futuras cartas, minha sempre princesa do Além, falaremos dos movimentos ecuménicos que foram despertando - e até dando frutos - ao longo da nossa atribulada história, bem como das místicas que os sustentaram. Por hoje, quero tão somente transcrever um trecho da biografia de frei Sérgio de Laugier de Beaurecueil, escrita pelo seu confrade dominicano frei Jean-Jacques Pérennès (Passion Kaboul, Le Cerf, Paris, 2014):

   Único padre católico - ou quase - no Afeganistão, ele vive com a questão do «mistério do Islão», tal como Jorge Anawati [este, dominicano egípcio, co-fundador, com Beaurecueil, do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo]. Ambos não escondiam a sua admiração pelo franciscano marroquino Jean-Mohamed Abd el-Jalil, cuja conversão ao cristianismo não tinha alterado a estima pela religião dos seus pais. No seu belíssimo livro «Aspects Intérieurs de l´Islam», Abd el-Jalil esforça-se por apresentar o interior da religião em que nascera, a fim de lhe revelar a profundidade espiritual. Religioso cristão completamente imerso no mundo muçulmano, Serge de Beaurecueil era, ele também, sensível ao caminho espiritual percorrido por vários muçulmanos com que lhe era dado encontrar-se.  

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM

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   Minha Princesa de Além:

 

   Caiu-me outra vez em cima aquele anúncio da RTP, empresa pública de televisão, a propagandear a possibilidade dos seus espectadores poderem ver os melhores programas em directo ou on demand... No nosso tempo, Princesa ainda de mim, dir-se-ia a pedido... Mais claramente, e em português. Mas "eles" é que são o serviço público...

   Tal possidónia advertência calhou no meio de entrevistas e comentários acerca dos recentes acontecimentos no Afeganistão. Para além dos muitos habituais erros de português dos "nossos" locutores(as) em directo ou "on demand" (de quem?), apenas se foram repetindo os cansados discursos ideológicos que teimosamente pretendem saber analisar e explicar as situações dramáticas em que se encontram milhões de vidas humanas, sobretudo porque as chamadas grandes potências persistem em perspectivar e realizar as suas políticas de acordo com critérios ordenados por considerações exclusivas do que entendem ser os seus imediatos interesses próprios. Tenho para comigo que a complexidade da presente questão islâmica, e, sobretudo, o crescente poder disruptor dos movimentos extremistas (quiçá mentecaptos) sobre a necessária convivialidade das comunidades e culturas que integram a nossa sociedade global, não podem ser enfrentadas por perspectivas imediatistas, quer na nossa reflexão, quer no labor da construção de pontes e entendimentos. Aliás, não esqueçamos que Portugal, por exemplo, não tem de seu qualquer centro capaz de estudos islâmicos, nem de línguas e culturas orientais (do médio ao extremo oriente)...

   Quando falo ou escrevo sobre Serge de Beaurecueil, dominicano francês, saído do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo e professor de mística persa na universidade de Cabul, poucos portugueses sabem quem ele foi, menos ainda saberão falar sobre essa matéria ou acerca da poesia persa que teve no Afeganistão alguns dos seus melhores cultores. Foi aliás aí, na pátria da primeira religião monoteísta (a de Zoroastro) que, ao longo dos tempos, foram surgindo muitos - e dos maiores - místicos muçulmanos da Ásia ocidental. Não foi por acaso que um padre católico foi titular de uma cátedra de mística persa na universidade da capital afegã. Sem que houvesse sincretismo, a convivência de várias religiões foi-se desenvolvendo em espírito ecuménico.

   O professor Thomas Sizgorich, no seu Violence and  Belief in Late Antiquity - Militant Devotion in Christianity and Islam (Filadélfia, 2009) aponta bem como o Islão parece ter conhecido, desde os seus primórdios, a coexistência do combate bélico com uma luta ascética contra as fraquezas humanas. E Sizgorich relaciona o Islão nascente com antecedentes da antiguidade tardia, através da figura do monge cristão, voluntariamente violento por Deus e contra os seus próprios vícios. Philippe Buc, professor nas universidades de Viena (Áustria) e Stanford (EUA), no seu Holy War, Martyrdom and Terror - Christianity, Violence and the West (Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 2015), explica: Maomé e aqueles que, com ele, contribuiram para criar a tradição viviam, de facto, numa ecumenecidade abraâmica, em que lado a lado estavam todos os géneros de monoteísmos, entre os quais várias seitas cristãs. Para estas, os monges desempenhavam o papel de figuras exemplares, portadoras de sentido, guardiãs da identidade e da pureza religiosa dos seus grupos, em razão da sua capacidade de sofrer o martírio e de reagir com força contra o que consideravam desvios dogmáticos. Assim surge, muito precocemente, um dispositivo análogo à combinação combate material/combate espiritual, característica das trajectórias ocidentais. O jihad dito «maior», equivalente da «militia spiritualis», todavia, só foi teorizado nos séculos  X-XI, sobretudo por sufis desejosos de proclamar a superioridade dos combates interiores contra os vícios. A direcção primeira da elaboração teológica muçulmana iria assim de uma revelação complexa a uma simplificação que daria prioridade à espada, enquanto que o jihad «maior», equivalente islâmico da guerra espiritual cristã apenas obteve um estatuto comparável (e, até, superior) ao do jihad material, já relativamente tarde. 

   Convém recordar aqui que a expansão islâmica inicial foi uma "guerra santa" de conquista, em que o proselitismo religioso sustentava políticas e guerras conduzidas pelos primeiros califas que, aliás, nas suas escolas corânicas (em que o ensino se fazia em árabe, a «língua de Alá») iam acrescentando, conforme os seus objectivos e estratégias, os hadith ou ditos do profeta, que hoje desempenham um papel fundamental na pregação da facção sunita do Islão. A prioridade da espada, por outro lado, também pode explicar o estatuto das mulheres nas comunidades mais radicais, designadamente nos reinos e emiratos da Arábia e Golfo Pérsico e nos movimentos extremistas como os talibã. E se considerarmos o martírio da morte em guerra santa numa perspectiva apocalíptica, melhor perceberemos porque são virgens que aguardam a chegada dos mártires à outra margem. Mas disso falaremos em próxima carta.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

CANDIDE EM RITMO MUSICAL…

 

  Queridas Amigas, Queridos  Amigos :

 

   Estou preparando um texto sobre o Afeganistão. Seguirá na próxima semana.

   Entretanto, envio-vos esta carta escrita há oito anos, que, pensossinto, nos poderá ajudar a olhar de outro modo para a gente afegã e a nossa relação com esse povo. Curiosamente, na antiguidade, a região do Afeganistão chamava-se Ariana.

   Abraço amigo do

                                Camilo Maria

 

 

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    Minha Princesa de mim:

  Cá estou em New York, no Plaza, escrevendo sentado em frente da janela do meu quarto, aberta sobre o Central Park. Sinto e penso, penso e sinto a imensa, misteriosa ternura em que sempre te trago envolta no coração. Não há nela qualquer luxúria, nem o menor desejo de posse. Sou eu possuído por ela, misteriosamente fiel a esse enlevo, entregue a um movimento da alma que me transporta a contemplar-te,  no íntimo de mim, com infinito carinho.

  Conta o Génesis que, ao sexto dia, "Deus viu tudo o que tinha feito; e que tudo era muito bom"... Creio que há, no amor humano, uma força criadora: ao contemplar-te como agora, alegro-me como se fosses criatura minha. És um ser de mim, que não posso destruir nem sequer diminuir, mas com quem me enlevo e elevo. É curiosa palavra essa que pronunciamos "ternura". Em latim, talvez devêssemos dizer "pietas" ou "caritas". Não lhe vislumbro melhor tradução. "Pietas" encerra um sentimento de respeito do outro até à compaixão, que não é ter pena, antes é estar e padecer com. "Caritas" é amor e também, porque somos paradoxo, carestia. O amor é caro, não só no sentido da amizade que nos leva a tratar outro por "meu caro", mas porque o que nos é querido, o que benqueremos e a que queremos bem, nos leva a nós também e é difícil: pode custar muito, é caro. A ternura é o amor já manso, ser terno é ser tenro ("tendre" em francês), é aceitar ser comido, como na eucaristia: "eucharistein", em grego, quer dizer "dar graças". É agradecer ao outro esse poder amá-lo.

  Durante a Ceia, Jesus oferece-se na partilha do pão e do vinho, seu corpo e sangue. Entre os primitivos cristãos, a celebração da eucaristia era uma verdadeira refeição, partilhada e fraterna, em que todos se reconciliavam com todos e com Deus. O Padre de Beaurecueil, frei Sérgio, testemunhou Cristo no Afeganistão, onde durante décadas foi o único padre cristão ali residente. Proveniente do Instituto Dominicano de Estudos Orientais, fluente nas línguas árabe e persa, foi-lhe atribuída a cátedra de História da Mística Muçulmana na Universidade de Kabul. Vivia numa casinha modesta, onde instalara uma capelinha, cujo orago era Santo Abraão, Pai dos Crentes. Um dos livros em que relata a sua experiência em meio muçulmano intitula-se. "Nous avons partagé le pain et le sel"...

  Na verdade, ganhara o hábito de partilhar todas as semanas, alternadamente em sua casa ou na de outro conviva, uma refeição com muçulmanos. Nessa ocasião cumpriam o costume afegão da partilha do pão e do sal, como compromisso de amizade fraterna. Do pão que lhe cabia, guardava então um pedaço que, ao cair do dia, quando se recolhia na sua capelinha e aí celebrava missa, consagrava. Num texto admirável que dedica ao seu confrade e mestre, padre Chenu, cita um versículo da primeira carta de S. Paulo aos Coríntios: "Porque há um só pão, todos nós juntos formamos um só corpo, pois todos nós temos parte nesse pão único". E, mais adiante escreve: "Na solidão da minha capelinha partilho o pão, como fez Jesus, como fazem os meus irmãos... Reúno, confundo, o seu gesto com o deles. Torno-me num só Corpo com Ele, como me tornei num só Corpo com eles. Em mim se opera o Encontro, jorra a Água viva que os desaltera,escorre o Sangue que os purifica... E este mistério só se realiza porque, antes de subir ao altar, humildemente, com infinito amor e respeito, correspondendo ao seu convite fraterno, com eles partilhei o pão e o sal". E falando do Dia do Juízo, na sequência das palavras de Jesus ("tive fome e destes-me de comer"...), diz: "Não lhes perguntarão se eram budistas, cristãos, muçulmanos, judeus, sikhs ou hindus. Não lhes perguntarão se jejuaram ou se cumpriram fielmente as suas orações. Julgá-los-ão pela partilha do pão e do sal, pela hospitalidade, pelo amor".

  Soube-me bem voltar à leitura - a este convívio interior - do nosso frei Sérgio. Sinto-me próximo dele, não porque a ele me possa comparar, mas pelo acolhimento que ele me oferece. Recolhi-me a esta proposta de partilha do pão e do sal, depois de ter assistido, esta tarde, à ópera "Candide" do Leonard Bernstein no New York City Opera, sito também no Lincoln Center, em frente do MET. Gostei da animação da música, do tratamento lúdico que ela dá ao romance que Voltaire criou ... Quiçá para se desembaraçar de exercícios filosóficos que pretendem contestar Deus e explicar o Mal! Ou simplesmente para nos contar uns anos da sua vida! "Candide, ou l´Optimisme", afinal, joga e brinca com o mito dos paraísos perdidos, da ilusão ou efemeridade da sua redescoberta...

  O filósofo Pangloss, que propõe a ideia ou a ilusão da felicidade alcançável, é morto em Lisboa, significativamente enforcado  -  em vez de queimado  -  pela Inquisição. Numa Lisboa que o terramoto de 1755 não poupou, merecendo aliás de Voltaire o "Poème sur le désastre de Lisbonne" que, até certo ponto tem ressonâncias bíblicas e "pascalianas". Só que Pascal dirige a Deus as interrogações do desamparo humano, e Voltaire, mesmo no jeito gozado do "Candide" não escapa à tentação da revolta. Contudo, ainda acho sublimes estes versos do "Poème: "L´homme, étranger à soi, de l´homme est ignoré. / Que suis-je, où suis-je, où vais-je, et d´où suis-je tiré? / Atomes tourmentés sur cet amas de boue, / Que la mort engloutit et dont le sort se joue... / Au sein de l´infini nous élançons notre être, / Sans pouvoir un moment nous voir et nous connaître." Mas no romance, até Pangloss acaba revivo, para poder contestar a Candide, que lhe pergunta se, mesmo quando enforcado, etc... continuava a pensar que tudo corria pelo melhor no mundo: "Mantenho o meu primeiro sentimento, porque afinal sou filósofo: não me convém desdizer-me, pois Leibniz não pode enganar-se, e a harmonia pré-estabelecida é a coisa mais linda do mundo..." Candide casa-se com Cunégonde e, no sossego produtivo e abastado em que vivem, encerra o romance dizendo: é preciso cultivar o nosso jardim."

  Enquanto para Voltaire, tudo sendo tragédia ou ilusão, a cura ideal é outra ilusão, para o dominicano Sérgio de Laugier de Beaurecueil, há no coração do mundo uma íntima comunhão com Deus, os outros e tudo... Só entrando nela vencemos o absurdo e a ilusão, e chegamos a esse espaço de luminosa alegria, para exclamar :"Tudo é graça!”.

  Camilo Maria nem em New York esquecia o "seu" Bernanos.

  

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 19.07.2013 neste blogue.