Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Eis um fantasma prazenteiro. Este pode ser encontrado amiúde onde menos esperamos. Apesar de ter sido criado no século XVI, continua a falar connosco e a dizer-nos algo que compreendemos. Mestre Gil (“um que não tem nem ceitil e faz os aitos a el-rei”) criou-o em junho de 1502 para saudar o nascimento do futuro D. João III, a pedido da Rainha Velha, irmã de D. Manuel e viúva do Principe Perfeito. Mas a verdade é que este vaqueiro é símbolo de quem somos, ainda hoje. A ilustração de Roque Gameiro apresenta-nos quem não se coíbe de dizer o que bem lhe apraz, mesmo na presença da Corte em toda a sua pujança. Poderíamos lembrar-nos de Todo o Mundo e Ninguém do Auto da Lusitânia (que Almada Negreiros recriou como um diálogo de gémeos) ou do impagável Pranto de Maria Parda (que António Tabucchi simbolizou como o nosso picaresco), mas preferimos neste folhetim citar hoje a talvez primeira personagem do elenco vicentino. Pode dizer-se que o vaqueiro é uma síntese sábia e rica. Afonso Lopes Vieira reescreveu este monólogo do Auto da Visitação e quantos de nós dissemos de cor a sua versão atrevida, crítica e simpática. E recordamos Ruy de Carvalho, nos primórdios da televisão portuguesa, como homenagem à fundação do moderno teatro português. «Sete arrepelões me deram á entrada, mas eu dei uma punhada num de aqueles figurões. Porém, se de tal soubera, não viera; e, vindo, não entraria; e se entrasse, eu olharia de maneira que nenhum me chegaria. Mas, está feito, está feito; e, se se for a apurar, já que entrei neste lugar tudo me sai em proveito. Té me regala ver coisas tão formosas, que se fica parvo a vê-las! Eu remiro-as, porém elas, de lustrosas, a nós outros são danosas».
Mas, continuemos a ouvir a toada do vaqueiro, sem papas na língua. «Seja que não seja, embora, quero dizer ao que venho, não diga que me detenho a nossa aldeia já agora. Por ela vim saber cá se certo é que pariu Vossa Nobreza? Crei' que sim, que Vossa Alteza tal está que de isto mesmo dá fé. Mui alegre e prazenteira, mui ufana e esclarecida, mui perfeita e mui luzida, muito mais que de antes era. Oh!, que bem tão principal, universal! Nunca se viu prazer tal! Por minha fé - vou saltar! Eh!, zagal, diz' lá, diz' lá:—saltei mal?» (…) E prossegue com desenvoltura: «Se agora vagar tivera e depressa não viera, maldito seja eu então se aqui a conta não dera de esta sua geração. Será rei Dom João Terceiro, o herdeiro da fama que nos deixaram, nos tempos em que reinaram, o Segundo e o Primeiro e ind'outros que passaram. Mas ficaram-me lá fora uns trinta ou mais companheiros, pastores, zagais, porqueiros, e vou chamá-los agora; eles trazem p'ra o nascido esclarecido, ovos e leite fresquinhos, e um cento de bolinhos; mais trouxeram queijos, mel - o que puderam… E ora os quero ir chamar, mas, por via dos puxões, agarrem os figurões p'ra gente poder entrar».
Cabe neste ponto do folhetim explicar alguma coisa para que o leitor perceba do que se trata. Se ainda não compreendeu, o certo é que em cada capítulo há um pequeno segredo que só no final será revelado. Já percebeu que há fantasmas que se encontram e desencontram. Ainda ontem estávamos numa comédia de enganos e hoje encontramos um audacioso discurso. Porquê?
Zygmunt Bauman, ao contrapor os exemplos do caçador e do jardineiro, põe a tónica na ligação necessária entre conhecimento e sabedoria. O caso do semeador ou do jardineiro, de facto, é muito fecundo. Falamos da essência da criação pela cultura. Muitas têm sido as iniciativas deste Ano Europeu do Património Cultural. E todos somos chamados a assumir a capacidade de garantirmos que quando recebemos o património material, natural ou contruído, e imaterial, bem como a criação contemporânea, estes devem ser preservados, protegidos, beneficiados e transmitidos nas melhores condições às gerações futuras. Não esqueçamos a etimologia que liga patres e múnus – o serviço do que recebemos de nossos pais. Eis porque o conceito de património cultural é dinâmico. A atenção e o cuidado têm de estar bem presentes, em especial quando tratamos do património onde quer que se encontre, na esfera pública ou privada, civil ou religiosa. Não deixar ao abandono esse património, significa protegê-lo – e essa proteção leva a cumprir algumas regras muito simples, mas essenciais:
(a) antes do mais, ter os bens com valor patrimonial em segurança;
(b) não deixar tais bens sem vigilância, sobretudo quando houver presença de público;
(c) só entregar a conservação e o restauro a especialistas com provas dadas;
(d) recusar intervenções de amadores ou de meras boas intenções;
(e) no caso de dúvida sobre o que fazer, consultar especialistas;
(f) sempre que há um bem ou uma peça em perigo deve ser guardada até que haja condições para ser restaurada nas melhores condições;
(g) realizar inventários rigorosos, que permitam conhecer o que existe e as suas características fundamentais;
(h) realizar fotografias e ter uma identificação precisa do que existe.
Lembremo-nos que uma medida tão simples como o fecho dos templos ou edifícios históricos quando não há um vigilante presente, permitiu uma redução drástica dos furtos, assaltos ou degradação de bens patrimoniais. Do mesmo modo, o projeto SOS Azulejo, que obteve o Grande Prémio da Europa Nostra também permitiu, graças a medidas de prevenção, uma proteção efetiva de conjuntos com valor histórico e artístico.
Muitas vezes, mais importante do que mobilizar ou reclamar vultuosos meios financeiros, torna-se essencial cumprir procedimentos simples que evitam perdas irreparáveis. Usar tintas ou colas desadequadas, utilizar materiais não aconselháveis, recorrer ao cimento armado sobre pedra, não usar dos mesmos materiais originalmente utilizados, – tudo isso pode ter como consequência a destruição irremediável de bens patrimoniais que duraram vários séculos e que mercê de uma intervenção errada são destruídos. É mais importante ter um inventário estudado e atualizado do que tentar fazer pseudo-restauros por amadores com consequências irreparáveis. Paralelamente, é importante dar a conhecer o património existente, através de ações pedagógicas com escolas ou associações da sociedade civil. Segundo o Euro-barómetro, publicado a propósito do Ano Europeu, os portugueses salientam-se pela positiva no reconhecimento da importância e do valor do património, mas também pela negativa ao terem sido dos menos classificados quanto a visitas a museus ou a ações concretas em prol do património cultural.
Lembremos a poesia de Afonso Lopes Vieira, sobre um jardineiro…
«Não há jardineiro assim, Não há hortelão melhor Para uma horta ou jardim, Para os tratar com amor.
É o guarda das flores belas, da horta mais do pomar; e enquanto brilham estrelas, lá anda ele a rondar...
Que faz ele? Anda a caçar os bichos destruidores que adoecem o pomar e fazem tristes as flores.
Por isso, ficam zangadas as flores, se se faz mal a quem as traz tão guardadas com o seu cuidado leal.
E ele guarda as flores belas, a horta mais o pomar; brilham no céu as estrelas, e ele ronda, a trabalhar...
E ao pobre sapo, que é cheio de amor pela terra amiga, dizem-lhe que é feio e há quem o mate e persiga
Mas as flores ficam zangadas, choram, e dizem por fim: - «Então ele traz-nos guardadas, e depois pagam-lhe assim?»
E vendo, à noite, passar o sapo cheio de medo, as flores, para o consolar, chamam-lhe lindo, em segredo...»