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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

  


APÊNDICE. UMA CARTA DE FRADIQUE…


Meu Caro Amigo Agostinho de Morais


Muito hesitei em pegar na pena, para lhe dirigir breves palavras, depois de terminado este desfortunado folhetim. Começo por me abster de comentários, uma vez que sabe, melhor que ninguém, como me importuna e incomoda esta constante chamada de atenção ao facto de eu continuar vivo, para mal dos meus pecados. Não confirmo nem desminto. Mantenho-me. Mas peço encarecidamente que me deixem em paz. Não tomei nenhum elixir, não sei que tem este meu genoma, apenas sei que um protagonista romanesco não está condicionado pelas leis da existência humana. Por isso aqui estou. Agora sou acusado de um crime. É verdade que é benigno, mas desejo que esclareçam os leitores, de uma vez por todas, que não matei ninguém. A condessa de W. equivocou-se ao misturar o enredo do Mistério com o epílogo deste folhetim. Ainda hoje não sei o que aconteceu na Estrada de Sintra. Sei, sim, que neste folhetim de folhetins, juntando variados espíritos e sombras, o que estava em causa era a ameaça relativamente à vida e permanência da Lusitana Língua. Daí o encontro de tantos intervenientes. E se não foi chamado à colação Luís de Camões é porque ele continuará a ser um garante dessa vitalidade, como o Padre Vieira. Eles são exceção!  


O senhor Jaime Ramos interrogou Com a ajuda do meu ilustre amigo, os diferentes suspeitos: todos por igual fantasmas: Justino Antunes, Conselheiro Torres, Coronel Segismundo, Conselheiro Acácio, Luísa do “Primo Basílio”, o inefável Pacheco, Zé Povinho, Joãozinho das Perdizes, o Bispo de  Viseu, Calisto Elói de Barbuda, Corto Maltese, Sandokan, Gastão de Sequeira, Fernão Mendes Pinto, António José da Silva, o Vaqueiro do Auto da Visitação, Frei Dinis, Carlos e Joaninha, o conde de Abranhos, Camilo Castelo Branco, Antunes e Judite, Jaime Ramos, Luísa, a condessa de W., Garrett (ele mesmo) com Duarte Guedes, Amália, Josefina e José Félix, D. Raymundo de Barbela, o cavaleiro e a bela Madeleine, Pessoa como Hamlet, e (à ultima da hora) Quina e Germa. Duas horas de interrogatório. O senhor Ramos foi sistemático e concordei com ele.


De facto, a Lusitana Língua existe graças a um povo, a uma grei, que de modo determinado continua a exprimir-se, a escrever, a comunicar, a tornar viva uma identidade nobre. Por isso, neste momento, apenas tenho a recordar que sempre que venho a Portugal cumpre-me «retemperar a fibra» percorrendo a província, lentamente, a cavalo, com demoras em vilas decaídas, que me encantam, com infindáveis cavaqueiras á lareira, fraternizações nos adros e nas tavernas, idas a festivas a romarias em carro de bois, vetusto e venerável, toldado de chita, enfeitado de folhas de louro. A minha região preferida é o Ribatejo, a terra chã da lezíria e do boi. Aí, de jaleca e cinta, montado num potro, com a vara de campino erguida, correndo entre as manadas de gado, nos finos e lavados ares da manhã, sinto, mais que em nenhuma outra parte, a delícia de viver. Esse sou eu. «Com três fortes retoques (escrevi em 1881, do Hotel Braganza), com arvoredo e pinheiros mansos plantados nas colinas calvas da Outra-Banda; com azulejos lustrosos e alegres revestindo as fachadas sujas do casario; com uma varredela definitiva por essas benditas ruas, Lisboa seria uma d'essas belezas da Natureza criadas pelo Homem, que se tornam um motivo de sonho, de arte e de peregrinação. Mas uma existência enraizada em Lisboa não me parece tolerável. Falta aqui uma atmosfera intelectual onde a alma respire. Depois certas feições dominam. Lisboa é uma cidade aliteratada, afadistada, catita e conselheiral. Há literatice na simples maneira com que um caixeiro vende um metro de fita; e, nas próprias graças com que uma senhora recebe, transparece fadistice: mesmo na Arte há conselheirismo; e há catitismo mesmo nos cemitérios. Mas a náusea suprema, meu amigo, vem da politiquice e dos politiquetes».


Peço, assim, encarecidamente, que me deixem na paz que mereço (como o magistral Trinca-Fortes). E que abandonem a ilusão de me procurar por toda a parte. Encontrar-me-ão, é certo. Mas gostaria de me manter tão só nas minhas páginas, tanto quanto possível. A minha vida é isso mesmo. Em mim não há literatice, nem fadistice, nem conselheirismo, nem catitismo. Sou eu, apenas Fradique, na plenitude de minhas virtudes! Aceite, pois, um grato e sincero abraço do


Carlos Fradique Mendes



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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XVII. ALECRIM E MANJERONA

 

Um dos fantasmas mais perturbadores da nossa história cultural é António José da Silva, o Judeu (1705-1739), nascido no engenho do avô materno, Baltazar Rodrigues Coutinho, no bairro da Covanca, em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Seu pai era João Mendes da Silva, advogado e poeta. Ainda muito jovem foi viver para a freguesia da Candelária. Cristão-novo, sendo vítima da perseguição que dizimou a comunidade do Rio em 1712. Contudo, conseguiu manter a fé judaica secretamente. Sua mãe, Lourença Coutinho, foi deportada para Portugal, acusada de judaísmo pela Inquisição. Seu Pai veio para Portugal para acompanhar o processo da mulher, exercendo a atividade de advogado. António José estuda, provavelmente, no Colégio de Santo Antão e, em 1722, inscreve-se para estudar Leis e Cânones na Universidade de Coimbra. Em 1726, interrompe os estudos, regressando a Lisboa onde é acusado num primeiro processo inquisitorial. Também sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar, são acusados de práticas judaizantes e condenados à abjuração. Em 13 de outubro, António é preso nos Estaus. Apesar de amigo do influente diplomata Alexandre de Gusmão, Conselheiro de D. João V, foi barbaramente torturado, tendo ficado inválido durante algumas semanas, sendo obrigado a abjurar no Auto-de-fé de outubro desse ano. Foi posto em liberdade, o que não aconteceu com sua mãe, libertada em 1729, depois de ter sido torturada e de ser considerada penitente num auto-de-fé. António José tem os seus bens confiscados e é condenado a pena de cárcere, hábito penitencial perpétuo e exigência de ser instruído nos mistérios da fé. Então voltou à dramaturgia depois de um curto período como causídico no escritório de seu pai com o irmão Baltasar. As suas sátiras têm grande sucesso, pela eficácia da crítica ao ridículo da sociedade, com referências frequentes à mitologia greco-latina. A única música operática que sobreviveu foi composta por António Teixeira. O sucesso artístico agravou, porém, a perseguição de que foi alvo. Nem a proteção do Conde da Ericeira impediu a perseguição.

 

Luís de Freitas Branco considerou António José da Silva o verdadeiro fundador da ópera nacional. Sem ele teriam decorrido trezentos anos da nossa história do Teatro, depois de Gil Vicente até Garrett, sem uma dramaturgia digna de registo. Pode dizer-se que António José da Silva simboliza no teatro português o período que corresponde ao reinado de D. João V, em pleno ideal barroco, envolvendo a luxúria e a ostentação de uma faustosa corte, beneficiária dos lucros do ouro do Brasil. Havia um chocante contraste entre a opulência e as misérias de uma sociedade frágil, pobre e atrasada e a Inquisição atuava impiedosamente, perseguindo judeus e cristãos-novos. Em 1733 representa no Teatro do Bairro Alto a sua primeira ópera, “A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança”. Morava então no Socorro, próximo do Teatro do Pátio das Arcas, que funcionava onde hoje é a rua Augusta, fundado por Fernão Dias de La Torre cerca de 1590. O teatro ardera em 1697, mas fora reconstruído como importante pátio de comédias, cujas receitas revertiam a favor do Hospital de Todos os Santos. Sente-se a influência da comédia espanhola, nomeadamente de Lope de Vega e Calderon de la Barca, designadamente pelo espírito inconformista segundo os ideais barrocos e os cânones usados em Itália e nos palcos europeus. O artista vive o espírito do tempo segundo uma arte menos retórica e mais ocupada com o deleite dos sentidos. António José da Silva escreve sobretudo em prosa, sendo que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; inserindo a música na intriga dramática, de acordo com o modelo de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano. No Teatro do Bairro Alto, numa sala do Conde de Soure, na rua da Rosa, adaptada às lides teatrais, chamada Casa dos Bonecos, António José faz representar entre 1733 e 1739 as oito óperas que lhe são atribuídas: D. Quixote (1733), Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), esta última quando o autor se encontrava encerrado nos cárceres da Inquisição. Em 1735, António José da Silva casa-se com Leonor Maria de Carvalho, antiga penitenciada em Valhadolid, de quem tem uma filha Lourença. As suas peças e representações obtêm grande sucesso de público e reconhecimento nos meios cultos. Após a morte do Conde da Ericeira foi denunciado à Inquisição. Em 1737 é preso com a mulher, a mãe, o irmão e a cunhada durante as cerimónias judaicas de Yom Kipur. Após um longo processo é condenado em 1739 de convicto, negativo e relapso, sendo relaxado em carne, garrotado e queimado. Em 1744, Francisco Luís Ameno publica “Teatro Cómico Português” (2 volumes) onde se incluem as oito obras de António José da Silva, sem menção de autoria. Trata-se do exemplo de quem representa a vitalidade da cultura portuguesa, impondo-se contra a cegueira da intolerância. Falando das extraordinárias guerras, com música de António Teixeira (1707-1774), estamos perante uma ópera joco-séria, na qual dois galantes, pinga-amores e caça-dotes, D. Fuas e D. Gilvaz procuram cair nas boas graças de duas irmãs ricas, D. Clóris e D. Nise, utilizando o criado de Gil, Semicúpio, cheio de graça, entusiasmo e genica. As meninas andam disfarçadas, mas revelam a sua identidade por levarem uma um ramo de alecrim, outra um ramo de manjerona. Semicúpio arma estratagemas para introduzir o patrão na casa da pretendida, mas acaba por se enamorar de Sevadilha, criada de Clóris. Se o avarento D. Lançarote, tio das meninas, deseja casá-las com seu sobrinho D. Tibúrcio não consegue graças às artimanhas de Semicúpio – e no final, desfeitos os equívocos da comédia de enganos, casam-se os namorados e Semicúpio com Sevadilha.

 

Agostinho de Morais

 

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XVI. SEMPRE FERNÃO MENDES PINTO

 

É inesgotável a leitura da «Peregrinação». E ainda há muito caminho a fazer para compreendermos a importância desta obra única. Este é o fantasma com quem mais gosto de lidar. É um espírito autêntico, daqueles que a história nos reserva e podemos encontrar onde menos se espera. Ele, de facto, deixou toda a sua vida bem marcada no tempo e se houve quem duvidasse da sua existência e da sua verdade, fica-nos a certeza de que a personagem de António Faria é mesmo meio pessoa meio fantasma, por ser uma espécie de alter ego de Fernão Mendes. No seu caso nunca saberemos a verdade absoluta, mas sabemos, de ciência certa, que tudo o que ele passou foi algo que não deixou de acontecer, qualquer que seja o protagonista… Fernão Mendes Pinto construiu, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, com estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». Eis uma vantagem fantástica. Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto nos relatou. Pode até ter acontecido que não sendo ele, Fernão Mendes, o real protagonista de tudo, facilmente entendemos que tudo ocorreu de facto. E os estudiosos desse período são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos disseram sem ler Fernão Mendes Pinto. Enquanto as personagens dos cronistas talvez tenham feito o que dizem, as da “Peregrinação” marcaram mesmo a sociedade em que viveram e ainda hoje são relevantes…

 

O Padre Adelino Ascenso, missionário experimentado e culto com larga experiência no Japão, tem tido oportunidade de explicar urbi et orbi o difícil romance de um profundo entendido nas relações com os portugueses Shusaku Endo “Silêncio” (que Martin Scorsese levou à teka), sobre a apostasia de um jesuíta português no século XVII: “O Senhor não ficará em silêncio. Mesmo admitindo que Ele se mantenha calado, toda a minha vida até hoje falará d’Ele para todo o sempre”. Estava em causa a barreira de cultura entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. No entanto, o cristianismo no Japão é heterogéneo e surpreendente – há os mártires e os cristãos escondidos, os que deram testemunho e os outros, que preferiram mergulhar na vida japonesa, dilacerados entre a fidelidade do gesto e a fidelidade do princípio, tendo como fundo o silêncio dramático da dúvida e do remorso. “Podes pisar-me!” – parecia dizer Cristo representado no “fumie” usado para consumar a negação. Afinal, há o mistério do silêncio – ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima. A distância cultural é mais forte do que os julgamentos precipitados. Fernão Mendes deve ser lembrado (como António Alçada gostava de fazer), sobre uma célebre conversa do Mestre Belchior com o rei japonês do Bungo: «o padre lhe tornou que muito satisfeito estava de seu bom propósito, mas que se lembrasse que a vida não estava nas mãos dos homens, pois todos eram mortais, e se ele acertasse de morrer antes (de se batizar), onde iria a sua alma? Ao que ele, sorrindo-se, disse: - Deus o sabe…».

Agostinho de Morais

 

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XV. RELENDO A “PEREGRINAÇÃO”

 

O caderno de capa vermelha de que já vos falei não só tinha notas sobre o itinerário de Maltese, mas também sobre a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, a obra fundamental sobre a presença dos portugueses no mundo. E João Bénard da Costa ajuda-me, ao citar Jean-Louis Shefer, quando nos fala da “doce loucura de falar com fantasmas na metade da vida”. Assim me sinto neste folhetim, onde a memória significa lidarmos constantemente com aqueles que já cá não estão, estando. E isso é um fantástico motivo para vivermos a eternidade. Atenhamo-nos à "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus". Houve quem duvidasse da verdade dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos de viagens, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. A escrita começou logo em 1557, com a memória bem fresca. A publicação ocorreu trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram, o autor respondeu: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”. É memorável o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário, para saber novidades de Liampó, "porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito", mas afinal era engano, pois a armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto. É inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia "derramador e bebedor do sangue português" e a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. "E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão...”. E lembre-se o episódio da vinda do Embaixador do Rei dos Batas. Foi agasalhado «o mais honradamente que então foi possível». E assim «o despediu bem despachado, e satisfeito do que viera buscar, porque lhe deu ainda algumas cousas além das que lhas pedira, como foram cem panelas de pólvora, e rocas, e bombas de fogo, com que se partiu tão contente desta fortaleza, que chorando de prazer, um dia perante todos os que estavam no tabuleiro da igreja, virando-se para a porta principal dela, com as mãos levantadas, como quem falava com Deus, disse publicamente. Prometo em nome de meu Rei a ti Senhor poderoso, que com descanso e grande alegria vives assentado no tesouro das tuas riquezas que são os espíritos formados da tua vontade, que se te praz dar-nos vitória contra este tirano de Achem (…). E assim te prometo e juro com toda a firmeza de bom e leal, que meu Rei não tenha nunca outro Rei se não este grande Português, que agora é senhor de Malaca»…

Agostinho de Morais

 

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XIV. OS TIGRES DE MOMPRACEM


A figura de Sandokan chega-me à lembrança e às mãos, na saudosa coleção da Romano Torres. Se acabo de falar de Corto Maltese, devo recordar que recentemente foram descobertas no espólio de Hugo Pratt diversas pranchas onde se documenta o encontro com Sandokan. E invoco Fernão Mendes Pinto, de Malaca até ao Japão, ligando a ele a alusão mítica e imaginosa de Sandokan, o Tigre da Malásia, não por ele só, mas também por Gastão de Sequeira, o português que o acompanha e representa os nossos mercadores e mercenários, que povoaram a Malásia, o Bornéu e as Molucas desde o século XVI. É muito curioso encontrar em cada canto do mundo um português. Corto é neto de um português célebre e Emílio Salgari colocou como braço direito de Sandokan um outro herói portuguesíssimo. É verdade que Emílio Salgari deu-lhe originalmente um nome pouco credível de Yañes de Gomera, mas a linhagem portuguesa não oferecia dúvidas. Entre nós foi conhecido como Gastão de Sequeira (que não deve perder-se). E Mompracem, a ilha celebrizada por Sandokan, que este desejava libertar do jugo de Sir James Brooke, pode ser Mengalum, nome relacionado com o grande Fernão de Magalhães, protagonista do maior feito na história da navegação, na grande travessia do Oceano Pacífico. Magalhães teria estado em Mengalum aquando da visita ao Sultão do Brunei… A alternativa seria a ilha próxima de Kuraman, mas a minha preferência é a outra. Devo aqui recordar aqui a prolífera tradutora portuguesa Leyguarda Ferreira (1897-1966), da série Sandokan em Portugal, bem como de Max du Veuzit e Magali, além de Dickens, Walter Scott, Jane Austen e Dumas. Foi ainda colaboradora de “O Senhor Doutor – Um Amigo que Diverte, Educa e Instrui” (1933-1944), ao lado de José Gomes Ferreira (o avô Cachimbo), Odette de Saint-Maurice e Ana de Castro Osório. Do mesmo modo que Júlio Verne, Emílio Salgari (1862-1911) era um falso viajante, que nunca deambulou além do Adriático, e que colhia informações em enciclopédias, revistas, relatos de viagens e mapas de longes terras. O jovem Emílio tinha vocação marítima, mas reprovou na escola naval, fazendo-se então repórter. Nos folhetins criou um universo de intensa ação, surpresas narrativas, cenários exóticos e personagens fortes. Umberto Eco em “A misteriosa chama da Rainha Loana” (2007) invoca o seguinte “estava de novo a remexer no armário, estavam lá todos os romances de Salgari, com capas coloridas, onde por entre volutas elegantes surgiam sombrio e impiedoso o Corsário Negro, e de cabeleira preta e bonita touca delicadamente desenhada no rosto melancólico, o Sandokan dos Dois Tigres, com a sua cabeça feroz de príncipe malaio num corpo felino, a voluptuosa Surama e os prahos [pirogas] dos Piratas da Malásia. (…) Era difícil dizer se estava a redescobrir alguma coisa ou se estava simplesmente a ativar a minha memória de papel, pois fala-se muito ainda de Salgari, e críticos sofisticados dedicam-lhe artigos cheios de nostalgia. A descoberta continua.
 

Agostinho de Morais

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XIII. VIAGENS NUM VELHO MAPA…


Cheguei à secção dos mapas. Procurei um próximo do nosso tempo, mas tive dificuldade, uma vez que as edições eram inglesas e francesas, mas não a que eu desejava. Fiquei, por isso a deleitar-me com uma versão de 1502… Falo do planisfério, dito de Cantino. É a cópia de um mapa de grandes dimensões que estava na sala das cartas da Casa da Guiné e da Mina, onde se administrava a exploração e a colonização dos territórios descobertos à ordem do Rei de Portugal. Provavelmente, Alberto Cantino, espião ao serviço do Duque de Ferrara, subornou um cartógrafo português, ou conseguiu que um ilustrador italiano reproduzisse clandestinamente esta preciosidade da altura. Conta-se a pequena história de que Cantino pagou doze ducados pela carta e recebeu do Duque de Ferrara vinte ducados por tê-la conseguido. Junto da gravura que tenho, feita no século XIX, a cores, encontrei um pequeno caderno de capa vermelha, onde anotei os roteiros de Corto Maltese, que a seguir reproduzo… «Nasceu o maltês, descendente de um português, grão mestre da Soberana Ordem de Malta, em La Valetta, em 1887, e foi com sua mãe para Gibraltar, tendo ainda vivido no Bairro judeu de Córdova e frequentado, por influência do Rabbi Ezra Toledano, em Malta, a escola judaica… A vida aventurosa começou cedo. Em 1900, com treze anos, encontrámo-lo na China, aquando da revolução Boxer. Em 1904, com dezassete, embarca em Malta, como marinheiro do “Golden Vanity” e faz um percurso longo: Ismailia (Egipto), Aden, Mascate (onde encontra a memória da presença portuguesa no Gofo Pérsico em Oman), segue para Karachi, Bombaim ou Boa Baía, cidade que foi dada pelo rei de Portugal como dote de D. Catarina de Bragança aquando do casamento desta com Carlos II, (referências dos portugueses no bairro de Mazagão), Colombo (em plena Taprobana, Ceilão), Chenai, (Madras), Rangun (Mianmar), Singapura, Kowloon (Hong Kong), Xangai e Tien-Tsin. Rumo à Manchúria – Corto encontra-se com Jack London (1876-1916) e com o homónimo do monge louco russo, Rasputine, em plena guerra Russo-japonesa. Em 1905 está nas Celebes, a oeste de Bornéu, no mar partilhado pela Indonésia, Filipinas e Malásia. E segue para a América do Sul: Chile, Argentina, e entusiasmando-se com a Patagónia. Regressado à Europa, em Ancona, encontra-se de novo com Jack London e descobre Eugene O’Neill (1888-1953). Entre 1908 e 1913 faz um périplo fantástico – Marselha, Trieste (onde encontra James Joyce) e Tunísia. Parte para América do Sul, envolvendo-se na magia de Salvador da Bahia, e depois nas Antilhas e Nova Orleães – e volta para a Ásia – Índia e China, com especial atenção à Indonésia, Java, Samoa e Tonga. É o tempo da “Balada do Mar Salgado”. É a convulsão do primeiro conflito mundial. Corto embrenha-se no Pacífico, na Nova Guiné, e segue para o Chile (Iquique), Peru (Callao) e Equador. No Panamá Corto e Rasputine separam-se, porque este tem cabeça prémio nos EEUU. E em 1916 Maltese viaja pela América Latina, Guiana francesa e Suriname. Em 1917 o cenário é o das Antilhas, Belize, Maracaibo, Venezuela, Honduras e Amazonas ocidental, perto dos Andes. 1917 é o tempo dos celtas em Veneza e Dublin e no ano seguinte: França, Iémen, Somália e Etiópia. Passada a página da guerra sangrenta, o percurso é Xangai, Manchúria, Mongólia e Sibéria. É a estranha missão da sociedade secreta chinesa das Lanternas Vermelhas, de recuperar o tesouro da família imperial russa que se encontra na posse do almirante Kolchak. Com Rasputine segue entre a Sibéria e Hong-Kong. Regressa à cidade dos Doges e o mundo onírico invade a narrativa, 1921. Em Rodes vai estudar, de outro modo, a viagem de Marco Polo, desta vez para tentar descobrir o fabuloso tesouro de Alexandre, o Grande. A Turquia, o Irão e a URSS estão a criar-se. É “A Casa Dourada de Samarcanda”, a defesa da vida de Rasputine e uma perigosa viagem: Azerbaijão, mar Cáspio, Tadjiquistão, Paquistão, Afeganistão. Corto testemunha a morte do líder dos jovens turcos Enver Pasha. Entre 1923 e 1936, as viagens sucedem-se; Argentina, Suíça (encontro com Hermann Hesse e Tamara Lempicka), Caribe (ainda com Rasputine) em busca de Atlantis; Etiópia com lembrança de Rimbaud em Harar (Etiópia) e ainda encontro com Teilhard de Chardin»… Mas o sistemático pequeno caderno tem mais…


Agostinho de Morais

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XII. DE SÚBITO, A ILHA DE MALTA…


Continuo às voltas com as pilhas de livros da minha biblioteca. Desta vez, despedi-me por um pouco do fantasma de Camilo Castelo Branco, a quem voltarei em breve. Ontem à noite, depois do meu passeio higiénico, vislumbrei numa das esquinas do meu bairro um amigo do velho Calisto Elói. Confesso-vos que quase me esquecera dele. Tem a mesma pose fora de moda e a distração própria de quem há muito não vive neste mundo, mas é um apaixonado da banda desenhada e tornou-se um colecionador frenético de aventuras de Banda Desenhada. Desta vez, fiz por nos desencontramos, mas uma das nossas últimas charlas foi sobre a genealogia de Corto Maltese. Em lugar da recordação medíocre de Calisto, embrenhou-se agora na descoberta das raízes familiares portuguesas do herói de Hugo Pratt. E depois de ler as «Memórias Secretas» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2018) entrou na busca sistemática dessa ligação lusitana. Tudo começou quando percebeu que o mundo dos fantasmas de Mário Claúdio constitui um manancial inesgotável. A vida reserva-nos muitas surpresas!... O entusiasmo do meu conhecido é tão sistemático e até doentio que ele vive presentemente num novo mundo de fantasmas – uma plataforma de ironia e pesadelo, como se se tivesse mudado em sonhos para Veneza, com “Casanova, saltando da masmorra para uma coluna, e depois para um telhado, Scarlatti vogando de rosto velado por tules vermelhos, cautério para a sua incurável antropofobia, quem poderá garantir que não resultante da obsessão cultivada pelas ninfetas órfãs, e cantoras de um coro de querubins”. A Sereníssima República dos Doges é um mundo à parte de tudo o que possamos conhecer. Entre Lorde Byron e George Sand, Ruskin e Hemingway, aparece o imprevisível Corto Maltese. Também eu, como Mário Cláudio, conheci tardiamente a personagem, já que só em 1967, na revista “Sgt. Kirk”, Hugo Pratt lhe deu corpo. E tornou-se um notável mito romanesco – nascido a 10 de julho de 1887, filho de Vânia “la Niña de Gibraltar” (de quem Ingres se enamorou) e de um marinheiro da Cornualha. Corto foi dado à luz na ilha de Malta, sede da Soberana Ordem, na descendência de um português célebre, Grão-Mestre da dita Ordem, Frei Manuel Pinto da Fonseca (1681-1773). E deve lembrar-se que foi em sua em honra que a cidade de Qormi, onde se produz o melhor pão da ilha (e quiçá da Europa), se designou como Cittá Pinto, adotando o seu brasão de armas, com cinco crescentes vermelhos, simbolizando os otomanos que o mestre venceu com a própria espada de uma só vez. Os outros três Grão-Mestres da Soberana Ordem de Malta foram: Frei Afonso de Portugal (falecido em 1207), Frei Luís Mendes de Vasconcelos (falecido em 1623) e Frei António Manoel de Vilhena (1663-1736). Pinto da Fonseca fora milagrosamente salvo, depois de uma grave doença, pela sedutora Severiana, mãe da avó Corto, Maria de los Milagros, filha de Pinto da Fonseca. Milagros não teve as glórias que seu pai gostaria que tivesse tido, pois quem sucedeu a Pinto da Fonseca pôs fim a todas as honras. E assim temos a estirpe portuguesa de Corto, que ganhou tal nome pela exiguidade do seu corpo à nascença. Com estes novos elementos, talvez compreendamos melhor o fundo aventureiro, de quem se apaixonara pela obra-prima de Thomas Morus, ou não fosse português Rafael Hitlodeu… E como chegou Corto a Portugal? Pela mão de Dinis Machado e Vasco Granja, em 8 de março de 1975, na revista Tintin. Dir-se-ia que Mário Cláudio legitimou essa opção e completou-a. Hugo Pratt faz desaparecer Corto Maltese durante a guerra de Espanha, mas não foi o fim… Não desapareceu então, como assevera uma carta de Pandora. A 3 de novembro de 1941, dizem as “Memórias Secretas”, apesar da guerra sangrenta, Corto arrendou uma pequena casa na Ilha de Burano, na lagoa de Veneza, no Adriático, onde também moraram Tarao, Pandora, Abel e Sephora. Mas aí temos matéria para mais enigma....


Agostinho de Morais


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XI. AINDA A QUEDA DE UM ANJO…


O Morgado de Agra de Freimas, Calisto Elói, «naquele tempo, orçava por quarenta e quatro anos. Não era desajeitado da sua pessoa. Tinha poucas carnes, e compleição, como dizem, afidalgada. A sensível e dissimétrica saliência do abdómen devia-se ao uso destemperado da carne de porco e outros alimentos intumescentes. Pés e mãos justificavam a raça que as gerações vieram adelgaçando de carnes. Tinha o nariz algum tanto estragado das invasões do rapé e torceduras do lenço de algodão vermelho. A dilatação das ventas e o escarlate das cartilagens não eram assim mesmo coisa de repulsão. Estes narizes, se não se prestam à poesia lírica, inculcam a serenidade dos seus donos, o que é melhor. Eram assim os narizes de José Liberato Freire de Carvalho e de Silvestre Pinheiro Ferreira. Quase todos os estadistas de 1820 se condecoravam com a rubidez nasal. Não sei que há nisto indicativo de estudo, gravidade e meditação; mas há o quer que seja. As restantes feições de Calisto Elói de Silos eram regulares, a não querermos encarecer a alta e brunida cara, que poderia servir de rótulo a um talento abalizado, se o inimigo da Lucrécia Bórgia não fosse, a meu ver, capacidade eminente, viciada pela educação e tradições de família. Excedia a estatura meã e era direito de pernas. No tronco havia tal qual inclinação, que denunciava o arqueamento da espinha por efeito da incansável leitura e minguado exercício. O que certamente o desairava era o traje. Calisto Elói vestia de briche da Golegã, e dos alfaiates de Miranda. A gola e portinholas da casaca eram sérias demais para estes tempos em que um homem se veste hoje à moda, e daqui a um mês corre o perigo de sair ridiculamente entrajado. Não se sabe a razão por que o morgado da Agra se afeiçoara às calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola. Vestira assim umas pantalonas em 1833, quando se matrimoniou com D. Teodora. Ou porque a esposa gostasse do feitio das calças, ou porque a moda se conservasse, mantida pelo fidalgo, na comarca de Miranda, o certo é que desde aquela época todas as pantalonas de Calisto foram talhadas pelas primeiras, e a abotoadura sempre aproveitada». É assim que conhecemos a personagem. Quando chegou a Lisboa, para tomar assento na Câmara do Deputados, era alguém que não destoaria muito de tantos dos seus colegas de S. Bento. Quando começou a pedir a palavra e a intervir, houve, no entanto, um sinal de alarme – um excesso de formalismo e a tentação de se exprimir a despropósito com citações e forçadas referências eruditas.  «Ora, Calisto Elói, sem embargo da seriedade e gentil compostura da sua pessoa, não podia de todo poupar-se ao riso de certas pessoas da plateia. Estava ali gente que o ouvira fulminar no Parlamento o teatro lírico, e nomeadamente a Lucrécia Bórgia. Estava quem se lembrasse daquelas calças de polainas assertoadas de madrepérola, e do farfalhoso colete, e das pantalonas axadrezadas do aljubeta Nunes & Filhos». E o tempo não facilitaria a sua vida. Agravou-se a tentação de citar, a propósito e despropósito. É certo que as vestimentas modernizaram-se, porque ficou mais distante de Miranda. Mas, ao riso que provocavam no início os seus barroquismos e fixações, sucederam os comentários e os segredinhos que ocorriam quando passava ou procurava evidenciar-se. E assim tornou-se um símbolo das más influências da capital. O facto de ter passado a apresentar-se melhor não melhorou as coisas, uma vez que todos perceberam que essa era uma consequência de ter encontrado uma viúva rica, bonita e conhecida. Tornou-se assim um anjo decaído. E, para efeito deste folhetim, juntou o seu nome aos exemplos enumerados. No mundo destes fantasmas, ficaram as citações abstrusas e a cegueira da ambição. E retemos o fio da meada, à procura de quem esteja a ponto de fazer parte desta saga…   


Agostinho de Morais


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X. CALISTO ELÓI DE BARBUDA…


Tenho estado a folhear o meu velho “Album das Glórias”. Muitas vezes comparo-o com a londrina “Vanity Fair”, que o inspirou. Cada vez gosto mais do nosso… Mas não esqueço as figuras das ilustrações da velha Albion. A rainha Vitória comparava Gladstone a quem a confundia com um comício. Adiante. Prometi-vos que este folhetim seria uma espécie de gabinete de curiosidades. Tem sido, porém, um repositório de recordações de papel. Mas ainda não desisti de outras coisas. Temos caminhado ao sabor dos fantasmas que povoam a minha antiga livraria. Carlos Drummond deu o título, pelas pedras que descobrimos no caminho. Carlos Fradique Mendes lançou-nos ameaças homéricas, por termos desvendado que continua a existir, escondido numa toca qualquer. Justino Antunes, Gervásio Lobato e Tibúrcio Torres descobriram o espírito tonitruante do coronel Segismundo. O Conselheiro Acácio homenageou o génio incompreensivelmente obnubilado que deu pelo nome de Pacheco. E descobrimos que a estatueta que imortalizou Pacheco no Alto de S. João desapareceu misteriosamente, partida em mil pedaços num canteiro de Campo de Ourique. E em Pero Pinheiro apareceu a cabeça dada como perdida. Oh ignomínia! não era mais do que um Zé Povinho risonho e trocista. A verdadeira glória é a dos zombeteiros. E veio à baila o mais genuíno dos políticos. Nem mais do que Joãozinho das Perdizes. E ficou por dizer ou lembrar que, no fim de tudo, ele trouxe os seus apaniguados a votar no Conselheiro Manuel Bernardo, que dava já a eleição como perdida. O bom cacique. Era o ano de 1868, o do romance da Morgadinha, e então rebentou o motim no Porto, a “Janeirinha” – que teve como um dos seus heróis o velho Bispo de Viseu, figura especial. D. António Alves Martins (1808-1882) veio da província até à cidade para moralizar a nação pelo reformismo. Seu lema? «A religião deve ser como o sal na comida: nem muito nem pouco, só o preciso». Foi condenado à morte pelos miguelistas, mas nunca se deixou aprisionar, liderando o partido reformista, o da janeirinha, e chegando a Ministro do Reino. Celebrizou-se por uma afirmação: “Anda qualquer coisa no ar”. Logo houve chacota. Falaria ele de quê? De maus odores ou do rapé? O clérigo incarnava o espírito do morgado das perdizes…  E eis-nos num ponto culminante. Zás, aqui nos chega o Senhor Camilo Castelo Branco, de braço dado com Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. E relata a chegada do deputado da nação vindo do país profundo: «Por fins de janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, naquela porção de Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento à espera de arqueólogo competente. Ao cabo de três dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, supondo que os lamaçais de Alfama tinham tragado os monumentos, lamaçais em que ele desastradamente escorregara, e donde saíra mal limpo, e assoviado por marujos e colarejas, seus vizinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira quimera de Calisto, seu tanto ou quanto científica, atascara-se na lama daquela parte de Lisboa, que devia ser a ínclita Ulisseia de Luís de Camões! O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa lavada de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quis-lhe parecer que a atmosfera da capital não cheirava bem. Abriu um dos seus livros velhos, intitulado Do Sítio de Lisboa, etc., por Luís Mendes de Vasconcelos, e leu: «...E assim, de todo o território de Lisboa, parece que da terra, fontes e rios respiram suavíssimos vapores, amigos da natureza humana; porque é coisa certíssima que a benignidade dos ares deste sítio não só é por natureza deleitosa, pelo seu temperamento, mas de grandíssimo proveito para algumas doenças, etc...» Calisto Elói fechou o livro, e disse de si para consigo, tomando uma vez de rapé: — O meu clássico não podia mentir. Este mau cheiro é desconcerto da minha membrana pituitária. E alcatroou segunda vez as ventas com uma pitada desinfetante». Mas o tema continuará… 

Agostinho de Morais


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IX. O PAU DE MARMELEIRO…


Já vimos, como Joãozinho das Perdizes invocou o pau de marmeleiro como disciplinador de conflitos e organizador da nação. É verdade que muito do palavreado usado na venda de Grijó correspondia mais a entusiasmo do que à realidade. Estamos no ano de 1868, data da publicação da “Morgadinha”. Os acontecimentos relatados situavam-se nos primórdios da política das Obras Públicas e dos melhoramentos de António Maria Fontes Pereira de Melo, no esteio do seu amigo Rodrigo da Fonseca. O certo é que havia desconfiança, pois a memória de Costa Cabral ainda estava viva. Daí a ambiguidade do discurso do brasileiro Eusébio Seabra. Não ficara esquecida a reação da Maria da Fonte e da Patuleia contra as papeletas da ladroeira, que eram as matrizes prediais. As bandeirolas temidas pelo morgado das perdizes eram reminiscências dessa memória, que não se apagava. Em Janeiro de 68, rebentou um motim de pequenos comerciantes e proprietários em nome da moralidade pública contra o novo imposto sobre o consumo. O jornal portuense “O Primeiro de Janeiro” nasceu deste movimento… Caiu o governo regenerador de Fontes e foi convidado o Duque de Loulé para constituir um novo executivo, mas rejeitou, seguiu-se a recusa do marquês de Sá da Bandeira e seria empossado António José de Ávila, futuro Duque d’Ávila e Bolama. O artífice deste sobressalto foi o Bispo de Viseu que aqui está representado com o seu pau de marmeleiro a fazer de bengala, para o que desse e viesse. Depois do golpe, acabou o imposto, nasceu o novo Partido Reformista, cujo programa era moralizar a nação, que durou pouco, até se fundir com os Históricos, criando o Partido Progressista. E o “Album das Glórias”, pela pena de João Rialto (Guilherme de Azevedo), conta esta deliciosa história: “Possuído do desânimo que assalta os bravos que no meio da feira parlamentar se sentem tolhidos… de leis para brandirem um arrocho, o reverendo bispo abismado do que apalpou e do que viu nas regiões do poder, voltou em breve às suas montanhas e à sua diocese como deve voltar um verdadeiro crente – “com o credo na boca!”. Se bem que desde então desça em longos intervalos das serranias para a política, a tribuna parlamentar deveu-lhe ainda (…) a frase mais sintética e mais expressiva de que se pode ufanar a loquela de um povo. No meio de uma discussão desorientada na aridez cerebral da Câmara Alta, no ponto culminante da contenda, o sr. Bispo pediu a palavra e bradou: - Sr. Presidente, anda qualquer coisa no ar! Os retóricos militantes riram desta exclamação, mas na verdade nunca tiveram outra que exprimisse de forma mais exata e mais nítida o estado mental da nossa sociedade, a obscuridade do seu ponto de vista, a incerteza dos seus destinos! «Anda qualquer coisa no ar!» Quer dizer: tapemos o nariz e esperemos. Ninguém sabe de que natureza é nem donde veio este cheiro; o que se percebe perfeitamente é que nas instituições existem miasmas que corrompem a atmosfera. O reverendo Bispo de Viseu pôde não ter grandes vistas políticas, mas ao menos mostra que tem ventas. Bem faz ele persistindo em não tomar o poder para continuar a tomar bom rapé!»... Assim tenhamos tanto faro.

Agostinho de Morais


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