Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A mesma rotina diária: acordar, levantar, higiene pessoal, vestir, pequeno almoço, adquirir legumes, fruta, flores, plantas, abrir e montar a banca, pôr tudo à vista, para comerciar e vender, vender, vender. Almoçar, a meio do dia. No fim, arrumar o que sobra, desfazer a banca e fechar. Nos dias seguintes, a mesma coisa.
Em casa, ao serão, após o jantar, ouvem-se as notícias, vê-se desporto, novelas, filmes ou séries, o sono chega, cai-se na cama, até outro dia, em que há que sair cedo, retomando-se a habitude de trabalhar, trabalhar, trabalhar.
O essencial de uma vida, transversal a todas as vidas e profissões, a lembrar Sísifo, que recebeu de Zeus o castigo de todos os dias recomeçar de zero a sua tarefa, condenado para toda a eternidade por desafiar os deuses, como sucedera a Prometeu.
Este trabalho monótono, cansativo e repetitivo conduz-nos ao mito de Sísifo, punido e condenado a um trabalho enorme e sem fim, empurrando uma pedra até ao cimo de uma montanha onde, aí chegado, lhe fugia das mãos e rebolava daí abaixo. E recomeçava, impedindo Sísifo de ter tempo para pensar em novos interesses, evasões, afastando-o de malefícios e pensamentos suicidas.
Estas nossas vidas entediantes levaram Camus a defender que o absurdo está em interrogarmo-nos e tentar compreender se a vida faz sentido, pois é impossível ter uma resposta, pelo que quem aceita o absurdo vive bem com ele, aceitando que não faça sentido, aprendendo a viver com a sua ininteligibilidade neste oceano de perguntas sem respostas, o que não implica apatia e capitulação.
Mas há dias de não acatamento e submissão a uma vida de Sísifo, dando azo a tempos livres para escrutinar, meditar, pensar, passear, contemplar, saborear a natureza, um dia solar, bem diferente de nunca trabalhar ou não suportar o ócio e o tédio.
Sucede que o enfado, fastio e vazio se não superado pelo ritual do labor diário (mesmo que preenchido sob a forma de uma pluralidade de interesses), leva-nos a concluir que uma vida sem trabalho não serve para nada, acabando por ser um favor o pretenso castigo que Sísifo recebeu e, por arrastamento, nós os mortais, somos obrigados a reconhecer eternamente a nossa condição como meros servidores de uma ordem previamente estabelecida, como humanos não imortais incapazes de superar aquilo a que não somos capazes de dar sentido.
Albert Camus, filósofo do absurdo, defendia que levamos vidas costumeiras, entediantes, monótonas e repetitivas.
Até que um dia nos interrogamos: a vida faz sentido?
Percebeu que era impossível responder à pergunta: porque estamos aqui?
Diz que fazemos as coisas de modo rotineiro, como Sísifo, uma personagem mitológica grega condenada pelos deuses a repetir sempre a mesma ação, por toda a eternidade: empurrar uma grande pedra até ao cume de uma montanha, para que voltasse a cair até ao vale, onde tinha de ir buscá-la e voltar a empurrá-la até ao cimo.
Este trabalho cansativo e monocórdico, era um castigo ou punição para mostrar-lhe que os mortais não têm a liberdade dos deuses.
O absurdo de que fala Camus não é o de a vida não fazer sentido, mas, exatamente, a pretensão de procurar um sentido para as coisas.
O absurdo, que se opõe à razão, sensatez e bom senso, deixa de sê-lo a partir do momento em que aceitemos e deixemos de pensar que há coisas que dão sentido à vida. Quem aceita o absurdo vive bem com ele.
Em antinomia, segundo Camus, só se suicida quem, previamente, quis dar sentido à vida.
Que a vida seja absurda não significa cair numa apatia profunda.
Mesmo reconhecendo vivermos num abismo sem respostas, não devemos render-nos ante a vida.
Temos de enfrentá-la em toda a sua incompreensibilidade.
De ser criativos e inovadores na formulação de porquês geradores de outros porquês. Vivendo a vida em pleno, hidratando e renovando a monotonia, a repetição e o tédio. Mesmo que, por escolha pessoal, acreditemos num ente sobrenatural, exterior à natureza, a que a investigação científica não pode chegar.
Albert Camus (1913-1960), Prémio Nobel da Literatura de 1957, representa uma das referências fundamentais do existencialismo. Com uma obra rica e multifacetada, o escritor franco-argelino foi, pela liberdade de espírito e pela orientação libertária, aquele que, na sua geração, melhor pôde corresponder à superação do espírito do tempo. Foi profundamente criticado, quando publicou “O Homem Revoltado” (1951), por não se ter eximido a criticar o que alguns consideravam tabu, no contexto da guerra fria, mas o tempo veio a confirmar plenamente a compreensão que teve em relação ao risco da tentação totalitária, que existia e poderia aparecer onde menos se esperaria…
Camus disse que o império dos homens pode desvirtuar os objetivos justos, pela cegueira do poder. Todavia, a culpa dos crimes feitos em nome desse império não é da revolta, mas sim a fuga e o esquecimento relativamente às razões da rebelião. A evolução da história contemporânea demonstrou que Camus estava na razão, tendo compreendido os riscos da ilusão sobre a infalibilidade da justiça.
O “Arquipélago de Gulag” e sobretudo o que se lhe seguiu vieram dar razão a Camus, não porque ele nos tivesse dado uma chave de interpretação, mas porque abriu, pela liberdade crítica, perspetivas para uma análise objetiva dos acontecimentos.
No ensaio “O Mito de Sísifo” (1942), escrito em plena grande guerra, o tema central é o absurdo, considerando o homem em busca de sentido num mundo ininteligível, na linha do pensamento de Nietzsche. Será que o absurdo conduz ao suicídio? “Não” - responde o escritor - “Obriga à revolta”. E compara o absurdo da vida do homem à situação de Sísifo, figura condenada a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até o cimo de uma montanha, sendo que, uma vez alcançando o topo, a pedra rolava montanha abaixo até ao ponto de partida pela força irresistível da gravidade, destruindo todo o esforço despendido. Sísifo (como acontecera a Prometeu) desafiou os deuses e foi condenado para toda eternidade, a empurrar a pedra até o topo; e a ter de começar tudo de novo, vezes sem conta. Sísifo é, assim, o ser que assume a vida no máximo das suas possibilidades, odeia a morte e, por isso, é condenado a uma tarefa sem sentido, como herói absurdo. Camus apresenta, assim, a grande metáfora da vida moderna, em que “o operário de hoje trabalha todos os dias na sua vida, repetindo as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, mas é trágico porque só em raros momentos se torna consciente".
Contudo, para Camus, também há o absurdo criador ou do artista. E o absurdo da arte encontra-se com a experiência do mundo e com a existência de cada um de nós. “Se o mundo fosse claro, a arte não existiria”. E Camus lembra Dostoiévski e “Os Irmãos Karamazov”, no qual os protagonistas se encontram, ao explorar os limites da existência, num caminho de esperança e fé, que os leva a não serem criações totalmente absurdas. Camus sentiu-o quando, em plena guerra da Argélia, invocou os riscos sofridos por sua mãe quando a violência tomou conta do quotidiano da vida, apesar da justeza da luta. O seu compromisso pela Resistência, a sua opção pela liberdade, não impediram que fosse incompreendido e acusado em nome de uma lógica abstrata e cega.
Também no ano de 1942, Camus publicou “O Estrangeiro”, protagonizado por Mersault, que assassina um homem e é condenado à morte, mas vive a permanente indiferença em relação a todos os valores morais. Não aceita as regras do jogo. Contudo está disposto a ir até o fim na defesa da verdade em que acredita. Mersault desmascara a hipocrisia alimentada pela sociedade e por cada um – o homem abandona quem ama, mas também é abandonado, e é impotente perante as desgraças que presencia, e que finge não ver. “O Estrangeiro” disseca o que está errado, abre-nos os olhos para a limitação das falsas regras morais.
Camus morreu em janeiro de 1960 num brutal acidente de automóvel. O seu amigo e editor Michel Gallimard também perdeu a vida. Conduzia um Facel Veja e insistira para que o escritor aceitasse a boleia, ainda que tivesse já comprado os bilhetes para viajar de comboio com René Char. Consigo tinha o manuscrito de “O Primeiro Homem”, romance autobiográfico, que deveria sempre ficar inacabado. Como escritor, filósofo, romancista, dramaturgo, jornalista e ensaísta, Albert Camus tornou-se o verdadeiro exemplo de quem sofreu na pele as angústias e incompreensões decorrentes da lógica do absurdo, sem nunca deixar o apego necessário à liberdade.
Subi à cidade, num qualquer destes dias. Digo subi, sem ofensa para ninguém, até me parece que Lisboa está lá mais em baixo. Mas faço sempre um exercício de alpinismo, por vezes quase acabrunhante, para lá chegar. E de vez a vez me vou sentindo mais ligeiro no regresso, deve ser alívio de pressão atmosférica... Entre consultas médicas e outras tarefas, ainda consegui dar um salto à Bertrand, em busca do último Agualusa, do recente Miguel Real, e, para trazer conforto às minhas insónias, trouxe A memória dos outros II,Caminhos e Destinos do meu velho amigo Marcello Duarte Mathias, cujo estilo de escrita sempre me delicia, e de quem muito aprecio o rigor de uma inteligência independente, seja eu concordante ou não... O Marcello não é correto politicamente, nem por força, obra ou graça de qualquer outro advérbio: apenas por fidelidade à sua inteligência e ao seu gosto, e respeito pelos de outros.
A leitura desta coletânea de textos que o autor já antes editara ou pronunciara não é necessariamente contínua e sequente, pelo que desde logo me conduzi aos que se debruçam e refletem sobre Albert Camus: Camus, um homem livre - prefácio à 3ª edição de A Felicidade em Albert Camus, do mesmo Marcello Mathias; Camus - um homem só - texto da participação do autor num colóquio realizado na Universidade do Porto, em 2013, sobre Albert Camus e Vergílio Ferreira; e ainda o texto da palestra proferida na Academia das Ciências, numa homenagem ao filósofo e escritor francês. Li com gosto despertador este último, que não conhecia, e reli os outros dois, com igual cumplicidade. Reencontrei-me em vários passos do Marcello a circunver Camus, como neste: ... o enraizamento é nele a expressão da sua mais íntima identidade. Numa palavra, Camus liberta-se ao ancorar-se na infância, eterna fonte redentora, ponto de encontro e renovado deslumbramento! E cita um trecho do autor de Noces, retirado da polémica política que, em 1948, o defrontou com Emmanuel d´Astier de la Vigerie: «Há a história, mas há também outra coisa, a simples felicidade, a paixão dos seres, a beleza natural. Também estas são raízes que a história ignora, e a Europa, porque as perdeu, é hoje um deserto.» E desse dito de Camus conclui: Sem dúvida: nós somos também as nossas fidelidades.
O que acima para ti transcrevo, Princesa de mim, surgiu-me esta noite como remissão à última carta que te escrevi e que, afinal - vejo-o agora -, desce mais profundamente às raízes e circunstâncias dessa demanda de mim, peregrinação interior, liberdade de um caminho aberto por misteriosas fidelidades. Sabes bem que sou alguém diferente do Marcello Duarte Mathias, e por isso mesmo simpatizo com estes encontros avulsos de percursos pessoais estranhos, quiçá pela magia desses marcos de encruzilhadas de caminhos que são alguns autores lidos, semeadores de olhares e pressentimentos. Aconselho-te a leitura das páginas do Marcello sobre Camus, por esse reconhecimento de uma independência tantas vezes solitária, que me marcou, a mim também, na formação da juventude: Albert Camus e Georges Bernanos foram dois mestres que tive, ensinando-me que o rigor da coerência (ou a chamada honestidade intelectual) é condição necessária de uma autêntica abertura de um olhar humanista à nossa volta. Sem esquecer outros, entre eles François Mauriac, com quem Camus polemicou... e até chegou a reconhecer razão! Todos somos parcelas.
As trabalhosas arrumações em que me meti vão-me também descobrindo cartas, diários e outras intimidades. Hoje, curiosamente, encontrei-me com umas páginas minhas, datadas de 13/12/84 (23h30), provavelmente escritas logo depois de um jantar em família, em Scarsdale, New York: presumo que a minha filha Teresa - que na altura tinha os seus 17 anos - trouxe para a nossa conversa à mesa duas obras que estaria a ler. Uma delas, Le Malentendu, seria, como confessa o autor em carta a Jean Grenier, ao tempo da conclusão da primeira versão da peça, une histoire de paradis perdu et pas retrouvé. Um regresso à infância?... E/ou, como disse o próprio autor em outubro de 1944, será essa história a de um filho que quer ser reconhecido sem ter de revelar o seu nome [porque me lembro eu agora do Lohengrin?] e que é morto pela sua mãe e por sua irmã, na sequência de um mal entendido. Registei eu, em 1984:
«Ao jantar, a Teresa lançou a conversa sobre o Huis Clos do Sartre e o Malentendu do Camus. Falar da prisão que tantas vezes nos sentimos, ou da comunicação que é, tão frequentemente, precisamente o contrário...
A mentira, que o dizer, na roda livre de códigos incontrolados, tende a ser. O suicídio que é recusar a comunicação, pelo desespero de ser autêntico.
Compreender que a solidão se vence por dentro, nunca com conversas ou, por exemplo, como cantaria o Marceneiro: foi bem efémero o desejo / do teu coração que, vejo, / no bulício se treslouca...
Entre ouvir a voz de Deus num poço tapado ou cantar a cantiga do infinito numa capoeira (estarão bem lembrados estes versos do Álvaro de Campos?) não há diferença alguma. A única abertura possível está cá dentro, porque só o silêncio nos comunica e só em silêncio ouvimos. Fazer algazarra é equivalente a tapar os ouvidos.
Assim, o amor é secreto, ou seja, uma destilação do silêncio. O que fala por si e só dizemos porque nos ensinaram o hábito de falar.
O pudor é como quem espera, no silêncio, que a liberdade aconteça. Tudo se comunica de dentro. A vida ativa - dizia São Gregório - é um serviço; a vida contemplativa uma liberdade.
Ao amor chama São Tomás de Aquino (e na Summa Theologiae!) o sentimento de inerência mútua. Explica-se ele, quanto à potência afetiva:
Diz-se que o Amado está no Amante, no sentido de se achar no seu afeto por uma certa complacência [gosto partilhado]. Quer dizer-se que o Amante se deleta no Amado se este está presente. Ou, se estiver ausente, que a ele aspira por um amor de desejo; ou ainda, por amor de amizade, pelo bem que quer ao Amado. Tudo isso, não por ação de causa extrínseca, como quando queremos uma coisa com vista a outra, ou como quando queremos bem a alguém por motivo estranho à sua pessoa. Mas, sim, por complacência no Amado, cuja origem está no intimíssimo do Amante. Por isso falamos de amor íntimo e das entranhas da caridade.»
Voltarei, em carta próxima, a estas considerações que, sobre o misterioso Amor, eu tecera num caderno, num fim de serão, já lá vão 33 anos... Elas apenas couberam aqui, pela coincidência do sentimento da minha tensão interior, dessa necessidade do silêncio na construção da palavra livre, ou da solidão como condição fundadora do amor. Marcello Mathias refere no seu Camus - um homem só o conto O Hóspede, em que o professor Daru, a quem um polícia confiara um revoltoso árabe (passa-se isto durante a guerra da Argélia) para que o entregasse à prisão, explica ao árabe as duas opções possíveis - o atalho que o leva diretamente à penitenciária, e o outro, em sentido oposto, que o levará à liberdade, deixando a decisão final nas mãos do prisioneiro. E assim se despedem. Passados uns momentos, Daru olha para trás e avista o árabe a caminho da penitenciária. Por decisão própria. De regresso à escola, Daru lê rabiscado a giz no quadro preto da sala de aulas: «Entregaste o nosso irmão. Hás-de pagar.»
E Marcello conclui assim o seu conto do conto de Camus: Daru está sozinho, vem até cá fora, olha em redor a imensa paisagem à sua volta, dele tão familiar. E Camus termina o conto com esta belíssima imagem: «Dans ce vaste pays qu´il avait tant aimé, il était seul.»
Estava só - assim se descobria - porque fora silenciosamente capazdesse supremo gesto de amor: deixara ao árabe uma decisão de liberdade, e este livremente escolhera o caminho da prisão. E porque não quisera impor nenhuma lei exterior à que a consciência do próprio revelasse, era agora considerado traidor. Assim também podemos entender a Paixão de Cristo.