Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Acerca do Desenho no Exercício da Arquitetura.

 

O desenho traz em simultâneo a ordem e o acaso. A ordem manifesta-se através de elementos/instrumentos como sítio, tempo, escala, medida, circunstância, programa, peso, estrutura, densidade, tonalidade. Mas o acaso também tem o seu lugar.

 

‘The task of art, then, is to use its own means to juxtapose earthly, visible reality with another, invisible reality and in that way to point to the relativity of the visible, the limitations of the earthly.
Paul Klee, ‘The Role of the Artist – The Function of Art, 1918

 

O desenho representa a parte mais sensível/intuitiva da criação. Acompanha todo o processo de conceção e de construção de uma ideia de projeto de arquitetura. E é o principal suporte conceptual e experimental do projecto. É através do desenho que lugar, memória, história se encontram.

 

'No exercício da arquitetura há muita coisa que vem do subconsciente. Coisas que fazem parte de nós e que conduzem uma pesquisa em determinado sentido. A nossa mente é um armazém de tanto mais capacidade quanto mais for usado. No caso de um arquiteto, a formação baseia-se no aumento da informação, no aumento do que se vê, se estuda. E o que se vê são cidades, filmes, quadros, pessoas…

Literatura, música, tudo! A literatura está tão ligada à música, à escultura e à pintura, ao ballet… No meu tempo, começava-se pela fixação numa pessoa e numa obra. Depois começa-se a conhecer mais isto e mais aquilo, a alargar. A certa altura já não estamos a copiar isto ou aquilo; temos tanta informação que ela já faz parte de nós. Vem quando é preciso. Vem porque faz parte. Portanto, há uma conquista de espontaneidade e intuição que complementa o trabalho racional. O peso da história e a pressão da memória nunca desapareceu.', Álvaro Siza

 

No livro ‘Campo Sujeito e Representação no Ensino e na Prática do Desenho/Projecto’ de Alberto Carneiro lê-se que o ato de desenhar situa-se entre o corpo e o mundo, entre o sujeito e o objeto.

 

O desenho é o equilíbrio entre o sensível e o inteligível. Permite o contacto com o elementar e o palpável. É o modo primeiro de qualquer comunicação - ideia. Direciona o processo de projecto. Mas também estabelece uma relação física direta com o objeto real ou imaginado. É representação como projeção do corpo no espaço. É uma consciência espacial sobre a realidade exterior ou realidade que se afigura na mente.

 

O desenho é em simultâneo um instrumento teórico e prático. É como que uma confirmação conceptual, numa interação do que está dentro e do que está fora. É síntese de forma que consubstancia os dados do programa e confirma a inventiva pessoal.

 

Ora, as condicionantes de projecto (sítio, lugar, preexistências, topografia, história) determinam a dinâmica das representações do sujeito através do desenho - representações essas que se transformam em ideia. A representação apresenta diante dos olhos o que se observa no real e o que se afigura na mente.

 

É na articulação entre o intuído e o cognitivo que se elaboram formas.

 

Alberto Carneiro diz ainda, que o sujeito pode transformar-se e projetar-se através da sua obra. E tenta encontrar a forma da sua própria forma. E ao criar vai construindo uma identidade (que resulta de uma abertura ao sensível e que se estabelece através da ativação de três elementos: imaginação, instinto e intuição). No desenho, o sujeito pode manifestar-se através de uma oscilação entre a presença e a ausência, entre o visível e o invisível.

 

Por isso, o desenho permite a relação entre imagem interior - olho/corpo - material - suporte - realidade.

 

Carneiro afirma que o corpo, através do olho e da mão constrói uma identidade (através da representação), com a sua cultura com o que é inato e com o que foi adquirindo com o tempo através da sensibilidade e inteligência.

 

As imagens do eu interior não coincidem totalmente com as imagens do mundo exterior, porque dependem do conhecimento/saber/referências/memória/cultura visual do sujeito. E por isso o papel/suporte é assim uma acumulação.

 

Interior (memória, conhecimento) - razão - intuição - formação (inclui construção e expressão)

 

O desenho permite o sujeito chegar perto da verdade/realidade, não a partir de uma ilusão mas através de algo palpável e físico. E ao fazer parte do processo de projecto de arquitetura permite testar um máximo de previsões, de potencialidades e de limites.

 

O desenho/projecto começa, então por ser intuitivo para se confirmar depois na lógica das operações instrumentais como afirmação de uma inventiva e construção de um saber. Sendo assim, o desenho em projecto pretende aproximar com o máximo de comunicação a imagem interior/exterior da representação.

 

 

Ana Ruepp

 

 

A força do ato criador


Natureza-Arte-Corpo.

Alberto Carneiro e O Canavial - memória/metamorfose de um corpo ausente (1968)

 

‘A natureza sonha nos meus olhos desde a infância’, Alberto Carneiro, Das Notas para Um Diário, 1965

 

Alberto Carneiro (1937) de 1947 a 1958 trabalhou nas tecnologias da madeira, da pedra e do marfim, nas oficinas de arte religiosa no Coronado. A partir desta experiência, entendeu que o domínio dos materiais naturais é conseguido pela agregação do corpo e pela agregação da pele do criador.

Alberto Carneiro encontra criatividade em pesquisas antropológicas. Trabalha com a memória colectiva e arquetípica – inconsciente e simbólica – associando-a a um entendimento individual, como se a revelação interior se associasse à produção objectual. Procura vida em tudo o que produz porque o seu trabalho implica uma ligação total ao seu corpo, à sua experiência e às suas necessidades mais profundas. Mas para que o seu trabalho se complete precisa igualmente do envolvimento total do sujeito que frui - tal como acontece na Arte Povera, a experiência da obra tem um papel determinante na medida em que se determina através de dados imediatos que afloram à consciência e que revelam o modo de ser e a vida interior do fruidor. Alberto Carneiro também segue a ideia de Joseph Beuys de que Arte é Vida e Vida é Arte.

Alberto Carneiro está interessado em intersectar a natureza, a arte e o corpo. Ao basear o seu trabalho na recriação, eleva elementos da natureza a obra de arte muitas vezes no próprio espaço da galeria ou no seu pensamento (através da execução de projectos). A desmaterialização da obra pode também constituir parte do processo, sobretudo no que diz respeito à tentativa de devolução da natureza ao seu lugar original, e onde a fotografia adquire um papel importante para o registo documental do processo. Outras vezes é o projecto sem execução que toma forma, através de descrições e instruções pormenorizadas abre-se a possibilidade de ser concretizado por qualquer fruidor.

Em 'O Canavial' (1968), Alberto Carneiro propõe descontextualizar um elemento da natureza para um espaço real, o espaço da galeria e assim cria a oportunidade para que o dia-a-dia do fruidor seja acrescentado e transformado. Maximizam-se energias de uma experiência primária através de elementos básicos da natureza fazendo corresponder à memória a metamorfose de um corpo ausente. No Canavial, a matéria  é disposta de modo a recriar a natureza, de modo a permitir o contacto do corpo. A mera representação não é suficiente. Carneiro acredita que a natureza deve possuir e comandar todos os sentimentos. Chega a referir-se à natureza e ao corpo como uma necessidade de descoberta das memórias mais arquetípicas que fundamentam a vida mais simples.

O Canavial ocupa a sala toda. É quase possível caminhar por entre as canas. E evocam-se memórias através do envolvimento / experiência de uma réstia de natureza real. Existe um desejo de origem e de regresso à essência do cosmos.  Alberto Carneiro não manipula a natureza, descontextualiza-a para que fique ainda mais profunda, próxima e acessível.

 

Ana Ruepp