Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“Uma História da Leitura” de Alberto Manguel (Tinta da China, 2020) fala-nos do prazer da leitura e da relação que se estabelece entre leitores e livros, ultrapassando as barreiras do tempo e do espaço e permitindo o que Quevedo designou ‘conversas com os mortos’…
BIBLIOTECA VIRTUOSA “Uma biblioteca antes de o leitor exercer uma escolha é como o caldo primordial de átomos do qual toda a vida emergiu. Está tudo ao alcance de uma pergunta: cada ideia, cada metáfora, cada história, a identidade de cada leitor individual. As escolhas que faço numa biblioteca, a seleção de livros que mais prezo, denunciam não só a minha visão do Paraíso, mas também a minha identidade. A verdade é que sempre senti que a minha experiência do quotidiano, assim como uma certa compreensão dessa experiência, me chega através das minhas leituras. Em criança aprendi sobre o amor lendo histórias d’As Mil e Uma Noites, sobre a morte com os policiais, sobre o mar com Stevenson, sobre a selva com Kipling, sobre a possibilidade de aventuras extraordinárias com Júlio Verne. A experiência tangível chegou, na maioria dos casos, muito mais tarde, mas quando chegou eu tinha palavras para a nomear”. Alberto Manguel recorda-nos, assim, algo que é familiar para quem gosta de livros e de bibliotecas. As coisas passam-se normalmente desta maneira. Começa-se a amar os livros como objetos. Entusiasmamo-nos com as suas capas, com as suas encadernações, depois chegamos às imagens que os ilustram e à curiosidade de perceber o que significam, nesse sentido os Dicionários e as Enciclopédias ilustradas constituem lugares extraordinários, porque as ilustrações e os sentidos estão por definição próximos, em seguida entusiasmamo-nos pelas capitulares, até às narrativas e ao seu fantástico desenvolvimento. Não por acaso, as capitulares ricamente decoradas enchiam os mais antigos códices e a última edição do livro de Manguel tem na capa uma capitular, um L, como não poderia deixar de ser… A paixão da leitura constitui um processo complexo, como acontece na História da Humanidade, tudo começa pela oralidade, ainda antes de nascermos, quando ouvimos a voz da nossa mãe, primeiro conversando connosco ou entoando uma melodia, depois contando uma história muito simples, sobre o tempo em que os animais falavam, e a pouco e pouco vamos entendendo o mundo através dessa voz, dessas narrativas, desses poemas. Para mim, os livros de ilustrações não foram o princípio, mas depressa entendi a sua extraordinária importância e por ainda hoje me deixo fascinar pelas histórias de quadradinhos. Se comecei a amar os livros como objetos, foi porque nasci rodeado de livros muito sérios, enchendo paredes até ao teto, que fui descobrindo como caixas de surpresas muito ordenadas… Era muito difícil chegar as livros mais altos, mas felizmente o que se designa como obras de referência estão sempre à mão, que o mesmo é dizer nas prateleiras de baixo.
VINTE ANOS DEPOIS Alberto Manguel regressou a este seu livro vinte anos depois (como o tempo que Alexandre Dumas escolheu para reencontrar os mosqueteiros), e sentimos que a atualidade está plenamente viva. E lembra-nos o tempo em que pôde ser leitor para alguém que estava a perder a visão, como Jorge Luís Borges, e esses diálogos são demonstrações de como a leitura é a descoberta do mundo. Umberto Eco disse, por isso, que podemos viver pelo menos cinco mil anos, lendo, porque esse é o tempo da história da nossa civilização… Essa é a demonstração de como ler é cumprir o que Quevedo afirmou, fazendo da memória algo presente – como algo de sublime. Desde a sabedoria de Salomão até aos contos de Borges, estamos, afinal, a antecipar o encontro com Dante na antecâmara do Paraíso. No fundo, aprender a ler é entrar plenamente no mundo da vida. “A criança que aprende a ler é admitida na memória comum por via dos livros e descobre, assim, um passado partilhado que ele ou ela renova, em maior ou menor grau, a cada leitura». Lembro bem o momento em que minha mãe me ajudou a decifrar as primeiras páginas da “Cartilha Maternal” – e não esqueço os tempos exaltantes em que ajudei os meus filhos e os meus netos na aprendizagem fundamental da leitura. E só um poeta talentoso como João de Deus poderia ter criado um sistema tão atraente, eficaz e duradouro… É certo que todos os métodos são bons desde que os seus resultados sejam positivos, mas ficamos para sempre ligados ao que seguimos. Afonso X, o Sábio, escritor maior da nossa língua, disse um dia: “Bem e lealmente devem os professores mostrar o seu saber aos discípulos, lendo-lhes livros e fazendo-os compreendê-los o melhor que forem capazes…” E acrescentava o carácter insubstituível dessa relação, pessoal e íntima. “Uma História da Leitura” é um percurso multifacetado com mil circunstâncias e exemplos sobre o prazer da leitura. E se digo prazer é porque essa relação tem de ser cultivada. Não escolhi nascer na biblioteca de meu avô, professor de profissão entre outros ofícios. Concedo que tive condições especiais para essa paixão.
“Dicionário de Lugares Imaginários” de Alberto Manguel e de Gianni Guadalupi, com tradução de Carlos Vaz Marques e Ana Falcão Bastos (Tinta da China, 2013) é, como o nome indica, um livro de referência, onde a imaginação impera. Mais do que o simples repositório de elementos conhecidos, trata-se de uma fecunda e apetecível recriação.
UM EXERCÍCIO ROMANESCO Verdadeiramente, estamos perante um autêntico exercício romanesco que se estende no tempo, mas que procura centra-se em diversos espaços. Trata-se, assim de um poderoso exercício de imaginação que parte da informação dada pelas fontes originais. Tudo começou quando Gianni Guadalupi (1943-2007), um “viajante sedentário”, teve a ideia de escrever um guia turístico para Selene, a cidade dos vampiros, do romance do francês Paul Féval (1816-1887), sobre as cautelas a ter quanto aos vampiros, onde se podia comer e dormir ou não se devia estar de modo algum. Guadalupi traduziu para italiano autores como Kipling, Borges, Allende e Benedetti, editando diversos livros e antologias dedicados a viagens, reais e imaginárias. Estudou temas diversos, como os jesuítas na China, os viajantes setecentistas na Pérsia e no Oriente, os portugueses na Índia ou a descoberta da América e os pioneiros aeronáuticos italianos. Publicado originalmente em 1980, o Dicionário de que falamos foi aumentado em 1987 e 1999 e integra não só lugares previsíveis do mundo literário como Ruritânia, Shangri-La, Xanadu, Atlântida, Oz, o País da Maravilhas de Lewis Carroll, Utopia, Nárnia, os países de Gulliver, a ilha de Crusoé, mas também as criações de Tolkien, Dylan Thomas, Edgar Rice Borroughs, Conan Doyle ou de Cervantes e Rabelais… Se é verdade que o ponto de partida foi o encontro com a literatura conhecida, a-pouco-e-pouco o universo foi-se alargando, para lugares que um viajante pudesse querer visitar, deixando de lado os céus, os infernos e o futuro, e incluindo apenas o nosso planeta. Excluíram-se lugares como Balbec de Proust, Wessex de Hardy, Yoknapatawpha de Faulkner e Barchester de Trollope por verdadeiramente serem disfarces de lugares reais. E, a partir daqui, houve uma escolha em que o imaginário e a verosimilhança se foram articulando e afinando. E houve que ilustrar o livro, com rigor e sobriedade, e assim foram escolhidos Graham Greenfield e Eric Beddows, e James Cook para os mapas.
UMA ANTIGA NECESSIDADE “É muito antiga a necessidade de inventar países e depois dizer como o autor os encontrou”. Assim aconteceu com a “Epopeia de Gilgamesh”, que é uma crónica da viagem de um rei ao Reino dos Mortos ou com a “Odisseia”, em que Ulisses viaja entre Troia e Ítaca…De facto, nos primórdios, as ilhas imaginárias foram gregas: a ilha dos Ciclopes, o reino de Circe, a sociedade da Atlântida. Os árabes também imaginaram ilhas. “As Mil e Uma Noites” têm ilhas mágicas que vogam nos mares, transformam-se em baleias ou voam nos céus. No entanto, a verdadeira geografia imaginária das ilhas surge com Thomas Morus em “Utopia”, que propositadamente é batizada como não tendo lugar algum, donde vem um português, Rafael Hitlodeu. Tendo arquitetado a obra com Erasmo de Roterdão, Morus ganhará muitos seguidores, como Campanella, Bacon, Rabelais, Voltaire, Fourier, Montesquieu, Huxley, H. G, Wells – segundo o método ideal didático – positivo e negativo – baseado numa alegoria, que se contrapõe às sociedades reais vividas por cada um. A ilha de Crusoé é real, mas o autor concede liberdade a Robinson, para dar ênfase à importância da singularidade. Já Jonathan Swift faz Gulliver viajar ao encontro de sociedades que são autênticos “espelhos deformadores” do nosso próprio mundo: em Lilliput tudo é pequeno e ridículo, em Brodingnag tudo é enorme, o que leva o rei desse lugar distante a comparar os homens a pequenos vermes desprezíveis. A ilha de Laputa, que voa nos céus, e Lagado levam Swift a denunciar projetos científicos ilusórios, enquanto em Glubbdubdrib, ilha de feiticeiros e de mágicos, as mentiras dos historiadores são postas a nu, enquanto, na ilha dos Houyhnhms, os brutais yahoos são cavalos que no fundo se assemelham a nós. E no esteio do crítico severo e implacável que Swift foi, encontraremos autores modernos como Bioy Casares, Italo Calvino, Haruki Murakami, Garcia Marquez e Umberto Eco.
UM DICIONÁRIO ESPECIAL As 1200 entradas deste Dicionário permitem viajarmos no inesgotável mundo da imaginação. E podemos encontrar das mais antigas referências deste repositório logo na Atlântida, “vasto continente-ilha submerso sob as águas do Atlântico por volta de 9560 a. C.” e referenciado desde Platão até Conan Doyle. E não podemos deixar de associar aos Açores e à Macaronésia… Mas lembramos ainda a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, com Calemplui, a ilha ao largo da costa da China, na foz de um dos grandes rios, rodeada por uma muralha de 26 palmos de altura, construída com lajes tão perfeitas que a parede parece feita de uma só peça. E ciclo bretão? Camelot, capital do reino de Logres no sul de Inglaterra, é a corte do rei Artur, não podendo esquecer-se Avalon e mediatamente o célebre Amadis de Gaula. E continuando com referências próximas e conhecidas, José Saramago traz-nos a Ilha dos Cegos. Misteriosamente, Nedim Gürsel leva-nos ao Cemitério dos Livros Não Publicados, estranho armazém de obras impossíveis, daí devendo partir-se para o Reino da Imaginação, lugar sempre verdejante, governado por uma imperatriz bondosa, secundada pela embaixadora princesa da História e pela controversa Madame Moda. E, em contraponto, Jorge Luís Borges lembra a estranha Cidade dos Imortais, em tempos habitada por Homero e onde Joseph Cartaphillus, antigo comerciante de Esmirna, deve ter encontrado um antídoto eficaz contra o estigma, pois morreu a bordo do «Zeus» em outubro de 1929 e foi enterrado na Ilha de Ios. Já Ishmaelia é o país em que Evelyn Waugh celebrizou por engano um pobre jornalista. Tolkien põe-nos na Terra Média, onde encontramos a raiz da História na música de Eru ou Iluvatár, origem de toda a criação e o mais poderoso dos seres. Eru possui a Chama Imperecível que animou os Ainur, os Sagrados, a primeira das suas criações… E Umberto Eco inventa a Ilha da Véspera “porque os visitantes são incapazes de fixar um ponto no espaço a partir do qual se possa medir o tempo, o que torna impossível inscrever a Ilha no presente…” E num movimento sempre tão intenso, não poderemos deixar de lembrar, como corolário de tudo, Xavier de Maistre na sua viagem à volta do quarto de 1794, talvez o mais criativo de todos os lugares imaginários…