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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

72. A CULTURA E O QUESTIONAMENTO PERMANENTE DA REALIDADE


É um lugar comum questionar como foi possível o nazismo florir num país como a Alemanha, pátria de filósofos, compositores, escritores, cientistas, intelectuais, artistas e pensadores de vanguarda, num território tido como culto e exemplo, à data, de uma nação civilizada.
Sabemos bem, a começar pela História, que nem a educação, o saber ou o conhecimento intelectual nos oferecem qualquer garantia de um juízo moral ou de uma ética melhor.
A desumana tirania das ideias sempre teve o apoio de intelectuais e de pessoas da cultura.    
Ditadores e regimes totalitários sempre tiveram muitos admiradores e simpatizantes intelectuais e das artes em geral.
Alguns desses mentores legitimaram e institucionalizaram a violência terrorista.
Legitimaram e fomentaram a prática de crimes contra a humanidade.
O mundo pode ser modificado pela força do intelecto, para o bem e para o mal.
Mas é a cultura que nos permite distinguir entre a barbárie e a civilização.  
Foi a cultura que nos permitiu compreender a distinguir a barbárie dos totalitarismos.
Só uma cultura enquanto questionamento constante e permanente da realidade nos liberta.
Só uma cultura essencialmente crítica permite distinguir tiranos, ideias, doutrinas e regimes totalitários da democracia baseada no espírito crítico.  
É esse espírito e sentido crítico   que nos pode libertar da ameaça de uma ditadura tecnológica, num mundo de cidadãos convertidos em autómatos, ou numa mera cultura de entretenimento e diversão.     
Se é verdade que graças à força das ideias se pode criar um mundo melhor, pondo de lado despotismos e tiranias em desfavor da pessoa e dos direitos humanos, também é verdade que o desaparecimento da cultura enquanto questionamento permanente da realidade é o melhor amigo de utopias fraudulentas sempre prontas a suprimir a verdade pela causa da pretensa verdade maior que defendem.  

30.04.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

O MOMENTO BIZARRO DE UMA HISTÓRIA IMPREVISTA…

 

Há mistérios insondáveis que jamais saberemos como e porquê ocorreram. Celebrámos há dias a queda do muro de Berlim. Hoje parece-nos quase natural aquilo que se passou há 30 anos, no dia 9 de novembro. No entanto, ninguém poderia prever o que se passou. E talvez fosse digno das aventuras de Max e Moritz, dois travessos petizes que faziam as delícias dos jovens alemães há mais de cem anos… Talvez tenha sido um erro, pode ter sido um acaso, uma inadvertência, ou, quem sabe?, um mero ato de loucura… O certo é que o acontecido foi providencial. Resolveu-se então um inextricável dilema de impossível solução. Na cena internacional a pressão era muito grande na Hungria e na Checoslováquia. Muitos cidadãos desejavam movimentar-se, passar as fronteiras e chegar aonde havia liberdade e prosperidade. Gunther Shabowski era membro do politburo da República Democrática Alemã e foi destacado para anunciar aos jornalistas de Berlim-Leste uma nova política de entradas e saídas. Não estava em causa, o derrube do muro, mas apenas uma flexibilização das viagens. E havia um texto (há sempre um texto) que Schabowski devia ter lido, mas parece que não o fez – pelo menos com a devida atenção. Aí se previa um complexo sistema de autorizações que evitasse em todo o caso um colapso. A RDA deveria continuar a ser um bastião de fidelidade ao modelo do leste. No dia seguinte, só no dia seguinte, quem quisesse sair deveria pedir uma autorização. Havia, é certo, ordem para maior flexibilidade, mas a lógica burocrática deveria manter-se firme no essencial. Tudo ocorreria apenas depois das 10 horas da manhã. E Schabowski deveria dizer isso mesmo aos jornalistas naquele fim de tarde. Não se sabe por que bulas, porém, ele estava mal informado. Faltara a um encontro de preparação, e displicentemente pegou no papel que deveria ler, olhou-o na diagonal e avançou para a boca de cena… Perante os jornalistas, começou por ler o começo do escrito. De facto, havia um sinal de abertura, que ele deveria transmitir. O recém-nomeado Egon Kranz deu-lhe o papel, e havia que apresentar um sinal na linha da “glasnost”, da transparência. Mas o porta-voz Schabowski apenas leu o início e esqueceu-se dos pormenores essenciais da segunda página. Aí assegurava-se que a burocracia controlaria as saídas, a conta-gotas… E foram os pormenores que ditaram o desastre, o colapso. Abençoados desastre e colapso. Num instante o membro do politburo julgou que a burocracia e a polícia, firmes nos seus postos, assegurariam que a ordem não seria alterada. Puro engano. A burocracia sabia menos do que ele. E naquele momento o que ele dissesse seria a lei. O diálogo é ilustrativo e patético. Os jornalistas pressionam-no. Burocraticamente diz: “hoje tomou-se uma decisão para que as pessoas possam sair da República”. Os jornalistas estão incrédulos e perguntam: “Com passaporte?”. E insistem: “E desde já?” Schabowski fica por um minuto algo confuso. Que deve responder? Neste ponto entramos numa aventura absurda de Max e Moritz, mas estes não tem de fazer nada, não precisam de qualquer diabrura… E os jornalistas continuam a perguntar: “A partir de agora?”. E mais: “é preciso apresentar as razões para viajar?” Schabowski está a suar, nervoso, folheia os papéis, nada vê, mas tudo está lá – o pedido formal, as 10 da manhã… Max e Moritz nem têm de roubar essa página… É tudo muito rápido. A certa altura, para se ver livre do pesadelo, responde: “Pode ser imediatamente! (Ab sofort)… E já não pode voltar atrás. Felizmente para a humanidade acabara de condenar o muro a um inexorável colapso. Dentro de pouco tempo as pessoas precipitam-se para as aberturas do muro. Os soldados deixam-nos passar. Muitos começam a destruir o muro de cimento, entre gritos de alegria. O burgomestre de Berlim aproveita a onda e participa nesse momento histórico único. E eis como um aparente equívoco, uma distração, deu lugar a um movimento histórico!

 

Agostinho de Morais