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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA TERRA COM SEU USO


XVII. Garrett e Herculano – Um Novo Portugal


Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877) simbolizam o Portugal moderno de oitocentos, nascido das sequelas da ação do artífice do nosso “século das Luzes”, Sebastião José, o marquês de Pombal, das resistências da “Viradeira”, das repercussões da Revolução francesa, chegadas até nós pelas invasões napoleónicas, do “francesismo”, nascido da reação ao poder inglês, agravado pelo facto de D. João VI estar ausente e de o Rio de Janeiro ter-se tornado o polo político mais influente do Reino Unido. Não esqueçamos o importante papel desempenhado por D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna (Alcipe), e pelo seu salão literário, bem como pela Nova Arcádia, da qual fizeram parte Elmano Sadino (Bocage), Nicolau Tolentino ou Filinto Elísio. Combatendo os excessos do barroco, é o neoclassicismo que se manifesta, mas também a transição para o romantismo. O jovem Herculano, discípulo dos Oratorianos das Necessidades, foi um dos frequentadores do salão de Alcipe. É neste caldo de cultura que germina a Revolução de 1820 e o constitucionalismo português. E se D. João VI regressou a Portugal apressadamente, deixando no Rio a semente da independência, que D. Pedro concretiza nas margens do Ipiranga, o certo é que jamais irá dominar a situação interna, sendo provavelmente envenenado depois de se ter deixado enredar numa complexa teia de um absolutismo em que não acreditava – desde a Vilafrancada até à Abrilada. A história política que se segue é bem conhecida e só terminará no virar da metade do século… O Imperador do Brasil, D. Pedro, outorga a Carta Constitucional portuguesa (1826) e propõe uma solução de compromisso a seu irmão D. Miguel, cabeça da reação tradicionalista. D. Maria da Glória, a filha adolescente de D. Pedro, casar-se-ia com o tio… Mas o ambiente europeu foi mais favorável à aventura radical dita legitimista.


Não houve compromisso e a guerra civil (1828-1834) tornou-se inexorável e os jovens românticos Almeida Garrett e Alexandre Herculano tornaram-se resistentes ativos, ligando o compromisso cívico, o pensamento e a criação literária. A fidelidade às tradições históricas e populares exigia o combate pela liberdade. Garrett procura as raízes nacionais na noite dos tempos. Herculano encontra no romance histórico e na moderna historiografia (assente no rigor crítico e no estudo das fontes coevas) as razões para uma nacionalidade livre, baseada na vontade do povo e não em qualquer ilusão providencialista. Garrett vive a vida, segue a moda, é o jurista brilhante que escreve as leis de Mouzinho da Silveira, o maior orador parlamentar do seu tempo (ao lado de José Estevão), o fundador do moderno teatro português, o poeta e o romancista renovador. Herculano assume a austeridade, torna-se uma figura moral, um exemplo cívico, a sua escrita é irrepreensível, madura, mas não transige com a popularidade. «Almeida Garrett e Herculano ‘refundaram’ Portugal porque, pela primeira vez, e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o País esteve em sérios riscos de perecer» (Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, Gradiva, 1999, p. 27). Só uma atitude de abertura e cosmopolitismo nos permitiria contrariar o fatalismo. A nação queria-se liberal e constitucional para salvar a independência.


«As Viagens na Minha Terra» retratam um País dividido e desiludido, depois da vitória liberal em Évora Monte (1834). Os ideais modernizadores, só no início da década de 30 contaram com um ambiente europeu favorável, mas depararam internamente com uma forte resistência dos interesses instalados, das invejas, da mediocridade. Em setembro de 1836 ganhou a corrente mais avançada, simbolizada por Passos Manuel. Mas em 1842 venceu a linha oposta, representada por António Bernardo Costa Cabral. E reabriu-se o clima de guerra civil, que só terminou em 1851, sob a inspiração do próprio Alexandre Herculano.


O que se deveria fazer? Enterrar o machado de guerra e construir uma nova ordem constitucional, na qual a velha Carta fosse enxertada com a lógica democrática de 1822 e de 1838. E assim aconteceu. A Regeneração e os melhoramentos materiais poderiam permitir ao País sair do atraso e da mediocridade. Iniciou-se então um longo período de paz civil, baseada na rotação entre as duas principais forças políticas – regeneradores e históricos. Mas, com o tempo, a rotina gerou a descrença. Aliás, a solução, uma vez concretizada, não viria a satisfazer Herculano. Mas com Fontes Pereira de Melo (o «António Maria», de Rafael Bordalo Pinheiro) ao leme houve um tempo de estabilidade e de progresso. É o tempo que Cesário Verde descreve com contornos novos: «Batem os carros de aluguer, ao fundo,/ Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!/ Ocorrem-me em revista exposições, países:/ Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!» («Sentimento dum Ocidental»). É a modernidade e a tentativa do cosmopolitismo. Mas que sociedade está por baixo desta visão moderna? O Portugal profundo, descrito por Camilo Castelo Branco, ele mesmo figura contraditória, cruzamento da tradição e do inconformismo. Silvestre Silva (de “Coração, Cabeça e Estômago”), Calisto Elói de «A Queda de um Anjo» ou os heróis de “Amor de Perdição”, Teresa e Simão, complementam a placidez (não destituída de tensão) de «A Morgadinha dos Canaviais», de Júlio Diniz, com a figura tutelar e atualíssima do Conselheiro Manuel Bernardo, pai de Madalena, sem esquecer o retrato do caciquismo eleitoral de Joãozinho das Perdizes… E se falamos de Júlio Dinis, o romancista português mais influenciado pelo romantismo britânico, temos de citar “Uma Família Inglesa”, o melhor retrato do contrato económico do tratado de Methuen, bem como “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, representação de uma sociedade que se esgotava nas raízes tradicionais e que precisava de sangue novo para corresponder aos desafios da modernização na economia e nas mentalidades, bem evidenciada no papel de Berta e de Tomé da Póvoa.


Recorde-se ainda o escrito de Almeida Garrett “Portugal na Balança da Europa – Do que tem sido e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do Mundo Civilizado”. Trata-se da reflexão de um homem atento ao seu tempo sobre a evolução europeia, a emergência dos Estados Unidos da América na cena mundial e o lugar de Portugal na ordem mundial. E vemos como um ativista liberal olha a realidade nacional e internacional, procurando antever como os portugueses poderiam responder às novas circunstâncias. A obra foi escrita entre 1826 e 1829 e publicada em 1830. Acompanha a atribulada evolução nacional nesse período – desde a morte de D. João VI até ao início da guerra civil que opôs D. Pedro e D. Miguel. Depois de viver em França, como correspondente da Casa Laffitte, Garrett regressa a Portugal, a seguir à outorga da Carta Constitucional (“moldada pelas mais avisadas e prudentes da Europa”), para se dedicar ao jornalismo. Funda e dirige o jornal “Portugal” e passa três meses no Limoeiro por delito de opinião… D. Miguel regressa a Portugal e Garrett é obrigado a iniciar o seu segundo exílio – em Inglaterra, em França, na Ilha Terceira, onde colabora ativamente com Mouzinho da Silveira, regressando com Herculano como soldado do Batalhão Académico, como um dos bravos do Mindelo, no desembarque da praia do Pampelido.


No dizer de Ramalho Ortigão, encontramos em Garrett “um mensageiro do novo espírito europeu”, que se interroga sobre o que Portugal deveria ser na nova balança da Europa. Havia circunstâncias novas: a emancipação da América, a revolução de França e o engrandecimento da Rússia. Na balança antiga, Portugal era contrapeso necessário ao equilíbrio das três potências do Oeste: França. Inglaterra e Espanha. A mais interessada nesse equilíbrio havia sido a Inglaterra. Por isso, sustentou e garantiu a independência portuguesa.


Mas essa independência não era real. E Garrett parte do século XV, do tempo em que os papas e os imperadores haviam dado cabo da liberdade em Itália; em que, na Alemanha, a república federativa das pequenas potências que a compunham sucumbia perante a Casa de Áustria, antiga, inveterada e constante inimiga de toda a independência e liberdade; em que na Espanha os foros de Aragão e de Castela ou eram afogados em sangue ou caíam em desuso e em que em Portugal diminuía o poder dos nobres e aumentava o do rei e o do clero, espaçando-se a convocação de Cortes.


A descoberta da América veio alterar a balança da Europa. A influência do Mundo Novo tornou-se vantajosa. A agonia dos déspotas despontava, ainda que na Europa as tendências fossem inquietantes – ameaçando perseguir na América a liberdade foragida, através da “remessa periódica de parasitas”. Mas a América reage contra o despotismo europeu. Garrett elogia as virtudes americanas, de uma “confederação geral dos oprimidos contra os opressores”. E encontra o princípio sacrossanto segundo o qual “a liberdade é a única e sólida base de toda a felicidade das nações”. E diz-nos que a pureza do cristianismo é um dos melhores e mais evidentes fatores de consolidação do sistema da liberdade americana, ao lado da descentralização e do equilíbrio de poderes – autêntica “pedra filosofal das repúblicas”. Alexis de Tocqueville vem à nossa memória. E são as Américas e o seu apego concreto à liberdade que induzem a revolução francesa e as suas consequências. Depois houve as invasões. Bonaparte foi o artífice. E “a Europa já escrava ainda duvidava da sua servidão”. Napoleão encarnou a ambiguidade entre os princípios da revolução e uma prática de liberticida. Resistiu a Inglaterra de Pitt? É certo. Mas a causa da “quietação da Inglaterra no meio do bulício e da efervescência geral” deveu-se apenas ao facto de a nação já ser livre… E Garrett não poupa críticas à indiferença e à conciliação da Albion com a política mais retrógrada da Europa… Mas, a liberdade e a civilização triunfaram, e “o apóstata da sua causa foi debelado e punido”.


Garrett elogia a revolução de 1820. Portugal sem rei, sem comércio, sem indústria, sem administração, “descera ao mais vilipendioso estado”. As revoluções peninsulares (1812 e 1820) foram complementares – ambas “moderadas e pacíficas” e ambas conciliadoras com os tiranos, pois cederam para que cedessem. O erro capital de 1820 foi ter a revolução deixado as coisas como achou sem mudar senão os homens. “Como havia o povo de pugnar por um sistema que nem conhecia, nem sentia?”. A revolução foi militarmente construída e militarmente destruída. Assim se pode entender a contra-revolução de 1823 e a Abrilada de 24. A Santa Aliança imperava e a Europa sucumbiu na causa da liberdade, ao contrário da América. Ganharam o despotismo e a oligarquia. O estado do mundo civilizado em 1829 era, assim, perturbador: Luís XVIII reinava em França, onde a causa da humanidade podia ser ganha ou perdida (estava-se em vésperas da revolução de Julho de 1830); nos Países Baixos vivia-se um prodígio de conciliação de duas realidades diferentes e contraditórias (em 1830 nasceria a Bélgica); a Inglaterra estava estacionária enquanto outros andavam; a boa administração e o povo ilustrado da Prússia precisavam de mais liberdade; a Dinamarca era o único reino legitimamente absoluto da Europa; a Suécia, “tranquila e feliz”, era o “país natural das revoluções”; o governo russo (morto czar Alexandre) tinha medo à civilização e o governo austríaco tinha-lhe ódio; a Itália era toda escrava; o futuro da Grécia determinaria o destino de três impérios, o austríaco, o russo e o turco; em Madrid fazia-se o que apenas se desejava em Paris e em Portugal havia ilegitimidade, incerteza e confusão. A América do Norte olhava as misérias do velho mundo do alto do monte. Na América latina, a liberdade tardava porque não se passava facilmente de servo a cidadão e no Brasil havia uma estranha república sob forma de império (com que Garrett pouco se preocupa).


Portugal tem um único fim – ser livre. Daí restar-lhe optar entre uma independência verdadeira, uma independência com liberdade, e uma união com a Espanha. As instituições que conviriam ao País deveriam ser democráticas, baseadas no maior número, temperadas com o elemento aristocrático. Garrett defende a monarquia representativa e o constitucionalismo, em lugar do absolutismo e do radicalismo democrático. Insiste, por isso: na coerência constitucional da velha lei fundamental imemorial do Antigo Regime, que pecava pela forma, faltando-lhe regularidade, nexo e harmonia; na restauração dos antigos princípios da Constituição Portuguesa concretizada em 1822, apesar de haver uma democracia sem elemento aristocrático; e na moderação e equilíbrio da Carta Constitucional de 1826. No entanto, o escritor encontra defeitos e omissões na Carta - que o levarão em 1836 e depois de 1842 a pugnar pela verdadeira Regeneração, que chegará em 1851. Faltava o direito da coroa de dissolver a Câmara de deputados, não havia uma autêntica Câmara hereditária, confundiam-se funções administrativas e judiciais do poder local e minguavam garantias da Constituição: liberdade de imprensa, instrução pública, melhoramentos nas colónias, proteção do comércio e emancipação da indústria. Esse constitucionalismo deveria impedir que a liberdade e a independência fossem sacrificadas por uma oligarquia parasitária… E assim se poderia evitar a união com a Espanha, que Garrett considera um recurso extremo e desesperado…


Agostinho de Morai
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HERCULANO E ANTÓNIO MARIA

  


Na Lisboa oitocentista houve o tempo dos cafés e o “Marrare do Polimento” ditava leis, na que hoje é a rua Garrett. Ali Passos Manuel fazia escritório, José Estevão, Castilho, Herculano, Garrett e Bulhão Pato encontravam-se para debater os assuntos do momento. Mas, como reconheceu Zacarias d’Aça, essa voga passou e nasceram os Clubes, à maneira inglesa, e, entre eles, o Grémio Literário. Corria o ano de 1846 e os ânimos viviam exaltados, em guerra civil perante o “Cartismo” de Costa Cabral: a crise financeira, a revolta da Maria da Fonte, o início da Patuleia, o início clandestino de “O Espetro” de Rodrigues Sampaio. Garrett dava à estampa “As Viagens na Minha Terra”, antes vindas a lume em folhetins na “Revista Universal Lisbonense”, dirigida por Castilho, e Alexandre Herculano publicava o primeiro volume da sua “História de Portugal”. Helena Buescu e David Justino deram início agora ao ciclo sobre os fundadores do Grémio Literário, com a evocação de duas figuras primordiais na vida da vetusta instituição: Alexandre Herculano, o sócio número 1, fundador da moderna historiografia, marcante na literatura, na vida política e até na modernização da agricultura, com o seu premiadíssimo azeite; e António Maria Fontes Pereira de Melo, o governante, que tendo sido quatro vezes primeiro-ministro, fixou com o seu nome, na designação dada por Ramalho Ortigão, o período fundamental do liberalismo português – o fontismo. E se dúvidas houvesse Rafael Bordalo Pinheiro intitularia de “António Maria” a mais célebre das suas publicações críticas.


Alexandre Herculano, um dos bravos do Mindelo, vindo de uma família de reconstrutores da cidade de Lisboa, depois do grande terramoto, foi figura única da primeira geração liberal, cultor do progresso e da autonomia individual, insistindo especialmente na dimensão moral. “O erro deplorável dos adeptos de certa escola é desprezarem a distinção entre o progresso que influi no melhoramento social e moral dos povos, e aquele que só melhora a condição física”. A luta contra a tirania, o exílio e contra a morte da liberdade era expressão da superioridade do homem convertido em cidadão. Admirado pela geração dos jovens de 1870, o historiador foi a referência ética que se impôs. E lembremo-nos como nos seus ensaios e narrativas sobressaem o exemplo e a coerência da dignidade humana. “Eurico, o Presbítero” é o símbolo romântico, que se sacrifica estoicamente, enaltecendo a virtude dos seus adversários, em nome da honra, e em “A Abóbada” temos a sublime afirmação da vontade e do conhecimento que afinal prevalece num risco supremo. É esta coerência que encontramos em Herculano, que, não tendo apoiado a Revolução de Setembro de 1836, tornar-se-ia defensor em “A Voz do Profeta”, da Constituição compromissória de 1838, matricial no movimento estabilizador da Regeneração no Ato Adicional de 1852, em cujo regime defendeu intransigentemente a soberania popular com alternância de dois partidos – Regenerador e Histórico.


Para compreendermos Fontes Pereira de Melo, temos de entender a sua formação técnica e a muito precoce mobilização militar, cívica e política para a causa do liberalismo, na senda da carreira de armas de seu pai, em nome dos ideais da liberdade e do progresso. Por isso afirmou: “no nosso país há três grandes partidos. O progressista, o estacionário e o partido retrógrado. Eu sou progressista, digo-o com toda a franqueza, mas sou menos progressista do que muitos indivíduos que eu conheço nesta grande divisão; tenho, portanto, muita gente para a frente, e alguma para a retaguarda. (…) Entretanto, seria preciso que eu tivesse mais 30 anos, ou que tivesse nascido no século passado, para não ser progressista, como entendo que se deve ser” (15.1.1849). Num período longo, houve condicionantes, continuidades e descontinuidades – que permitem entender a ideia de progresso e o confronto que Herculano precisou entre este e o melhoramento moral dos povos.


GOM

NOVA EVOCAÇÃO/TRANSCRIÇÃO DE HERCULANO

 

A cronologia mais justifica esta alternância, que aqui temos exercido, entre textos atuais e evocações históricas. E hoje, precisamente, faremos eco tardio mas atual de uma referência histórica, a saber, a realização de uma auto levado à cena em 1401 no Mosteiro da Batalha para de certo modo assinalar a sagração respetiva.

E nesse contexto, novamente transcreveremos a descrição do espetáculo, evocado por Alexandre Herculano nas “Lendas e Narrativas” e que aqui se cita.

O que se segue é pois a transcrição do texto de Herculano:

“Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso (…) Estas primeiras figuras eram seis, formando uma espécie de prólogo ao auto. (…) Feitas as vénias a El-Rei, a Idolatria começou o seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, a o que a Fé acudia com dizer que estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia acabar e que elas Fé não era culpada de ter chegado tão azinha esse dia.

Então o Diabo vinha, lamentando-se de que a esperança começasse a entrar no coração dos homens, que ele Diabo tinha juz antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e, com isto, careteava com tais momos e trejeitos, que o povo ria a rebentar o mais devotamente que era possível”…

E a seguir transcrevo a fala que Baltazar Dias declama perante o Presépio:

“Santo filho de /Divinal/Salvador de triste raça /Humana,/ que desceste lá do assento/Celestial/ Vós da glória imperador/ Eternal/ Aceita este ofertório/ Não real/ Si. É quanto posso:/ Não há al”…

E transcrevo ainda um comentário do próprio Herculano, publicado em 1837 e posteriormente recolhido nos “Opúsculos”.

Aí escreve:

“Em Portugal é provável começassem as representações cénicas pelo mesmo tampo em que principiaram na Espanha: mas nenhum vestígio restam desse teatro primitivo”…

Assim mesmo!

E acrescente-se que Alexandre Herculano situou a partir de Garrett a renovação do teatro português, que ele próprio não praticou como dramaturgo mas fê-lo como analista. Interessa pois recordar aspetos da análise que Herculano faz do próprio historial da renovação do teatro em Portugal.

Remeto pois, a propósito, para referências a escritos hoje históricos de Herculano sobre o teatro em Portugal. E vem então a propósito recordar a visão histórica que Herculano aplicava também ao teatro.

Luis Francisco Rebello cita-o com frequência na “Breve História do Teatro Português” remetendo ações de renovação sobretudo a partir de Garrett mas não só: e isto, numa perspetiva que não deixava esquecer a própria renovação historial.

E tanto como dramaturgo como historiador.

Vale pois a pena recordar designadamente o que Rebello escreveu sobre a abordagem global da renovação do teatro: “Herculano, num artigo publicado em 1835 no Repositório Literário em que se fazia eco das teorias do romantismo, exortava os autores portugueses a (e cita) “aproveitarem os nossos tempos históricos mais belos que os dos antigos”, assim mesmo.

E cita Herculano como romancista, mas destacando designadamente alguns títulos de teatro com destaque para “O Fronteiro de Africa” e “Os Infantes de Ceuta” que classifica como “drama lírico”.

E é de assinalar ainda que Rebello cita amplamente Alexandre Herculano como dramaturgo sem dúvida mas ainda como autor de “avisado conselho” (e em diversas intervenções) na analise histórica do teatro português. E a propósito da dramaturgia portuguesa da época transmite um “avisado conselho” (sic) de Herculano a propósito dos dramaturgos da época:

“Não seria melhor que estudassem o mundo que os rodeia e que vestissem os filhos da sua imaginação com os trajes da atualidade?”

Não seria melhor?

 

DUARTE IVO CRUZ

EVOCAÇÃO DE UM AUTO HÁ 620 ANOS

 

Seja-nos permitida esta breve evocação de um auto realizado no Mosteiro da Batalha há exatos 620 anos, para assinalar a sagração do Mosteiro. Tal como referi na “História do Teatro Português” está-se a um século do “Auto da Visitação” de Gil Vicente, considerado iniciático na História do nosso Teatro.


Mas interessa então evocar o que Alexandre Herculano escreveu nas “Lendas e Narrativas” acerca desse espetáculo realizado no Mosteiro em 1401:


«Pela porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.


Estas primeiras figuras eram seis formando uma espécie de prólogo ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a esperança e a Caridade; após elas vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba, todas com as suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enleava os olhos da grande multidão dos espetadores era o Diabo, vestido de pele de cabra, com um rabo que se arrastava pelo tablado e seu forcado na mão, mui vistoso e bem posto.


Feitas as vénias a El-Rei, a Idolatria começou o seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé acudia com dizer que ao início estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia acabar e que ela Fé não era culpada de ter chegado tão asinha esse dia.


Então o Diabo vinha, lamentando-se de que a Esperança começasse a entrar no coração dos homens que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e, com isto, carateava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria e rebentava o mais devotamente que era possível».


 Assim mesmo!...


Ora bem: apraz-nos agora citar a projeção que Teófilo Braga faz do que denomina “Escola de Gil Vicente” e que agrupa em continuidades ligadas a uma expressão geográfica-cultural. Agrupa os dramaturgos também de acordo com afinidades geográfico-culturais. E nesse aspeto, tal como já referimos, as afinidades geográficas dos dramaturgos da época refletem a origem cultural subjacente.


Assim, a partir do que tradicionalmente se qualifica como a “Escola de Gil Vicente”, expressão usada por Teófilo Braga, teríamos uma ligação clara às origens geográficas: Escola de Gil Vicente em Évora com Afonso Álvares e António Ribeiro Chiado, em Lisboa com Baltasar Dias, Camões, Gil Vicente de Almeida, Jorge Pinto, Henrique Soares e Jerónimo Ribeiro, Santarém Coimbra com António Prestes, Simão Machado e Baltasar Estaço: e esta tradição cultural estende-se pelo menos até ao Brasil…


A verdade é que a chamada Escola Vicentina em rigor chega aos nossos dias!...Podemos acrescentar, a esse respeito, a tradição de um “estilo vicentino” que, repita-se, em rigor chega aos nossos dias!...

 

DUARTE IVO CRUZ 

REFERÊNCIAS A UM ESPETÁCULO MEDIEVAL

Alexandre Herculano.jpg

Fazemos hoje aqui breve referência a um espetáculo descrito por Alexandre Herculano nas "Lendas e Narrativas", espetáculo esse realizado em 1401, portanto há exatos 620 anos, para celebrar a sagração do Mosteiro da Batalha.

E é desde já assinalável este recurso a artes de teatro numa cerimónia régia de agração de um edifício religioso, ou, pelo menos com expressão sacra. De certo modo, isto mostra-nos que o teatro em Portugal surge anterior a Gil Vicente o a Henrique da Mota, o que não obsta a que o chamado "Mestre Gil" como durante séculos era designado, seja referido como o efetivo introdutor, digamos assim, do teatro-texto em Portugal.

Hoje iremos pois fazer só a transcrição do texto de Alexandre Herculano. Eis o que ele diz, no Tomo I das "Lendas e Narrativas", sobre o que terá sido o teatro em Portugal antes de Gil Vicente:

"Pela primeira porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.
Essas primeiras figuras eram seis formando uma espécie de prólogo ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a Esperança e a Caridade; após elas, vinham a Idolateria, o Diabo e a Soberba; todas com suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enlevava mais os olhos da grande multidão dos espectadores era o Diabo, vestido de pele de cabra, com um rabo que ele arrastava pelo tablado e seu forcado na mão, mui vistoso e bem posto.

Feitas as vénias a El-Rei, a Idolateria começou o seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé acudia com dizer que, ao início, estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia achar e que ela Fé não era culpada de ter chegado tão asinha esse dia.

Então o Diabo vinha lamentando-se de que a Esperança começasse a entrar no coração dos homens; que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e com isto, carreteava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria a rebentar o mais devotamente que era possível."

Ora bem, vale a pena recordar que Alexandre Herculano, nos "Opúsculos" publica um texto de 1837, onde de certo modo completa mas limita esta oposição, pois escreve que "em Portugal é provável que começassem as representações cénicas pelo mesmo tema em que principiaram na Espanha, mas nenhum vestígio resta desse teatro primitivo".

O que é no mínimo discutível!...

                                                                                                                       Duarte Ivo Cruz

 

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XIX) MAGISTRAL HERCULANO

 

O magistral Alexandre Herculano foi alguém que se singularizou como um português de horizontes largos, um historiador probo e moderno, fiel às provas e à ciência, fundador da historiografia contemporânea, um cidadão comprometido e exemplar.

Escritor de perfil clássico, foi dos mais dotados no manejo da língua e uma enorme figura moral – “homem de um só parecer. Dum só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer…”, da têmpera de Francisco Sá de Miranda. Ouvimos ainda os ecos da sua prosa militante: “Que o país seja governado pelo país é a nossa divisa. Como realização deste princípio, temos pugnado pela verdade do sistema parlamentar, apesar do descrédito a que a reação europeia o tem levado no continente; temo-nos esforçado por incutir aos nossos concidadãos a ideia de que só nele sinceramente respeitado pode estar a nossa marcha segura no caminho do progresso. Por isso temos pelejado contra os que, a troco de promessas de melhoramentos materiais, fecharam os olhos aos atentados dirigidos contra o dogma essencial das nossas crenças políticas. Por isso temos fulminado os escândalos, as malversações eleitorais, os diplomas de representante da nação passados por portaria, e o desprezo calculado dos princípios parlamentares erigidos em sistema pelo Governo atual” (1853).

Filho de um recebedor da Junta dos Juros e sobrinho por parte mãe de António Gil, o construtor que deu nome ao célebre Pátio onde nasceu, Alexandre Herculano é um símbolo forte do seu tempo. Estudou na Congregação do Oratório de S. Filipe Néri, nas Necessidades, e depois seguiu estudos na Aula do Comércio, não tendo tido possibilidade, como era seu desejo, de cursar na Universidade de Coimbra, por vicissitudes da guerra civil. A partir de 1829, vemo-lo a defender a causa liberal, participando na sublevação de 21 de agosto de 1831 do Infantaria 4, que o levou para o exílio, primeiro em Inglaterra e depois em França, juntando-se, em 1832, nos Açores, à causa da regência de D. Pedro. Nesse mesmo ano, desembarca na praia do Pampelido, entre os bravos do Mindelo, como Garrett. No Porto, é dispensado do serviço militar ativo, para ser bibliotecário na Biblioteca Pública e para reorganizar os fundos das livrarias monásticas, a começar em Santa Cruz de Coimbra. Na Revolução de Setembro de 1836, mantém-se fiel à Carta, que jurara, e escreve “A Voz do Profeta”, onde critica a nova situação, afirmando o seu cristianismo, contraditório não com a liberdade, mas com o despotismo, não com o novo, mas com o antigo regime, e procurando uma plataforma onde se encontrem o livre exame e a autoridade. Na redação da revista “O Panorama” (1837) e na direção do “Diário do Governo” demonstra as suas qualidades de pensador e cidadão. É um homem dividido entre o respeito da tradição e a rejeição das idolatrias. Para ele, o soldado liberal deveria hastear a cruz sobre o pendão da liberdade e tornar-se apóstolo da “fraternidade espiritual”. Em “O Pároco da Aldeia” (1844) procura conciliar as antigas formas rituais com a liberdade, o tradicionalismo e o reformismo. Concorda com a Constituição de 1838 por entender como positivo o compromisso alcançado. É o tempo da “Harpa do Crente”. D. Fernando II, seu amigo e admirador, nomeia-o diretor das bibliotecas reais da Ajuda e das Necessidades. Sob influência de Rodrigo da Fonseca, é eleito deputado pelo Porto, em 1840. Não é um orador, mas trabalha intensamente no campo do ensino popular com Vicente Ferrer do Neto Paiva. Com a restauração cartista de 1842, assume posição critica relativamente ao consulado de Costa Cabral. A sua residência da Ajuda torna-se centro de conspirações. Os anos quarenta são, no entanto, um período fecundo da sua criação literária e das suas reflexões históricas.

“Eurico, o Presbítero” é de 1844 e o primeiro volume da “História de Portugal” sai em 1846. Aí, recusa as interpretações providencialistas e encontra “a verdadeira origem da independência de Portugal” na ideia de nacionalidade, “que amadurecera e radicara nos ânimos de modo indestrutível e que sucessivamente se apoderara dos espíritos do Conde D. Henrique, de D. Teresa e do filho deles”.

A clara desafeição em relação à política de Costa Cabral por parte do próprio rei D. Fernando II leva Herculano a romper em 1850 com a neutralidade, assinando à cabeça o protesto dos intelectuais portugueses contra a lei das rolhas. Pode dizer-se que a alma da Regeneração de 1851 está em Alexandre Herculano. O movimento impor-se-á graças ao penhor moral do historiador, que depressa compreendeu que não eram as suas ideias ou o seu grupo que prevaleciam. Rodrigo domina o novo partido Regenerador, e Herculano considera ser isso negativo, sendo fundamental criar um polo político de alternância, que será o partido histórico, em cuja criação e concretização se empenha.

Nasce primeiro “O País”, e depois “O Português”, jornais críticos da lógica situacionista. O escritor torna-se um militante ativo da reforma nacional no sentido da concretização da legislação de Mouzinho da Silveira, da liberdade económica, do fim dos constrangimentos políticos e sociais do antigo regime, da concretização do programa municipalista contra o centralismo. Numa palavra, deveriam criar-se condições para que o país governasse o país. E D. Pedro V seria o primeiro homem moderno que houve em Portugal, mas morreria na flor da idade. Alexandre Herculano manter-se-ia fiel ao espírito de sempre: da procura de uma síntese entre a tradição e a modernidade, com um empenhamento intenso pela reforma do país, de modo combater o atraso e a intolerância.

A partir de 1867 tornar-se-á agricultor de sucesso em Vale de Lobos, num gesto moral de recusa do conformismo. No entanto, nesse período final da vida Herculano seria procurado pela juventude intelectual como referência e exemplo. Que magnífico sinal de vitalidade intelectual e cívica!

 

GOM

 

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HERCULANO: SUGESTÕES PARA UMA COMEMORAÇÃO HISTÓRICA

 

Uma intervenção didática faz-me novamente aludir à evocação do Auto assinalado e descrito por Alexandre Herculano (1810-1877) nas “Lendas e Narrativas”, realizado em 1401 no Mosteiro da Batalha para sagração do próprio edifício, hoje monumento histórico que abarca para lá da própria edificação.

 

Estava-se efetivamente a um século da inovação vicentina, mas é bem certo que o espetáculo teatral já existia entre nós. E nesse sentido, vale a pena recordar a descrição de Herculano, e o rigor que a mesma envolve.

 

O texto surge pois nas “Lendas e Narrativas” e tipifica uma abordagem de espaços e espetáculos que efetivamente documenta as origens pré-vicentinas do teatro português.

 

E então recordemos o que escreveu Herculano:

 

“Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.

 

Estas primeiras figuras eram seis, formando uma espécie de prólogo do auto. Três vinham adiante representando a Fé, a Esperança e a Caridade; após elas vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba; todas com as suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enleava os olhos da grande multidão de espetadores era o Diabo, vestido de pele de cabra, com um rabo que lhe arrastava pelo tablado e seu forcado na mão mui vistoso e bem posto”...

 

E prossegue a descrição do teatro-espetáculo medieval, com referências muito concretas aos textos, à marcação, e, de forma implícita, à própria expressão de espetáculo em si. Isto, não obstante Herculano afirmar em 1837, na revista “Panorama” que não havia nenhum vestígio sensível e documentado do espetáculo “primitivo” em Portugal:


“Em Portugal é provável começassem as representações cénicas pelo mesmo tempo em que principiaram em Espanha: mas nenhum vestígio resta deste teatro primitivo”...

 

E no entanto, nas “Lendas e Narrativas”, Herculano transcreve cenas e falas de um Auto realizado em 1401 para assinalar a sagração do Mosteiro da Batalha. É rigorosamente um século antes do vicentino “Auto da Visitação”, e no entanto a descrição cénica e a transcrição documentam expressões de verdadeiro teatro.

 

 Já vimos acima um extrato. Mas refira-se agora a fala de Baltazar perante o Presépio:

 

“Santo filho de/Divinal!/ Salvador da triste raça/humana./ Que desceste lá do assento/ Celestial/ Vós da glória imperador/ Eternal/Aceitai este ofertório/Não real,/Si. /É quanto posso:/ Não há al”...
Exemplo flagrante de texto e de espetáculo medieval!.

 

E pode-se acrescentar que Herculano não primou pela vaga e dispersa dramaturgia que escreveu.

 

Foram apenas três textos: “Tinteiro Não é Caçarola” (1938) é uma comédia “imitada” do teatro francês da época. “O Fronteiro de África ou Três Noites Aziagas” (1839) é mais sólido na sua evocação histórica, mas também não merece hoje grande destaque.  E “Os Infantes de Ceuta” (1844) constitui um mero libreto para comédia musicada.

 

Nada disto se compara com a obra geral de Alexandre Herculano!...

DUARTE IVO CRUZ

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 14 a 20 de maio de 2018

 

A «História de Portugal» de Alexandre Herculano constitui ainda hoje obra de consideração obrigatória para compreender as origens da Nação. “Querer é quase sempre poder: o que é excessivamente raro é querer”. Com esta afirmação o historiador responde a muitos dos que consideram o primado da liberdade crítica como um não querer.

 

UMA POLÉMICA CIVILIZADA
Sabemos como o autor de Eurico se demarcou das novas gerações que se lhe seguiram, em especial da que se afirmou nas Conferências Democráticas pela evolução e pela igualdade. Conhecemos os termos da polémica civilizada, mas claríssima, que travou com Oliveira Martins (sob o olhar atento de Antero), em que deixou muito clara a sua atitude essencial relativamente ao primado da liberdade política, económica e cultural. De qualquer modo, se há uma marca própria na atitude de Herculano, ela corresponde à afirmação da liberdade como um fator necessário de afirmação de vontade. Liberdade e não querer são assim antagónicos e contraditórios, na perspetiva herculaniana. E aí os detratores do velho historiador viram uma contradição insanável, entre o distanciamento na intervenção e a retidão quase profética na ética. Nesse sentido, a partir de Kant, aproximou-se de Montesquieu e de Tocqueville, numa demarcação evidente em relação a Rousseau. Não é a liberdade do bom selvagem que Herculano invoca, mas a articulação de vários poderes, a sua autolimitação e a consideração da cidadania, como distinta de uma “vontade geral”, abstrata ou uniformizadora, e enquanto concretização de instituições livres, capazes de assegurarem uma mediação eficaz e legitimadora. Os fundamentos medievais das instituições animaram, de facto, a sua investigação histórica, com especial ênfase para o municipalismo, o que motivou críticas à historiografia moderna. O certo é que, para Herculano, o bem comum resulta de uma mediação, capaz de tornar a vontade algo de positivo, com vista a realizar desígnios comuns e a contrariar qualquer ilusão onírica. Daí a sua interpretação da “História de Portugal” como uma afirmação de vontade – sem esquecer, contudo, um certo “espírito público”, a animar a causa da independência. Apesar das diferenças, o certo é que há uma óbvia convergência entre as linhas emancipadoras dos primeiros românticos, Garrett e Herculano, e os desígnios da geração de Antero, Eça e Oliveira Martins. E sobretudo verifica-se uma certa confluência crítica sobre a degenerescência das instituições liberais, com aceitação por Herculano de algumas soluções sociais visando combater as injustiças (a enfiteuse, as caixas económicas, o crédito cooperativo)… Não por acaso, José-Augusto França prolonga a sua análise do Romantismo português até às repercussões ocorridas quase no fim do século: “1835 (ou 1834), pax liberalis, é uma data indiscutível: marca o começo do processo romântico nacional, na sua fase de instauração. 1880 situa-se no fim deste mesmo processo, no momento em que se caracteriza uma viragem da sociedade portuguesa e onde, sobretudo, esta sociedade toma consciência dos seus próprios valores – e da sua própria falência”.

 

O ESTADO COMO GÉNESE DA NAÇÃO
A consideração da vontade criadora do Estado e em consequência a génese da Nação no século XII português põe a tónica na convergência de fatores orgânicos e históricos que permitiram a origem de Portugal – “nascido no século XII em um ângulo da Galiza, constituído sem atenção às divisões políticas anteriores, dilatando-se pelo território do Gharb sarraceno, e buscando até (…) aumentar a sua população com as colónias trazidas de além dos Pirenéus, é uma nação inteiramente moderna”. A sua história própria “é assaz honrada e ilustre sem essas vaidades estranhas que estão longe de terem o valor que se lhes atribui”… Herculano falava das invocações de Viriato, de Sertório e dos lusitanos – sobretudo referidas a partir do século XV, fruto de um modismo clássico. No entanto, não há um nexo de continuidade entre a resistência à invasão romana e os povos que formaram o reino de Portugal. A nova monarquia compôs-se, digamos assim, de duas componentes, da fisiologia e da fisionomia da sociedade, enquanto do outro lado “impôs, vencedora, os seus próprios caracteres, posto que, como devia acontecer, dele recebesse modificações orgânicas”. E assim, como é fácil de compreender, a cultura do ocidente peninsular construiu-se em dois movimentos, de norte para sul e de sul para norte. A presença dos barões de Entre-Douro-e-Minho, que apoiaram Afonso Henriques, vai completar-se, a partir de Coimbra, por uma aliança muito profícua com os municípios moçárabes. Daí a construção da língua portuguesa, a partir da convergência de diversos dialetos, em que a Península Ibérica foi sempre fértil – que culminou na uniformização do idioma, com pequenas diferenças de pronúncia ou terminologia (com a exceção do mirandês), em virtude da mobilidade interna e da centralização. Herculano pôs, deste modo, a tónica na vontade, a que se somou o fator unificador da costa marítima – que reforçou o carácter atlântico de Portugal, por contraponto à continentalidade da Espanha, com a centralidade de Leão e Castela a ter de se virar para oriente (Aragão e Navarra), já que não se concretizou a ligação ocidental, com os funestos desaparecimentos do filho de D. João II, Príncipe D. Afonso, e do filho de D. Manuel, Miguel da Paz, simbolicamente sepultado em Granada com seus avós, os Reis Católicos.

 

A TÓNICA NA ÉTICA CÍVICA
Herculano põe a tónica na ação animada pela ética cívica. Assim se explica o interesse dos jovens de 1870. Como afirma Fernando Catroga: “o velho soldado liberal” interessa a Oliveira Martins, “desde cedo, não só como historiador (…) e como reformador social, mas também como modelo de virtudes cívicas. É que, para ele, o dissídio herculaniano não encerrava uma lição negativista. Bem pelo contrário, o seu magistério, antes e depois de ‘Vale de Lobos’, surgia-lhe como um símbolo de luta pela subordinação da política à moral, como um protesto rico de significação social” (“Ética e Sociocracia – O exemplo de Herculano na geração de 70”, in “Studium Generale”, nº 4, Porto, 1982). Aqui está porventura a chave que liga uma tradição de pensamento que vem de Garrett e Herculano, passa pela Geração de 70 e chega, nos nossos dias, a Eduardo Lourenço. E Catroga, ao falar de Oliveira Martins (de quem o autor de O Labirinto da Saudade se aproxima), ainda refere uma “propensão sociologista – corrigida pela sobredeterminação ética – e o seu apego às questões práticas da vida” que não bloquearam “a sua adesão à gesta individual de Herculano, a qual acabará por emergir como critério aferidor do sentido da sua própria ação como homem público”. Afinal, o que articula estas perspetivas, diversas mas complementares, não é qualquer negativismo ou ausência, mas uma visão crítica dos mitos como modo de emancipação – nunca como aceitação de qualquer fatalismo, ou acomodação à inexistência de vontade. “Somos porque queremos” – repetirá Herculano e com ele os seus seguidores, animados pela verve crítica, capaz de alimentar fecundamente a vontade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A RAZÃO DE SER DE PORTUGAL…

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DIÁRIO DE AGOSTO (XXII) - 22 de agosto de 2017

 

Alexandre Herculano é símbolo do século liberal português. A sua vida foi exemplo de retidão.

 

Quando morreu o seu admirado rei D. Pedro V, na flor da idade, o jovem monarca que tudo prometia, Bulhão Pato disse-nos que o Mestre chorou lágrimas verdadeiras.

 

No seu exílio de Vale de Lobos, em Santarém, tornou-se agricultor modelar, a ponto de o seu azeite ser um dos mais premiados internacionalmente.

 

O azeite Herculano era um néctar de uma pureza fantástica, conseguido com muito trabalho, investigação e com o conhecimento do que melhor se fazia na Europa.

 

Foi fundador da moderna historiografia portuguesa, por fidelidade às fontes autênticas.

 

Um dia, perguntaram-lhe por que razão havia Portugal. O velho sábio respondeu pausadamente. Se fizermos uma lista de razões para existir e para não existir, talvez sejam mais os motivos teóricos para não existir do que para existir...

 

Mas nestes debates, a teoria é menos importante do que a experiência e do que a prática. – O facto é que existimos, há muitos séculos. Razão? – Somos porque queremos. Seremos enquanto quisermos!

 

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO

por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS


   De 19 a 25 de setembro de 2016

 

Os «Opúsculos» de Alexandre Herculano são um conjunto fundamental para a compreensão da obra do nosso grande historiador. Infelizmente, há muito se encontram esgotados, e a reedição iniciada por Joel Serrão não foi completada. Eis o que não pode ser esquecido.

 

 

HERCULANO, CIDADÃO COMPROMETIDO

Num tempo em que o jornal oficial não era exatamente o que é hoje, um repositório de atos legislativos ou de decisões políticas de órgãos de soberania, Alexandre Herculano foi redator do «Diário do Governo», antes da campanha de «O Panorama», publicando aí textos importantes que nos dão conta de um pensamento político, que, no essencial, conhecemos, mas que, estampado na folha oficial, ganha um especial significado. Entre janeiro e maio de 1838, o historiador exerceu tais funções, não assinando as suas prosas, mas não deixando dúvidas sobre as suas ideias, o seu empenhamento e a sua perspetiva. Para alguns, poderá parecer surpreendente que o autor de «A Voz do Profeta», libelo contra a Revolução de Setembro de 1836, apareça como porta-voz da solução política resultante, na prática, daquele movimento político. Importa, no entanto, referir que o historiador considerou serem a legitimidade da Assembleia Constituinte que aprovou a Constituição de 1838 e o compromisso a esta subjacente fatores decisivos para a afirmação da causa liberal. Ao contrário do que esperava, não prevaleceu uma lógica extrema, mas uma solução equilibrada. Assim, na introdução de 1867 a «A Voz do Profeta», Herculano afirmou a sua coerência, saudando a nova Constituição e reconhecendo o seu elevado merecimento: «Vencido na guerra civil, desautorizado e moralmente enfraquecido, o cartismo viu triunfar em grande parte as suas ideias na contextura da Constituição de 1838, votada por umas constituintes onde os vencidos estavam representados por insignificante minoria. Era a condenação solene da revolução, lavrada por um parlamento eleito debaixo da influência dela. O que no novo código político parecia mais oposto à índole da Carta era a organização da segunda câmara, e todavia o cartismo adquiria por aquele meio uma arma poderosa para de futuro reformar constitucionalmente o que havia de mau na recente organização de um dos corpos colegislativos, de modo que nem se restaurasse o absurdo pariato hereditário e ilimitado, nem a assembleia conservadora significasse apenas a interposição de uma parede entre duas porções de parlamento único». Uma figura ética como Herculano não deixava por mãos alheias a justificação inequívoca da sua posição política. Aliás, até à Regeneração (1851) será ele um dos mais fervorosos combatentes no sentido de conseguir o que foi alcançado no Ato Adicional de 1852, ou seja, a sábia síntese entre a velha legitimidade vinda da causa liberal de D. Pedro e a vontade constituinte de 1838. Só assim a Carta se tornou o texto constitucional mais duradouro da história portuguesa – e o rotativismo (ideado em parte muito significativa por Herculano) permitiu a estabilização política necessária.

 

O PRIMADO DA CONSTITUIÇÃO

Ao relermos os textos do historiador no «Diário do Governo», salta à vista a série «no signo da Constituição de 1838». Aí lemos uma série de alertas, a propósito das tentações radicais, que nos permitem dizer que se tivessem sido ouvidos não teria sido aberto o caminho persistente e longo para o golpe de Estado de 1842 de Costa Cabral, que restaurou a Carta na sua versão retrógrada, gerando um clima de guerra civil e atrasando a consolidação das instituições liberais. Vejamos os textos de 17 de março e de 4 de abril de 1838. O primeiro, refere-se aos «extremos que se tocam»… «Quando um povo sobe na religião, a qual está num meio, como todas as coisas boas, até a um extremo, qual é o fanatismo, torna-se feroz, perseguidor, intolerante, irracional; quando na religião desce até ao outro extremo, que é a incredulidade, aparece igualmente feroz, perseguidor, intolerante, irracional. No primeiro caso, queima os livros dos filósofos, e os filósofos; proscreve as artes e os prazeres; treme de tudo quanto à natureza pertence, até do seu próprio nome. No segundo caso extermina os homens do espírito e os livros da fé, desterra um sistema completo de recreios morais e populares, com que muitas idades se houveram por contentes e ricas; derriba todos os monumentos do passado, onde estampasse algum caráter religioso; assusta-se de tudo que lhe possa lembrar Deus ou Alma. Lá devasta-se em nome do espírito, cá devasta-se em nome da matéria: lá o archote, o picão e o açoute de ferro andavam na mão do sacerdote, cá andam na mão do filósofo: o sacerdote é o filósofo dos fanáticos; o ateu é o sacerdote dos incrédulos»… O texto continua no campo da política, já que era o radicalismo cego que preocupava Herculano, certo de que assim aconteceria, como aconteceu, o fortalecimento das opções que iria destruir a legitimidade constitucional tão sabiamente delineada. A passagem ilustra bem o caráter dos textos de opinião do «Diário do Governo» desse período.

 

A LITERATURA E A ÉTICA

No caso de Alexandre Herculano, verifica-se sempre a grande qualidade literária e ética de quem escreve. Já relativamente ao segundo texto, de abril, o historiador exprime, com os argumentos que invocará no texto já referido de 1867 na reedição de «A Voz do Profeta» o motivo pelo qual, apesar de não ter aderido à Revolução de 1836, assume a defesa da Constituição aprovada pelos constituintes, uma vez que se baseia na legitimidade cidadã e popular que defende: «o que queremos é não ser servos: queremos respeito à nossa propriedade, liberdade em tudo aquilo que a lei nos não proíbe; queremos paz e pão. A soberania de ninguém é direito, porque é um facto nascido da mesmíssima natureza dos corpos sociais: exerça-se do modo que por experiência e boa razão se achar mais conveniente; livremo-nos do despotismo de um indivíduo e do ainda mais tremendo despotismo da ralé, e demos documento à Europa de que somos dignos da liberdade. Esperamos achar conformes com a nossa opinião todos os homens sisudos de Portugal». Do que se tratava era de, com argumentos serenos e racionais, defender a solução moderada e compromissória de 1838 – de modo que houvesse um governo representativo das diversas famílias políticas. Além das considerações emblemáticas referidas, encontramos entre os textos da autoria de Herculano no «Diário do Governo», e a título exemplificativo, os seguintes temas: a Emigração para o Brasil, os Asilos de Infância, a instituição dos jurados na administração da justiça, a condenação inequívoca da pena de morte («bastaria atender aos verdadeiros princípios em que assenta a ordem social para conhecer que a pena de morte é um absurdo»)… Com grande independência política e com uma determinação no sentido da salvaguarda das instituições constitucionais, Herculano é, neste período muito fugaz, um redator probo, defensor da autonomia individual e da causa liberal, sempre sem perder o sentido crítico. Um dos maiores vultos da cultura e da língua portuguesas esteve assim ligado ao jornal oficial – emprestando a sua inteligência e a sua escrita à defesa da causa do constitucionalismo liberal. Poucos o ouviram imediatamente. Mais tarde, em 1851, pareceu ser-lhe dada atenção, mas foi tudo demasiado rápido…

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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