Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Em cima: Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira. Em baixo: António Pedro, Alexandre O’Neill e João Moniz Pereira
Na vida de Alexandre O’Neill há uma fotografia tirada em maio de 1948 no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, que simboliza um tempo em que coincidiam fatores contraditórios, mas plenos de sentido. A ditadura persistia, apesar dos ventos que sopravam na Europa e no mundo. Mário Cesariny, José-Augusto França, Marcelino Vespeira, António Pedro, O’Neill e João Moniz Pereira constituem o grupo. Alexandre faz-se representar provocatoriamente com um osso a sair da manga direita do casaco, como marca de controvérsia. O momento é, no entanto, fugaz. Maurice Nadeau escrevera a Histoire du Surrealisme no fim da Guerra. O’Neill, Cesariny, António Domingues e Moniz Pereira formaram, entusiasmados, o Grupo Surrealista de Lisboa, mais de vinte anos depois do manifesto de André Breton de 1924. Havia que aproveitar a oportunidade para trilhar caminhos novos. A Ampola Miraculosa, um romance-colagem, marca o contributo de Alexandre O’Neill para o movimento, preocupado com a reconstrução das palavras, enquanto Cesariny tratava do domínio das representações. Mas Cesariny e Moniz Pereira abandonam o grupo e o poeta de No Reino da Dinamarca encontra uma vocação própria (“Impossível tomar o íngreme caminho / da aventura mental”). Continuará, no entanto, atento a tudo de essencial que se fazia e escrevia.
A sua fábrica poética apresenta-se como inesgotável. Cada neologismo representa um modo de fazer da ironia uma denúncia da vidinha pobre e desprezível. “Às duas por três nascemos, / às duas por três morremos. / E a vida? Não a vivemos” (Poemas com endereço, 1962). Não se tratava apenas de ver a superfície, havia que ir ao fundo. “Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós.” (Feira Cabisbaixa, 1965). E por mais que se cite, ficamos sempre a pensar. É uma marca indelével. Como não procurar os símbolos muito nossos? O exemplo de Belarmino tornava-se um modo de nos entendermos melhor – “pugilista e poeta, campeões com jeito / e amadores da má vida”. Estava-se, afinal, num país relativo: “País purista a prosear bonito, / a versejar tão chique e tão púdico, / enquanto a língua portuguesa se vai rindo, / galhofeira, comigo. (…) / País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano. (…) / A santa Paciência, país, a tua padroeira, / já perde a paciência à nossa cabeceira” (id.). Portugal está sempre presente na sua reflexão, sem ilusões e sedento de ironia. Vinham à lembrança os encontros com Pascoaes no Café Central de Amarante. Longe das influências que lhe quiseram apontar, o poeta sempre deixou dito que mais do que Nicolau Tolentino ou do que o Abade de Jazente (hipotéticas sombras) havia que cuidar da realidade concreta e das suas particularidades. “Talento? / Tolentino? / Tolos.” O excesso e o divertimento eram necessários. E António Carlos Cortês tem razão quando salienta “que a originalidade de O’Neill passa pela pesquisa sobre um idioma que o poeta desconstrói e redescobre” – do amor ao humor, na melhor tradição do nosso lirismo. “Quanto a esse Tolentino, esse faceto, / devo dizer que nada lhe roubei / mas que podia ser seu neto” (id). Afinal, ao pesquisar a língua, do que se tratou sempre foi de tentar descobrir quem somos.
Assinalamos o centenário do nascimento de Alexandre O’Neill, que ocorre no dia 19 de dezembro.
Fotografia de Fernando Lemos
MEU REMORSO DE TODOS NÓS Pedro Mexia, ao reler No Reino da Dinamarca de Alexandre O’Neill, lembra “a pequena dor à portuguesa / tão mansa quase vegetal”, onde o poeta procura “pretextos para fugir ao real”, o que nunca chega a acontecer porque, de facto, há uma ligação incindível entre a poesia e a vida. Foi assim sempre com o poeta, que depressa se afastou de um campo onde pudesse haver dúvidas a esse respeito. E rapidamente se tornou inclassificável, já não dentro do redil surrealista. Quando lemos a sua obra, depressa compreendemos que o poeta se situou naquilo que um dia Antonio Tabucchi designou como domínio do picaresco, com tão sólidas raízes na tradição portuguesa, ao lado do lirismo e da história trágico-marítima. António Alçada, que continuo a recordar com imensa saudade, gostava muito de Alexandre. “Era bom conversar com ele. Ele era um precursor de leituras. Foi ele que me indicou o Borges, o Guimarães Rosa, os Cem Anos de Solidão, sei lá mais quê”. Era um repentista. Quando o António publicou os primeiros livros, comentou-lhe: “Apetece-me fazer um ensaio: Das tias em António Alçada Baptista”. Não o escreveu, mas foi como se o fizesse, pois daí em diante ninguém esqueceu a tia que mandou pintar os muros de uma quinta, para que quando viessem os comunistas, encontrassem tudo arranjadinho… Quando os dois se encontravam, era certa uma longa conversa, de rica cumplicidade. “Vá de Metro Satanás” – foi uma ideia inaproveitável para a publicidade do novo meio de transporte nascido no final dos anos cinquenta, que se tornou lenda. Tendo começado a viajar tarde, Alexandre O’Neill acompanhava as andanças políticas de António e em março de 1962 conheceu Giorgio La Pira, democrata cristão à frente do município de Florença, com fama de santo, que a Livraria Morais publicou – “Meu Caro António. O La Pira (que fisicamente se assemelha imenso ao Régio) é um tipo giro. Esta terra é maravilhosa. Até breve. Alexandre”. Na Peregrinação Interior está bem evidenciada a marca do poeta: « - Quem? O infinito? / Diz-lhe que entre. / Faz bem ao infinito / Estar entre gente.» (Abandono Vigiado, 1960). Quanto ao encontro com o Grupo Surrealista de Lisboa (1947), apesar de saudações sentidas a Breton (“Deflagraste em nós na sempiterna circunstância: a pasmaceira”) e Éluard (“Cantaste a beleza proferiste a verdade / (…) Disseste o que devias dizer”), o poeta considerou essencial demarcar-se de escolas. E em 1951 rompeu formalmente com o surrealismo, sem deixar o apego às marcas indeléveis dessa influência – “É tempo de acordar nas trevas do real / na desolada promessa / do dia verdadeiro” (Tempo de Fantasmas). A ironia será marca permanente: – “Ó Cesário Verde como eu queria / Que estivesses aqui!” Há humor e mágoa, riso e desgosto… “E se fossemos rir, / Rir de tudo tanto, / Que à força de rir / nos tornássemos pranto…” (No Reino da Dinamarca). E contra a intolerância, ainda em Abandono Vigiado: “Teima? Que topete! / Que se julga ele / Se um tigre acabou / nesta sala em tapete?”.
Concordo ainda com António Alçada quando este afirma em Pesca à Linha – Algumas Memórias: “Julgo que nenhum poeta contemporâneo foi como ele capaz de captar com mais subtileza o halo poético do quotidiano, o estofo lírico-épico-dramático que está por baixo da banalidade dos dias. Mesmo nos seus poemas que parecem circunstanciais têm implicações perenes pela necessidade de detetar o que há de essencial no acontecimento que parecia fugaz. Com isso atingia o âmago das situações comuns, cujo enigma não foi desvendado: a morte, o amor, o medo, a Pátria, a palavra. (…) No seguimento da sua relação intrínseca com o mistério da palavra foi incomparável na invenção de novas palavras e também na de recuperar a riqueza do vocabulário extinto ou em desuso, que redescobriu e repôs em circulação”. Leia-se Caixadóclos e tirem-se conclusões: “- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim? / - Que és o esticalarica que se vê. / - Público em geral, acaso o meu nome… / - Vai mas é vender banha da cobra! / - Lisboa, meu berço, tu que me conheces… / Este é dos que fala sozinho na rua… / - Campd’òrique, então não dizes nada? / - Ai tão silvataváres que ele vem hoje! / - Rua do Jasmim, anda, diz que sim! / - É o do terceiro, nunca tem dinheiro… / - Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você… / - Dos dois ou três, que o surrealismo… /- Ah, agora sim, fazem-me justiça! / - Olha o caixadóclos todo satisfeito a ler as notícias… (Feira Cabisbaixa, 1965).
UMA OBRA MARCANTE Quando foi lançado, em 1958, na Guimarães da Rua da Misericórdia, No Reino da Dinamarca, conjuntamente com Mar Novo de Sophia, com O Livro do Nómada Meu Amigo de Ruy Cinatti e Rosa Rosae de Merícia de Lemos, Jorge de Sena afirmou profeticamente: “Não podereis contar com nenhum destes quatro poetas para vos salvar (…). É típico da poesia autêntica, da que não é evasiva, não ter por onde se pegue para fugirmos à consciência, à lucidez, à crua luz da verdade moral”. De facto, tinha razão, uma vez que a palavra que aí se revelava significava era um inequívoco apelo à não indiferença. Alexandre O’Neill perscruta sempre o quotidiano, não como realidade pacata, mas como reflexão, excesso e divertimento. A vírgula – “Quando estou mal disposta / (e estou-o muitas vezes) / mudo o sentido às frases, / complico tudo”. O ponto – “Que eu saiba / só em Éluard sou único e final”.
Eis-nos perante a libertação da arte e pela arte – este o programa, a que O’Neill voltou sempre, conversando e desconversando, moendo e remoendo incessantemente as palavras, com recusa sistemática de uma Poesia com maiúscula, já que preferiu o retrato “à la minuta” do país em diminutivo. E na “Feira Cabisbaixa” desenha Portugal (“…se fosses só três sílabas…”), o tal cadinho onde cabe toda a nossa diferença (“se fosses só o sal, o sol, o sul, / o ladino pardal, / o manso boi coloquial”…). Das doceiras de Amarante aos toureiros da Golegã, “não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, / galo que cante a cores na minha prateleira”. Mas quem é, afinal, Portugal? “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”. Portugal magistralmente esboçado por um impressionista de génio. “País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano”. O’Neill impagável, da genealogia de Nicolau Tolentino, com olhar atento, para dentro de nós: “Subamos e desçamos a Avenida, / enquanto esperamos por uma outra / (ou pela outra) vida”… (Abandono Vigiado).
Neste ano de 2024 celebraremos em 19 de dezembro o centenário do nascimento de Alexandre O’Neill – não o esqueceremos por isso. E hoje começamos a recordá-lo.
Desenho de André Carrilho
Alexandre O’Neill (1924-1986) foi entre nós um dos mais dotados artífices da escrita do português do último século. Em Caixadòclos definiu o seu autorretrato com o especial culto da ironia. António Tabucchi, seu amigo, salientava, aliás, a importância da cultura portuguesa do picaresco, do chiste e do anedótico, que teve no poeta expressão superlativa : «– Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim? / – Que és o esticalarica que se vê. / – Público em geral, acaso o meu nome... / – Vai mas é vender banha de cobra! / – Lisboa, meu berço, tu que me conheces... / – Este é dos que fala sozinho na rua... / – Campdòrique, então, não dizes nada? / – Ai tão silvatávares que ele vem hoje! / – Rua do Jasmim, anda, diz que sim! / – É o do terceiro, nunca tem dinheiro... / – Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você... / – Dos dois ou três nomes que o surrealismo... / – Ah, agora sim, fazem-me justiça! / – Olha o caixadòclos todo satisfeito / a ler as notícias...»(Feira Cabisbaixa, 1965)
Quando nas comemorações do dia 10 de Junho de 1990, António Alçada Baptista anunciou a publicação das “Poesias Completas – 1951-1986” (Imprensa Nacional) fê-lo com a consciência plena de que homenageava um poeta singular que ajudou (e muito) à introspeção nacional, que traduz bem do carácter português. Uma ironia forte e subtil, o uso do escárnio e maldizer, desde os trovadores a Nicolau Tolentino, com linguagem de hoje, concedem a O’Neill um lugar especial na literatura. “Há mar e mar, há ir e voltar” – criou a fórmula mágica, mas viu recusada outra, por ser rebarbativa: “Vá de Metro, Satanás”. Quanto ao encontro com o Grupo Surrealista de Lisboa (1947) apesar de saudações sentidas a André Breton (“Deflagraste em nós na sempiterna circunstância: a pasmaceira”) e Paul Éluard (“Cantaste a beleza proferiste a verdade / (…) Disseste o que devias dizer”), o poeta considerava essencial não se levar muito a sério, demarcou-se de escolas e cartilhas. E em 1951 rompeu formalmente com o surrealismo como escola, sem deixar o apego às marcas indeléveis dessa influência – “É tempo de acordar nas trevas do real / na desolada promessa / do dia verdadeiro” (Tempo de Fantasmas). A ironia será marca permanente. “No Reino da Dinamarca” (1958), vemo-lo seguir o próprio caminho – “Ó Cesário Verde como eu queria / Que estivesses aqui!”. Há humor e mágoa, rir e roer… “E se fossemos rir, / Rir de tudo tanto, / Que à força de rir / nos tornássemos pranto…”. E em “Abandono Vigiado” (1960): “Teima? Que topete! / Que se julga ele / Se um tigre acabou / nesta sala em tapete?”. Alexandre O’Neill perscruta sempre o quotidiano, não como realidade pacata, mas como reflexão, excesso e divertimento – como no jogo dos sinais ortográficos. A vírgula – “Quando estou mal disposta / (e estou-o muitas vezes) / mudo o sentido às frases, / complico tudo”. O ponto – “Que eu saiba / só em Éluard sou único e final”.
Eis-nos perante a libertação da arte e pela arte – este o seu programa, a que voltou sempre, conversando e desconversando, moendo e remoendo incessantemente as palavras, com recusa sistemática de uma Poesia com maiúscula, já que preferiu o retrato “à la minuta” do país em diminutivo. E na “Feira Cabisbaixa” desenha Portugal (“se fosses só três sílabas”), diferença a diferença para chegar até nós (“se fosses só o sal, o sol, o sul, / o ladino pardal, / o manso boi coloquial”…). Das doceiras de Amarante aos toureiros da Golegã, “não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, / galo que cante a cores na minha prateleira”. Mas quem é, afinal, Portugal? “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”. Portugal magistralmente esboçado por um impressionista de génio. Como poderemos entender-nos sem ler o seu português castiço, que Tabucchi endeusava (como os sinais sonoros de Maria Parda). “País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano”. O’Neill impagável, olhar atento, para dentro de nós: “Subamos e desçamos a Avenida, / enquanto esperamos por uma outra / (ou pela outra) vida”…" E, em Um Adeus Português (1958), sente-se a força de uma cultura, que O’Neill entendeu como ninguém, onde lírica, tragédia e ironia se encontram sempre: “Nesta curva tão terna e lancinante / que vai ser que já é teu desaparecimento / digo-te adeus / e como um adolescente / tropeço de ternura / por ti». Do mesmo modo que a Peregrinação Interior de António Alçada tem Alexandre por marca: « - Quem? O infinito? / Diz-lhe que entre. / Faz bem ao infinito / Estar entre gente.» (Abandono Vigiado). Não há paralelo com tão grande originalidade e com tão grande marca de ironia, retratando com ninguém a segunda metade do século XX. Nicolau Tolentino foi inimitável no seu tempo. Todos o ouvimos a proclamar: “Chaves na mão, melena desgrenhada”. O’Neill são os nossos dias, são o nosso retrato à la minuta…
Alexandre O’Neill (1924-1986) foi entre nós um dos mais dotados artífices da escrita do português do último século. Em Caixadòclos definiu o seu autorretrato com especial culto da ironia. António Tabucchi salientava, aliás, a importância da cultura portuguesa do picaresco, do chiste e do anedótico, que teve no poeta expressão superlativa: «– Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim? / – Que és o esticalarica que se vê. / – Público em geral, acaso o meu nome... / – Vai mas é vender banha de cobra! / – Lisboa, meu berço, tu que me conheces... / – Este é dos que fala sozinho na rua... / – Campdòrique, então, não dizes nada? / – Ai tão silvatávares que ele vem hoje! / – Rua do Jasmim, anda, diz que sim! / – É o do terceiro, nunca tem dinheiro... / – Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você... / – Dos dois ou três nomes que o surrealismo... / – Ah, agora sim, fazem-me justiça! / – Olha o caixadòclos todo satisfeito / a ler as notícias...»(Feira Cabisbaixa, 1965)
Quando nas comemorações do dia 10 de Junho de 1990, António Alçada Baptista anunciou a publicação das “Poesias Completas – 1951-1986” (Imprensa Nacional) fê-lo com a consciência plena de que homenageava um poeta singular que ajudou (e muito) à introspeção nacional, que traduz bem do carácter português. Uma ironia forte e subtil, o uso do escárnio e maldizer, desde os trovadores a Nicolau Tolentino, com linguagem de hoje, concedem a O’Neill um lugar especial na literatura. “Há mar e mar, há ir e voltar” – criou a fórmula mágica, mas viu recusada outra, por ser rebarbativa: “Vá de Metro, Satanás”. Quanto ao encontro com o Grupo Surrealista de Lisboa (1947) apesar de saudações sentidas a Breton (“Deflagraste em nós na sempiterna circunstância: a pasmaceira”) e Éluard (“Cantaste a beleza proferiste a verdade / (…) Disseste o que devias dizer”), o poeta considerava essencial não se levar muito a sério, demarcou-se de escolas e cartilhas. E em 1951 rompeu formalmente com o surrealismo como escola, sem deixar o apego às marcas indeléveis dessa influência – “É tempo de acordar nas trevas do real / na desolada promessa / do dia verdadeiro” (Tempo de Fantasmas). A ironia será marca permanente. “No Reino da Dinamarca” (1958), vemo-lo seguir o próprio caminho – “Ó Cesário Verde como eu queria / Que estivesses aqui!”. Há humor e mágoa, rir e roer… “E se fossemos rir, / Rir de tudo tanto, / Que à força de rir / nos tornássemos pranto…”. E em “Abandono Vigiado” (1960): “Teima? Que topete! / Que se julga ele / Se um tigre acabou / nesta sala em tapete?”. Alexandre O’Neill perscruta sempre o quotidiano, não como realidade pacata, mas como reflexão, excesso e divertimento – como no jogo dos sinais ortográficos. A vírgula – “Quando estou mal disposta / (e estou-o muitas vezes) / mudo o sentido às frases, / complico tudo”. O ponto – “Que eu saiba / só em Éluard sou único e final”.
Eis-nos perante a libertação da arte e pela arte – este o seu programa, a que voltou sempre, conversando e desconversando, moendo e remoendo incessantemente as palavras, com recusa sistemática de uma Poesia com maiúscula, já que preferiu o retrato “à la minuta” do país em diminutivo. E na “Feira Cabisbaixa” desenha Portugal (“se fosses só três sílabas”), diferença a diferença para chegar até nós (“se fosses só o sal, o sol, o sul, / o ladino pardal, / o manso boi coloquial”…). Das doceiras de Amarante aos toureiros da Golegã, “não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, / galo que cante a cores na minha prateleira”. Mas quem é, afinal, Portugal? “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”. Portugal magistralmente esboçado por um impressionista de génio. Como poderemos entender-nos sem ler o seu português castiço, que Tabucchi endeusava (como os sinais sonoros de Maria Parda). “País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano”. O’Neill impagável, olhar atento, para dentro de nós: “Subamos e desçamos a Avenida, / enquanto esperamos por uma outra / (ou pela outra) vida”…" E, em Um Adeus Português (1958), sente-se a força de uma cultura, que O’Neill entendeu como ninguém, onde lírica, tragédia e ironia se encontram sempre: “Nesta curva tão terna e lancinante / que vai ser que já é teu desaparecimento / digo-te adeus / e como um adolescente / tropeço de ternura / por ti». Do mesmo modo que a Peregrinação Interior de António Alçada tem Alexandre por marca: « - Quem? O infinito? / Diz-lhe que entre. / Faz bem ao infinito / Estar entre gente.» (Abandono Vigiado).
«Minuciosa formiga não tem que se lhe diga: leva a sua palhinha asinha, asinha.
Assim devera eu ser e não esta cigarra que se põe a cantar e me deita a perder.
Assim devera eu ser: de patinhas no chão, formiguinha ao trabalho e ao tostão.
Assim devera eu ser se não fora não querer».
O poema de Alexandre O’Neill merece atenção especial, sobretudo neste momento em que o debate lusitano sobre a pandemia Covid-19 se torna uma grande encenação de passa-culpas. Como é hábito antigo, passamos rapidamente dos melhores do mundo para os piores. Do milagre para a maldição… Ora formigas, ora cigarras – e esquecemo-nos que somos, sempre fomos, as duas realidades como toda a gente. Felizmente! E razão tem o Alexandre O’Neill – “Assim devera eu ser / se não fora não querer”. Do que se trata? “Não fora não querer” significa não querer ser o melhor do mundo, porque ninguém o é. Olhemos com um pouco de atenção o que se passa com este traiçoeiro vírus? Toda a gente sabe que a situação que vivemos constitui um dilema difícil. Se ficássemos confinados, não resolveríamos o essencial. Partindo para o disparate desconfinado, também não. Talvez adiássemos por dias ou semanas o que inexoravelmente sofremos hoje. Mas um dilema é um dilema. A economia e a saúde pública obrigam a uma combinação de fatores. Não podemos ao mesmo tempo fazer avançar o negócio e contrariar o desemprego, sem redobrar o cuidado na saúde pública. Aqui bate o ponto. E é verdade que houve quem julgasse que por ser jovem ficaria incólume à doença. E também houve quem pensasse que a vacina estaria ao virar da esquina, e tudo se resolveria, sem dificuldades… Portanto, toca a andar… Mas sejamos muito práticos. De facto, fomos algo facilitadores, como quase sempre somos. O certo é que tínhamos de desconfinar, com as cautelas necessárias. E este é o nosso ponto! Temos dificuldade em planear e em prever ou prevenir. O que nos diz o poema imortalizado por Amália e agora lembrado por Adriana Calcanhoto é apenas isto – temos de cuidar dos exemplos das minuciosas formigas e das gaiteiras cigarras. Ou seja, temos de saber ser formigas gaiteiras e cigarras minuciosas. Que é a arte senão o sentimento e o cuidado? No meu livrito já aqui citado sobre o paradoxo de Zenão afirmo em dado passo: “todas as fábulas de Esopo, de Fedro ou de La Fontaine contêm um paradoxo. Elas são ao mesmo tempo lições morais e apelos à sabedoria suficiente para não seguir cegamente uma conclusão rígida. É a formiga um modelo de vida? Naturalmente que o não é. Mas pode ser. O mesmo para a cigarra. Esopo ensina-nos sim que a vida não pode esquecer o outro lado das coisas. Daí as representações pedagógicas do mundo às avessas. Poderia a formiga viver sem a música das cigarras? Poderia a cigarra viver sem o trabalho das formigas? Claro que não. Uma fábula é um paradoxo ilustrado. Temos sempre de a ver o direito e o avesso… Como num lenço de namorados, temos de saber que o direito é que dá a leitura, a qual não existiria se não houvesse avesso… Pode a raposa viver sem o corvo? Pode o burro existir sem o leão? E tal como Zenão nos ensinou, a pura lógica não permitiria sequer que a cigarra e a formiga se encontrassem, e logo não haveria a lição paradoxal da cigarra laboriosa e da formiga cantadeira”… Eis por que razão o nosso saudoso Alexandre O’Neill tem toda a razão… Escrevo, entristecido, eu anglófilo empederrnido, ao ver Mr. Johnson, Boris, a reeditar os métodos da pérfida Albion, e as desconsiderações de John Bull, que conhecemos de ginjeira. Agora vêm dizer que teríamos de ter sido ainda melhores para usufruir das benesses britânicas. E eis que dão motivos para as nossas lágrimas de crocodilo. Para mim, no entanto, tudo pode ser mais simples – se redobrarmos as cautelas e se soubermos ser boas formigas e melhores cigarras…
Não é possível falar de identidade portuguesa sem ouvir Alexandre O’Neill, que disse como ninguém o que deve ser dito – num tempo em que se verifica por toda a parte a tentação de maximizar as identidades fechadas. De facto, como vimos depois da Primavera dos Povos (1848), a afirmação das diferenças nacionais teve consequências dramáticas: nacionalismos agressivos, soberanias ilimitadas, conflitos desregulados, tribalismos doentios. Ao falar de Portugal O’Neill põe-nos de sobreaviso relativamente às tentações absolutistas. Eduardo Lourenço disse em «O Labirinto da Saudade» que não somos nem melhores nem piores que outros e que a História tem de ser um revelador de imperfeição e responsabilidade… Pode dizer-se que o poema de «Feira Cabisbaixa» é emblemático – permitindo encarar a História como exigência de não esquecer o lirismo, a tragédia e o carácter pícaro da nossa cultura ancestral. Nascemos dos trovadores, continuámos entre a lírica e a história trágico-marítima, mas nunca esquecemos o escárnio e mal dizer e a ironia de Fernão Mendes ou do Pranto de Maria Parda… Está tudo aqui no nosso Portugal visto por O’Neill…
«Ó Portugal, se fosses só três sílabas, linda vista para o mar, Minho verde, Algarve de cal, jerico rapando o espinhaço da terra, surdo e miudinho, moinho a braços com um vento testarudo, mas embolado e, afinal, amigo, se fosses só o sal, o sol, o sul, o ladino pardal, o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha, a desancada varina, o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos, a muda queixa amendoada duns olhos pestanítidos, se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos, o ferrugento cão asmático das praias, o grilo engaiolado, a grila no lábio, o calendário na parede, o emblema na lapela, ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato!
*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos, rendeiras de Viana, toureiros da Golegã, não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, galo que cante a cores na minha prateleira, alvura arrendada para o meu devaneio, bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço. Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, golpe até ao osso, fome sem entretém, perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, rocim engraxado, feira cabisbaixa, meu remorso, meu remorso de todos nós...»
Alexandre O´Neill é um dos grandes poetas portugueses de sempre. A sua obra é inesgotável. Cada palavra é ideia e é festa... Foi um dos grandes amigos de António Alçada e mantiveram sempre esse afeto, por nunca se levarem demasiado a sério. Hoje escolhemos dois belos e enigmáticos poemas. O primeiro sobre a misteriosa palavra já:
«Já não é hoje? / Não é aquioje? / Já foi ontem? / Será amanhã? / Já quandonde foi? / Quandonde será? / Eu queria um jazinho que fosse / aqui já / tuoje, aqui já...»
O segundo foi imortalizado por Amália – e Adriana Calcanhoto lembra-o! É sobre uma minuciosa formiga! A fábula reinventada!
«Minuciosa formiga / não tem que se lhe diga: / leva a sua palhinha / asinha, asinha. / Assim devera eu ser / e não esta cigarra que se põe a cantar / e me deita a perder / Assim devera eu ser: / de patinha no chão / formiguinha ao trabalho e ao tostão. / Assim devera eu ser / Se não fosse não querer...».
A beleza e o músculo dos seus poemas sempre me deixaram claro que o importante é viver na padaria da aldeia de cada um. E regar os gladíolos, e vestirmo-nos com traje de humor e em coração, a luta e a colcha que nos cobre os dias.
Ainda hoje leio o grande Alexandre O’Neill com a surpresa que me deixa sempre. A sua prosa, também marcada pelas influências surrealistas - ou não tivesse O’Neill sido um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa, com Mário Cesariny, José-Augusto França entre outros, tendo tido lugar as primeiras reuniões deste grupo na conhecida pastelaria Mexicana – utilizava um jogo de palavras lúdico e único e também se caracterizava por uma intensa sátira aos portugueses tão clara na expressão "meu remorso, meu remorso de todos nós".
O’Neill não conseguindo viver apenas da sua arte, chegou-se até ao campo da publicidade e é da sua autoria o lema
«Há mar e mar, há ir e voltar» ou, da campanha desse Verão «Passe um Verão desafogado».
Alçada que tanto admirava Alexandre O’Neill e que sempre foi seu grande amigo, relatou-me que um dia tinha perguntado ao O’Neill, qual seria a razão do bom entendimento deles, ao que Alexandre teria respondido, dizendo de imediato “A gente dá-se bem porque não se leva a sério”.
António Alçada considerava-se neste grupo de amigos, um crente entre os ateus e uma vez, num táxi, seguia O’Neill com José Cutileiro e disseram adeus ao António Alçada quando por acaso o avistaram. E o Alexandre terá dito para o José Cutileiro: “O António ficou a pensar: lá vão aqueles para o ateísmo”.
Um dia o António escrevia a sua crónica para a revista Máxima quando me disse: “Sabes que o José Cutileiro tinha bons versos? Recordo aquele “De si me sirvo amor como de tudo” e, como o declamou ao lado do Alexandre, este, fez-lhe o reparo
Falta aí uma vírgula. De si me sirvo, amor, vírgula, como de tudo.
Alexandre O’Neill sempre com humor era um prazer ouvi-lo, uma verdadeira fonte de achados linguísticos, assim me transmitiu o António Alçada num dos múltiplos dias em que do Alexandre me falou.
E tendo acordado naquele Domingo com um poema do Alexandre na memória, o António telefonou-me e lá fomos almoçar ao restaurante em Sintra. A verdade, é que a dada altura, subíamos a Serra de Sintra na 4L do António, enquanto eu lia em alta voz um poema do O’Neill que começava
Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo
- Ó António!, gritei-lhe, olha que não estamos a subir. O carro não sobe?
- Olha Teresinha senti o mesmo, mas não queria interromper o poema.
- Ó António, não estás a ver que trazemos o caixote do lixo agarrado ao para-choques?
E continuei
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
E o Alçada olhou-me e comovidamente disse-me:
Ó Teresa ainda bem que não paraste a leitura do poema do O’Neill. Foi a melhor homenagem que lhe fizeste: o caixote do lixo pode perfeitamente querer ouvir o poema de um beijo.
Teresa Bracinha Vieira
OBS: Há seis anos atrás este maço de palavras foi publicado no Blogue do CNC. Quando o escrevi achei-me num eixo de orações a galope na saudade. Reli-o hoje, e no avesso do ido encontrei o que sempre será.