Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A beleza e o músculo dos seus poemas sempre me deixaram claro que o importante é viver na padaria da aldeia de cada um. E regar os gladíolos, e vestirmo-nos com traje de humor e em coração, a luta e a colcha que nos cobre os dias.
Ainda hoje leio o grande Alexandre O’Neill com a surpresa que me deixa sempre. A sua prosa, também marcada pelas influências surrealistas - ou não tivesse O’Neill sido um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa, com Mário Cesariny, José-Augusto França entre outros, tendo tido lugar as primeiras reuniões deste grupo na conhecida pastelaria Mexicana – utilizava um jogo de palavras lúdico e único e também se caracterizava por uma intensa sátira aos portugueses tão clara na expressão "meu remorso, meu remorso de todos nós".
O’Neill não conseguindo viver apenas da sua arte, chegou-se até ao campo da publicidade e é da sua autoria o lema
«Há mar e mar, há ir e voltar» ou, da campanha desse Verão «Passe um Verão desafogado». Alçada que tanto admirava Alexandre O’Neill e que sempre foi seu grande amigo, relatou-me que um dia tinha perguntado ao O’Neill, qual seria a razão do bom entendimento deles, ao que Alexandre teria respondido, dizendo de imediato “ A gente dá-se bem porque não se leva a sério”.
António Alçada considerava-se neste grupo de amigos, um crente entre os ateus e uma vez, num táxi, seguia O’Neill com José Cutileiro e disseram adeus ao António Alçada quando por acaso o avistaram. E o Alexandre terá dito para o José Cutileiro: “ O António ficou a pensar: lá vão aqueles para o ateísmo”.
Um dia o António escrevia a sua crónica para a revista Máxima quando me disse: “Sabes que o José Cutileiro tinha bons versos? Recordo aquele “ De si me sirvo amor como de tudo” e , como o declamou ao lado do Alexandre, este, fez-lhe o reparo
Falta aí uma vírgula. De si me sirvo, amor, vírgula, como de tudo.
Alexandre O’Neill sempre com humor era um prazer ouvi-lo, uma verdadeira fonte de achados linguísticos, assim me transmitiu o António Alçada num dos múltiplos dias em que do Alexandre me falou.
E tendo acordado naquele Domingo com um poema do Alexandre na memória, o António telefonou-me e lá fomos almoçar ao restaurante em Sintra. A verdade, é que a dada altura, subíamos a Serra de Sintra na 4L do António, enquanto eu lia em alta voz um poema do O’Neill que começava
Congresso de gaivotas neste céu Como uma tampa azul cobrindo o Tejo - Ó António !, gritei-lhe, olha que não estamos a subir. O carro não sobe? - Olha Teresinha senti o mesmo, mas não queria interromper o poema. - Ó António, não estás a ver que trazemos o caixote do lixo agarrado ao pára-choques?
E continuei
Querela de aves, pios, escarcéu. Ainda palpitante voa um beijo. E o Alçada olhou-me e comovidamente disse-me:
Ó Teresa ainda bem que não paraste a leitura do poema do O’Neill. Foi a melhor homenagem que lhe fizeste: o caixote do lixo pode perfeitamente querer ouvir o poema de um beijo.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Solicitou-se a reposição deste texto publicado em 2013 neste blogue.
O CÉLEBRE CASO DA NÃO PRODUÇÃO DE PORCOS… 28 de março de 2019
O António Alçada Baptista era um contador de histórias inesgotável. Estar-se com ele era sempre um deleite, uma vez que se passava sempre um tempo fantástico… E gostava muito de contar o que aqui vou recordar, e que é a ilustração suprema do analfabetismo da tecnocracia. Millor Fernandes dizia, aliás, que «a economia compreende toda a atividade do mundo. Mas nenhuma atividade do mundo compreende a economia». E o António dizia por outras palavras isto mesmo.
Por isso, recordo o célebre caso da não criação de porcos. Tudo partia da existência de um mirífico subsídio por cabeça para a não criação de porcos. Quantos desses apoios não conhecemos nós, em várias circunstâncias e por múltiplas razões? A história tinha a ver com o requerimento feito por um pobre agricultor a um distante Ministro. Basta ler a parte final para entender tudo. Oiçamos. «Excelência. Estes porcos que não criaremos teriam comido 10 mil sacas de trigo. Ora, assegurando-nos que o governo indemnizará igualmente os agricultores que não cultivem o trigo.
Nesta ordem de ideias, poderemos esperar que nos deem qualquer coisa pelas sacas de trigo que não serão cultivadas para os porcos que não criaremos. Ficar-vos-emos extraordinariamente reconhecidos se nos responder o mais rapidamente possível, porquanto julgamos que esta época do ano será a melhor para a não criação de porcos e, por isso, gostaríamos de começar quanto antes. Queira Vossa Excelência, Senhor Ministro, receber os protestos da maior consideração. P.S. – Excelência. Não obstante o exposto poderemos engordar 10 ou 12 porcos só para nós, sem que isso venha a perturbar a nossa não-criação de porcos? Queremos assegurar que esses animais não entrarão no mercado e não significam mais do que a maneira de termos um pouco de toucinho e presunto para o inverno». O exemplo é extraordinário. Rio-me comigo mesmo quando lembro o gozo sentido pelo António a contar este episódio, e todos nós a ver um funcionariozinho de pala e mangas de alpaca e receber a missiva e a tentar responder-lhe com toda compostura …
E corri à estante para reler o Alexandre O’Neill, amigo do peito do António, que insistiu sempre que se davam bem porque nunca se levaram demasiado a sério…
«Ó Portugal, se fosses só três sílabas, linda vista para o mar, Minho verde, Algarve de cal, jerico rapando o espinhaço da terra, surdo e miudinho, moinho a braços com um vento testarudo, mas embolado e, afinal, amigo, se fosses só o sal, o sol, o sul, o ladino pardal, o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha, a desancada varina, o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos, a muda queixa amendoada duns olhos pestanítidos, se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos, o ferrugento cão asmático das praias, o grilo engaiolado, a grila no lábio, o calendário na parede, o emblema na lapela, ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato!
*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos, rendeiras de Viana, toureiros da Golegã, não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, galo que cante a cores na minha prateleira, alvura arrendada para o meu devaneio, bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço. Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, golpe até ao osso, fome sem entretém, perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, rocim engraxado, feira cabisbaixa, meu remorso, meu remorso de todos nós... »
José de Guimarães intitulou esta sua obra como “D. Sebastião e Camões”. São dois símbolos que devem ser lidos, como nos ensinou Eduardo Lourenço, com perspetiva crítica. São duas faces da nossa existência coletiva que devem constituir desafios de exigência e rigor. António Sérgio e Jaime Cortesão refletiram sobre a necessidade de darmos sequência positiva ao melhor do que temos feito. Como? Pela fixação, pela criação de riqueza, menos pela lógica exclusiva do transporte. Contra a ideia de improviso e as curtas vistas – importa aproveitar nas melhores condições as nossas qualidades.
Hoje o “Made in Portugal” começa a ser, no mundo, exemplo de qualidade – na moda, no vestuário, na alimentação, nos vinhos, na investigação científica, nas novas tecnologias, nos serviços, no turismo. Poderemos dar muitos exemplos – mas o culto do rigor, da exigência e do planeamento não podem ser esquecidos. É bom preferir o que produzimos, se isso for sinal de maturidade e de qualidade – não se for protecionismo. Há um longo caminho a percorrer, com trabalho, planeamento, educação, ciência e cultura…
Um dia, António Alçada disse-me que ninguém definiu melhor a pátria do que Alexandre O’Neill no seu poema “País Relativo”. Leia-se verso por verso e veja-se como o poeta de “Feira Cabisbaixa” tem toda a razão. Portugal merece o nosso muito especial afeto pelo que tem de relativo, de imperfeito, mas capaz de ser melhor… António Tabucchi compreendeu-o também ao citar o “Pranto de Maria Parda” e ao chamar a atenção para o picaresco, ao lado do épico e do lírico. Nem melhores nem piores, nem heróis do mar nem lixo – apenas nós, capazes de sermos melhores, com capacidade de nos rirmos de nós mesmos…
«País por conhecer, por escrever, por ler... País purista a prosear bonito, a versejar tão chique e tão pudico, enquanto a língua portuguesa se vai rindo, galhofeira, comigo. País que me pede livros andejantes com o dedo, hirto, a correr as estantes. País engravatado todo o ano e a assoar-se na gravata por engano. País onde qualquer palerma diz, a afastar do busílis o nariz: -Não, não é para mim este país! mas quem é que bàquestica sem lavar o sovaco que lhe dá o ar? Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes que há neste país. País do cibinho mastigado devagarinho. País amador do rapapé, do meter butes e do parlapié, que se espaneja, cobertas as miúdas, e as desleixa quando já ventrudas. O incrível país da minha tia, trémulo de bondade e de aletria. Moroso país da surda cólera, de repente que se quer feliz. Já sabemos, país, que és um homenzinho... País tunante que diz que passa a vida a meter entre parêntesis a cedilha. A damisela passeia no país da alcateia, tão exterior a si mesma que não é senão a fome com que este país a come. País do eufemismo, à morte dia a dia pergunta mesureiro: - Como vai a vida? País dos gigantones que passeiam a importância e o papelão, inaugurando esguichos no engonço do gesto e do chavão. E ainda há quem os ouça, quem os leia, lhes agradeça a fontanária ideia! Corre boleada, pelo azul, a frota de nuvens do país. País desconfiado a reolhar para cima dum ombro que, com razão duvida. Este país que viaja a meu lado, vai transido mas transistorizado. Nhurro país que nunca se desdiz. Cedilhado o cê, país, não te revejas na cedilha, que a palavra urge. Este país, enquanto se alivia, manda-nos à mãe, à irmã, à tia, a nós e à tirania, sem perder tempo nem caligrafia. Nesta mosquitomaquia que é a vida, ó país, que parece comprida! A Santa Paciência, país, a tua padroeira, já perde a paciência à nossa cabeceira. País pobrete e nada alegrete, baú fechado com um aloquete, que entre dois sudários não contém senão a triste maçã do coração. Que Santa Sulipanta nos conforte na má vida, país, na boa morte! País das troncas e delongas ao telefone com mil cavilhas para cada nome. De ramona, país, que de viagens tens, tão contrafeito... Embezerra, país, que bem mereces, prepara, no mutismo, teus efes e teus erres. Desaninhada a perdiz, não a discutas, país! Espirra-lhe a morte pra cima com os dois canos do nariz! Um país maluco de andorinhas tesourando as nossas cabecinhas de enfermiços meninos, roda-viva em que entrássemos de corpo e alegria! Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro. Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar, já o passo a meu filho, cansado de o olhar... No sumapau seboso da terceira, contigo viajei, ó país por lavar, aturei-te o arroto, o pivete, a coceira, a conversa pancrácia e o jeito alvar. Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha; entornado de sono, resvalaste para mim. Mas também me ofereceste a cordial botelha, empinada que foi, tal e qual clarim!»