Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O “Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa” de Aldónio Gomes (de saudosa memória) e Fernanda Cavacas constitui um documento fundamental para a compreensão da diversidade da Língua Portuguesa.
O CASO DE ALFREDO MARGARIDO
Se nos ativermos ao «Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa» do mestre Aldónio Gomes (nome que não pode ser esquecido, e cuja obra continua a exigir a maior atenção) com Fernanda Cavacas, Alfredo Margarido usou na sua extensa e profusa obra, além do seu próprio nome, pseudónimos como Lúcio Câmara, Manuel Kandiba e Paulo Saraiva, sendo inicialmente técnico agrícola e jornalista, e depois licenciado e doutorado em França. Expulso de Angola por motivos políticos, viveu muitos anos em Paris, tendo sido investigador, pensador, poeta, romancista, ensaísta e crítico literário. «É reconhecido como um dos históricos dos estudos literários africanos com Mário de Andrade e Manuel Ferreira». E como não lembrar Manuela Margarido, sua primeira mulher, figura essencial nas lusofonias africanas, que conheci pessoalmente na UNESCO, e que teve uma presença forte na ligação à cultura africana de Alfredo Margarido?
Eugénio Lisboa bem o definiu: «Era, como os melhores, um monte de contradições: um rezingão inteligente que disfarçava os seus afetos, um cultor da palavra acerada e perscrutadora que escondia, com pudor e alguma malícia, o seu talento de artista plástico, um erudito sólido que fazia, com desenvoltura, poesia e romance, um provocador profissional que amava o convívio e sabia cultivar as amizades, um professor que gostava de desarrumar a sabedoria estabelecida e convidava à irreverência fundamentada, em suma, um cavalheiro de opinião diferente, sempre preparado para nos contradizer, com um sorriso malicioso e uma voz mansa que amaciava o tumulto». Dificilmente se poderia dizer melhor. Estávamos diante de uma inquietude iluminante, de quem tudo lia e por tudo se interessava. A sua obra que tem contado com a extraordinária apresentação de Isabel Castro Henriques, ilustra bem essa faceta de conhecimento e desassossego. Trata-se de um repositório tocante e exaustivo, onde podemos acompanhar um percurso extraordinário de quem foi «um dos pensadores mais lúcidos da nossa realidade» (Perfecto Cuadrado).
UM LONGO DESASSOSSEGO
Falei longamente com o meu querido amigo Eduardo Lourenço sobre Margarido. Era sempre um fascínio ter esta companhia, depois de termos andado às voltas com o papel dos mitos na interpretação da História. Com uma atenção especial a todos os pormenores, foi exprimindo uma sincera admiração pela capacidade de compreensão e de argúcia de Alfredo Margarido, sempre comparando a evolução dos textos e da reflexão com a belíssima obra gráfica. Há uma rara sensibilidade manifestada nos desenhos expostos, o surrealismo é assumido com doçura e ironia, o colorido suave ilustra uma espécie de representação onírica da literatura – o que entusiasma Eduardo: aqui, os vários heterónimos pessoanos num turbilhão ou num caracol de cabeças; acolá Caeiro pastor de rebanhos, mais adiante Feernando Pessoa passeando sobre os telhados ou segurando um balão… Luciana Stegagno Picchio fala de «uma notável técnica de aguarelista», que aproveita «a lição surrealista, modalidade portuguesa de uma geração ilustrada por Alexandre O’Neill ou um Mário Cesariny».
Entre a descoberta dos textos, das referências, das pequenas e grandes audácias, os desenhos entusiasmam o visitante. Eduardo Lourenço recorda o primeiro contacto, no já distante ano de 1953, através de «Poemas com Rosas». Depois lembra o surrealismo em Luanda, com Cruzeiro Seixas («o Margarido era muito sociável e eu preferia o sol e o mar, encontrar um estranho búzio, as noites e a gente jovem»). Perfecto Cuadrado fala da singularidade da expressão artística de Alfredo Margarido. «Lúcido, crítico e livre, poeta no olhar, no pensar e no dizer uma realidade que continua a precisar de uma profunda reabilitação desde os territórios concêntricos e sucessivos do moral, do ético, do político e do estético». E convém lembrar Teixeira de Pascoaes, que tanto entusiasmou o jovem A. Margarido - «a luz é cada vez mais luz». Eduardo Lourenço recorda a importância e o prestígio dos textos no «Diogène» (como «Incidences socio-economiques sur la poèsia noire d’expression portugaise» de 1962) - e vem à baila Marc Ferro a dizer: «Il avait la sagacité de Fernand Braudel, l’inventivité d’Eric Hobsbawm, la curiosité multiforme de Roland Barthes». Lá estão os «Cadernos de Circunstância», com Manuel Villaverde Cabral e Fernando Medeiros.
Os textos têm uma rara pertinência, e ao vê-los em conjunto, percebemos que o autor se manteve sempre atento aos novos fenómenos, sabendo que o desenvolvimento moderno precisa de autonomia e diálogo, de singularidade e reciprocidade. E Eduardo Lourenço aponta-me uma frase, que obriga a um sério repensar. Sinto que se coloca abertamente ao lado de Margarido: «A nossa modernidade, criada pelas independências africanas, obrigou o país a cortar uma parte substancial dos seus laços com o Atlântico, que foi sempre o Oceano das nossas grandes incursões, mesmo se o Índico não pode ser afastado desta reflexão (…). A invenção da lusofonia procura com algum desespero devolver-nos uma parte desse espaço (…). A maior parte dos missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português». Este é um tema fulcral. E. Lourenço sente que ali estão as suas preocupações fundamentais: «A língua nasceu em Portugal e pertence aos portugueses. Não se consegue aceitar o princípio simples de que a língua pertence àqueles que a falam! Aceitemos a leitura crítica do passado, o que será sempre ocasião para impedir que alguns dos nossos melhores vícios se transformem em virtudes». É esse aguilhão da crítica que tem de funcionar, para tirar as lições dos erros e para fazer dos mitos motivo de compreensão.
XLV - Do Neocolonialismo e Imperialismo Linguístico Alfredo Margarido, A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses Apreciação e Crítica (II)
Recapitulando, no essencial e na opinião de Alfredo Margarido, extinto o império, Portugal transferiu para a língua, que tem como sua, um sentimento imperial, reforçado pela lusofonia, tratando-se então de defender que a língua portuguesa tem de ser preservada a todo o custo, porque é essa a sua essência.
Salvo o devido respeito, trata-se de uma visão maniqueísta em que os portugueses são sempre os maus da fita.
Não se vê o porquê em falar-se em “língua do colonizador”, “língua imperial” ou “força imperial”, uma vez já não existir o pretenso colonizador, tendo-se perdido a guerra e o império, com a subsequente descolonização e expulsão; mas também por a língua pertencer a quem a fala, pelo que a língua portuguesa pertence, em primeiro lugar, a todos os seus falantes em igualdade de partilha e uso, à semelhança do que defende o ensaísta, e com quem, a este propósito, concordamos.
Nem se antevê que Portugal tenha atualmente potencial suficiente para se impor como “força imperial”, mesmo através da língua, apesar de ser a língua portuguesa (ou será tão só por “portuguesa” se tratar?). Se são tantos aqueles, incluindo africanos, que aceitam que Portugal não arquitetou nenhum plano nem delineou qualquer estratégia do tipo neocolonial para continuar nas ex-colónias, facilmente se conclui que a lusofonia, nesta perspetiva, não é estratégia de neocolonialismo.
Alfredo Margarido esquece o óbvio: que a lusofonia será, de momento, aquilo que o Brasil entender que deve ser. O resto será encenação e retórica.
Por que não falar do Brasil, no pressuposto de que o presente e o futuro da lusofonia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) será, no essencial, aquilo que quiser e vier a ser esse país, com caraterísticas continentais e de potência emergente? Será que pelo facto de já ter sido colónia se lhe não pode aplicar tal raciocínio?
Nem a outras ex-colónias que venham a ter potencialidades para se afirmarem e concorrerem com a ex-metrópole, como Angola?
Tanto mais que existe uma ex-colónia inglesa que se impôs à ex-potência colonizadora, os Estados Unidos, com a agravante de que a debilidade portuguesa, por confronto com a hegemonia francesa e inglesa, pode abrir relacionamentos pós-coloniais mais democráticos.
E agora, quem coloniza quem? Os antigos impérios coloniais europeus, tidos por muitos, no presente, como neocolonialistas, ou algumas das ex-colónias, umas já emergentes e outras em ascensão?
Em especial no que toca aos países africanos, foram eles que viram no português um instrumento de emancipação, progresso, de identidade e unidade, adequação aos tempos atuais e novas tecnologias, e não uma forma de exclusão. A sua adoção foi um ato de soberania desses países e de Timor-Leste.
Sugestivo é o exemplo angolano, onde após a independência o português era uma segunda língua para a maioria populacional, materna para parte significativa da população urbana, dando-se prioridade às línguas nacionais como reivindicação de afirmação identitária, falhando o objetivo de introdução dos idiomas nativos no ensino.
Reconhecendo a realidade, um estudo do escritor Pepetela defendeu, em 1985, a tese da nacionalização da língua portuguesa, reclamando uma evolução autónoma em relação ao português de Portugal. Tal tese, inicialmente polémica, uma vez a fala do colonizador não poder ter a mesma dignidade e estatuto dos idiomas nacionais, foi torneada via eufemismo da “língua veicular”. De idioma nacional e materno para parte dos angolanos, a idioma de comunicação entre todos os habitantes é, na atualidade, língua oficial do Estado e de ensino, por opção dos angolanos.
Amílcar Cabral, referindo-se aos colonialistas portugueses, reconheceu que a língua portuguesa foi uma das coisas boas que os tugas deixaram em África.
Nem o tráfico negreiro foi de exclusiva responsabilidade portuguesa, sendo conhecido e praticado pelos próprios africanos aquando da chegada dos europeus, por muito politicamente incorreto que seja lembrá-lo.
E se tudo aponta para tentativas neocolonialistas, também é verdade que há quem contra-argumente, por mera defensiva, que os países lusófonos e da CPLP mais pobres só se interessam por tais realidades na medida em que as instrumentalizem em seu benefício.
É urgente superar complexos e desconfianças de que tudo o que vem do ex-colonizador é mau.
Também à custa de se querer não ser paternalista (ou neocolonialista), acabam por não se desenvolver projetos interessantes, caindo-se na retórica do vazio.
Além de que a crítica da suposta superioridade do português europeu, esquece que o futuro da futura globalização do nosso idioma será protagonizada de fora da Europa, no essencial a partir do Brasil e de África.
Num certo sentido, o fim do colonialismo transformou os antigos colonizadores em territórios “colonizados” pelas antigas possessões, sendo estas uma certa continuidade daqueles e algumas delas as novas potências do futuro.
Perspetivar a lusofonia apenas em termos redutores de neocolonialismo do ex-colonizador, ou de ideologias radicais, revela ausência de pragmatismo, desprezando um factor de imagem de união internacional, em favor de interesses de terceiros, também baseados num mesmo conceito linguístico-estratégico (como a anglofonia, francofonia, espanofonia, germanofonia).
XLIV - Do Neocolonialismo e Imperialismo Linguístico Alfredo Margarido, A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses Apreciação e Crítica (I)
Para Alfredo Margarido, no opúsculo “A Lusofonia e os Lusófonos: NovosMitos Portugueses”[1], o discurso lusófono procura recuperar uma parte da antiga hegemonia imperial portuguesa, pretendendo manter o colonialismo, atento o modo como o colonizado é incitado a alienar a sua autonomia para servir os interesses portugueses.
Após afirmar que parte significativa dos teóricos da portugalidade têm o idioma como o agente mais eficaz da unidade entre as pessoas e os territórios que ficaram marcados pela presença portuguesa, escreve:
“(…) os portugueses foram obrigados a renunciar à dominação política e económica, mas procuraram assegurar o controle da língua. O drama herói cómico provocado pelo acordo ortográfico luso-afro-brasileiro, deriva dessa inquietação: se a língua não for capaz de assegurar a perenidade da dominação colonial, os portugueses ficarão mais pequenos. A exacerbação da “lusofonia” assenta nesse estrume teórico, que, espera-se, virá a ser revisto, para considerar a importância da vontade do Outro” (ibidem, p. 57).
É a reedição de um comportamento colonial, a redescoberta da língua portuguesa como uma “força imperial”, que se impõe como língua homo-hegemónica, em que a lusofonia atua em nome da uniformidade, fixando a norma e anulando os dialetos, preparando o neocolonialismo, neste caso o português, dado que “A língua nasceu em Portugal e pertence aos portugueses. Não se consegue aceitar o princípio simples de que a língua pertence àqueles que a falam!” (ib., pp. 6, 7).
Rejeitando a auto-complacência ou os paternalismos, formas de colonialismos, apela a uma leitura crítica do passado, desde logo no que toca ao delírio das “descobertas”, como se o Outro só existisse por obra nossa, com a agravante de que ninguém pediu perdão aos africanos pela nossa participação no tráfico negreiro.
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é tida como uma comunidade utópica, “(…) como se bastasse a magia do enunciado para fazer dos colonialistas de ontem os arautos da igualdade racial de hoje” (ib., p. 25), tanto mais que a comunidade portuguesa aceita mal o modo como os antigos dominados, os “Outros”, rejeitam a violência da dominação.
Eis a razão desta obra: proceder ao inventário das feridas e das cicatrizes, sem “(…) ignorar que este inventário de torpezas nacionais me preocupa há já vários anos, e mais particularmente a partir do momento em que, nas antigas colónias, pude ver em ação a nossa especial maneira de “civilizar” (ib., p. 8).
Não se trata de um discurso lusófono eufórico, efusivo, nem de uma comovente e emocionante retórica, nem tinha que o ser.
Sem ser entusiasta, nem moderado, opta por um discurso cético e descrente.
Porque os portugueses não podem já ter devaneios ou quimeras imperiais, transferem para a língua essas veleidades e sentimentos.
Tido como um dos estudos críticos mais contundentes e emblemáticos sobre a lusofonia, não nos parece suficientemente convincente, como tentaremos fazê-lo sobressair em próximo texto.
26.02.2019 Joaquim Miguel de Morgado Patrício
[1] Alfredo Margarido, A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses, Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 1.ª edição, Maio 2000.
“As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos” de Alfredo Margarido (Elo, 1994) constitui uma excelente oportunidade para compreendermos como os portugueses fizeram mudar os hábitos do mundo, alimentares e outros, mercê das viagens para outros continentes.
A CIRCULAÇÃO DE CONHECIMENTOS E HÁBITOS Se o pequeno livro de Alfredo Margarido contém um conjunto notável de informações sobre os movimentos de influência mútua entre culturas gerados pela primeira globalização, a verdade é que podemos descobrir aí as origens de hábitos alimentares que os nossos antepassados antes do período dos descobrimentos não poderiam sequer suspeitar ou sonhar. E à obra que hoje trazemos, devemos associar outro precioso pequeno volume acabado de sair, graças à Biblioteca Nacional de Portugal, o guia da exposição a propósito dos 450 anos da publicação do “Colóquio dos Simples, e Drogas he cousas medicinais da Índia” de Garcia de Orta (2013) da autoria de João José Alves Dias – “Antes de Lineu – O Mundo das Plantas nas Coleções de Impressos da BNP” (Lisboa, 2017). Aí se afirma que pode dizer-se que no mundo científico assim como há um momento crucial representado pela obra de Carlos Lineu (1707-1778), o mesmo se pode dizer do português Garcia de Orta (1501-1568) – pelo caracter inovador da sua investigação e pelo pioneirismo do seu método. Começando pela ilustração que apresentamos, importa explicar que o quadro da autoria de Josefa de Óbidos mostra a extraordinária banalização do açúcar na vida portuguesa, durante o século XVII, que precede a grande voga europeia dos séculos seguintes, por contraste com o que ocorria anteriormente – o mel mais raro dá lugar ao açúcar, como o Infante antecipara no Algarve. Pode dizer-se, aliás, que o açúcar constitui uma das marcas do barroco português e brasileiro – lembrando-nos bem do poema ao “Menino Deus em metáfora de doce”… Perante mudanças profundas ditadas pela primeira globalização, João de Barros falou do comércio como uma ciência, afirmando-se o Renascimento sob o influxo da expansão, com “novas experiências e conhecimentos, novas formas e novos gostos”. “A paisagem modifica-se substancialmente devido à introdução de novas plantas, sobretudo americanas, tal como se alteram os jardins que mandados construir por «novos-ricos», cuja fortuna provinha do novo comércio internacional, rompiam com a velha ordem botânica da Idade Média”. De facto, “a modernidade começou a elaborar-se no momento em que os homens decidiram modificar a natureza em função dos seus interesses, alargados estes à escala intercontinental. Ou seja, a ecologia-mundo é a consequência direta e inelutável da nova leitura do mundo a que procedem os europeus: o conhecimento permite reforçar e alargar o económico, o que implica a construção de novas formas de relações humanas. (…) A ecologia-mundo permite a estruturação da economia-mundo, do que não pode deixar de resultar um homem novo, potencial cidadão do mundo” – afirma Alfredo Margarido. “Organizar e banalizar o conhecimento, eis a tarefa principal dos portugueses. Não há hoje paisagem que não conserve um traço, mesmo mínimo, das alterações introduzidas pela atividade portuguesa”.
UM PERCURSO APAIXONANTE O percurso desde as plantas medievais até às plantas da modernidade é apaixonante. Em Porto Santo, os portugueses encontram o dragoeiro. Luigi de Ca da Mosto, em Cabo Verde, fala do encontro do trigo e da cevada com “o sangue de drago, que nasce em algumas árvores (…). A dita árvore produz certo fruto que está maduro no mês de Março, e é muito bom para comer; assemelha-se às cerejas, mas é amarelo”. Gil Eanes, depois de passar o Bojador, traz ao Infante D. Henrique, demonstrando que a terra não é tão estéril como as gentes diziam, um barril cheio de terra com umas ervas que se pareciam com outras a que chamam rosas de Santa Maria… Na Madeira, Cabo Verde e S. Tomé inicia-se a produção industrial da cana-de-açúcar, o que determina uma verdadeira revolução. Apesar da destruição de muitas espécies autóctones madeirenses, a Laurissilva consegue ser mantida… A descoberta da malagueta constitui uma extraordinária surpresa (“no gosto é tão forte que uma onça faz o efeito de meia libra de pimenta comum”). Afinal, em África havia especiarias cuja qualidade ombreava com o comércio da Índia… Os exemplos das boas surpresas multiplicam-se: as bananas são comparadas aos figos, a cola é muito estimada como boa mercadoria (mas não entusiasma os europeus), o azeite e o vinho de palma surpreendem pela multiplicidade de usos oferecidos pelos produtos da palmeira dendém… “Lisboa parece ser das primeiras cidades a receber e a adotar uma parte substancial das plantas que marinheiros, cientistas ou comerciantes vão encontrando pelo caminho”. Mas é a chegada ao Oriente que introduz novos e muito significativos fatores, apesar da desconfiança expressa por Gil Vicente, Sá de Miranda ou Garcia de Resende sobre o “cheiro a canela” que levaria o reino a despovoar-se… A transferência das plantas orientais para África, Reino e Brasil irá produzir a verdadeira alteração, que caracterizará a nova economia-mundo. E neste ponto a perspetiva científica é a de Garcia de Orta. Das explicações fantasiosas passa-se às análises rigorosas, no terreno, com conhecimento de causa. Em lugar da mitificação de Heródoto e contra mil fingimentos adotados pelos tradicionais intermediários, para aumentar o preço da mercadoria, havia que usar o rigor do conhecimento. “A lenta, mas constante eliminação dos mitos e das imprecisões, permitiu aos portugueses concluir que a canela fina, verdadeira, só se produz em Ceilão”. O novo método de Garcia de Orta exigia ver, desenhar e conhecer as plantas – no que o médico será seguido por Cristóvão da Costa, ilustrador exímio. Em lugar de analogias fantasiosas, importaria reproduzir exatamente as realidades até então desconhecidas pelos europeus. Os exemplos são curiosos e as plantas não servem para unir, mas para dissociar culturas: as folhas de betel serviam para mascar (mas não caíram no gosto dos portugueses); o coco ganhará fama por dar muitas cousas necessárias à vida humana, sendo assim batizado porque parecia o rosto do bugio ou de outro animal e fazia medo às crianças; a noz moscada e o cravinho – que se cultivavam nas cinco ilhas de Maluquo (Pachel, Moreu, Machiam, Tidore e Ternate) tinham grande procura - “aqui vem cada ano muitas naus de Malaca e de Java carregar”.
A ECONOMIA LIGADA À CIÊNCIA “Dada a maneira como se organizou a informação portuguesa, encontramos constantemente em Garcia de Orta o contraponto científico de Duarte Barbosa: o médico retoma os materiais do marinheiro, e é por isso forçado a confirmar as informações recolhidas por Barbosa”. A bananeira continua a ser designada no vulgo como figueira-da-Índia, mas Orta já fala de banana e indica-lhe finalidades culinárias e terapêuticas. Sobre o sagu, há resistências europeias, a ponto do Padre Francisco Vieira, preso em Ternate, recusar durante trinta dias o sagu que lhe apresentam por ser comida de negro, preferindo pão e vinho. São ainda referidas as mangas (que Orta cultivava), os duriões, as líxias, as jacas e as carambolas… Sobre o chá (tendo os portugueses adotado a pronúncia de Cantão, enquanto outros europeus deram preferência ao vocábulo malaio t’e) fica um mistério, pois não encontramos descrição da planta, mas sim da bebida. Só Wenceslau de Morais, já próximo de nós, se ocupará em pormenor da planta e do ritual. E resta a América, que surpreendeu Colombo por este desconhecer tudo o que encontrava. Não podia antecipar a riqueza que o novo continente albergava. Álvares Cabral e os seus apenas identificam as palmeiras. Pero Magalhães Gândavo diz-nos: “O que lá se come em lugar de pão é farinha de pau. Esta se faz da raiz d’uma planta que se chama mandioca, a qual é como inhame…”. A mandioca, a banana-pão, a batata doce, o amendoim, o caju, grande variedade de feijões, o milho, e uma grande riqueza de frutos, como o ananás. É um mundo inesgotável. A melhor planta que corresponde ao chá do Oriente, é, na América do Sul, o tabaco. E foi de Lisboa que o embaixador Jean Nicot levou a planta do tabaco para Paris, celebrizando-a… É notável como plantas vindas de outros lugares se tornam mais férteis em novas situações… Inesgotável viagem, quando o diálogo entre a cultura e a natureza se torna tão fecundo.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença