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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CONHECER O ALGARVE


Por muito que o Algarve seja referido e visitado, o certo é que é das regiões portuguesas menos conhecidas, na sua riqueza e diversidade. Já em 1891, Gabriel de Saint-Victor afirmava que se o Algarve era quase desconhecido dos portugueses, seria, porventura, a mais interessante das nossas regiões… Quando recentemente se abriram ao público os Banhos islâmicos de Loulé, junto da Casa Senhorial dos Barretos, houve surpresa e deslumbramento, uma vez que foi possível revelar que o património cultural não se limita às pedras mortas de uma construção física, prolongando-se no rico conceito de realidade viva, abrangendo a memória imaterial dos costumes e tradições, a valorização da natureza e do ambiente, a inovação científica e tecnológica e a criação contemporânea no respeito da Convenção do Conselho da Europa, assinada em Faro em outubro de 2005.


Quando a comunidade científica debate um conceito aberto e dinâmico de património cultural, não numa lógica conservacionista e redutora, mas como algo que enriquece a arte e a cultura, o desenvolvimento humano e a sustentabilidade, falo do tema a propósito de uma obra de elevado valor científico A Construção do Algarve – Arquitetura Moderna, Regionalismo e Identidade no Sul de Portugal, 1925-1965 (Dafne Editora, 2023) do arquiteto e historiador Ricardo Costa Agarez, baseada na dissertação de doutoramento defendida em Inglaterra, publicada pela Routledge (2016). É um belo livro que merece leitura atenta, já que articula os conceitos de modernismo, regionalismo e “vernáculo”, abordando os fatores que confluem no sentido da construção da identidade regional. De facto, a maturação de uma linha própria na arquitetura contemporânea corresponde, no caso algarvio, a uma tensão e a um confronto, muitas vezes intenso, que permite integrar a criação cultural num movimento relevante. E assim podemos compreender como o Algarve necessita de melhor conhecimento da diversidade que o constitui. Se a realidade algarvia é pouco conhecida, a verdade é que há um potencial cultural e natural que tem de ser divulgado e enriquecido.


Em 1855 John Mason Neale, num roteiro para viajantes em Portugal, falava do território algarvio como “o mais pequeno reino da Europa”, porque mantinha uma autonomia especial desde 1249, no culminar de cinco séculos de poder do califado Omíada, com um governo próprio entre 1595 e 1808, como tem insistido Carminda Cavaco… E Orlando Ribeiro salienta que “Nenhuma das nossas províncias mostra, como o Algarve, tal variedade na cobertura das casas. Predomina, como em toda a parte, o telhado de duas águas (…) mas no litoral oeste e na serra domina o telhado de uma só água”. E esta variedade de formas, incluía a açoteia e as chaminés em estilo mourisco, elegantes e graciosas como minaretes. E Leite de Vasconcelos referia o testemunho de um popular sobre o facto de a açoteia provir de Marrocos. “Toma-se lá o sol, às vezes com toldos; sobe-se também aí para ver o mar. Servem para enxugar roupa, secar figos e pôr vasos de flores”. E assim, tais práticas construtivas e a arquitetura foram marcadas pela necessidade de haver um compromisso com a identidade regional, querendo esta sobreviver e florescer. 


GOM

SUL, SOL, SAL – UMA CASA DO MEIO DIA


Falo-vos de uma Editora algarvia, de Loulé!

A última conversa com o meu amigo Manuel Brito, há cerca de uma semana, terminou com a combinação de que avançaríamos nos vários projetos em carteira. Estava um pouco cansado fisicamente, mas não lhe faltava o entusiasmo de sempre. Com votos de melhoras, encontrar-nos-íamos dentro de dias para acertar os pormenores. Por isso, não me perdoaria se hoje fizesse aqui um obituário. O que importaria sempre mais seria o futuro e os novos projetos. Nos vários domínios em que se empenhou ao longo da vida, era um exemplo de competência, de rigor e de solidariedade. Nos últimos anos, tivemos um contacto permanente, na sua função de auditor financeiro. Nunca falhava e estava sempre disponível para as mais complexas tarefas ou para os mais diversos pormenores. Como algarvio dos quatro costados, além da sua principal ação profissional, lançou-se nos últimos anos em dois projetos que o apaixonavam. A editora “Sul, Sol, Sal” e a “Casa do Meio Dia” depressa ganharam a ribalta no campo da criação e das artes e da defesa do património cultural. E insistia em dizer: “o nosso objetivo é editar obras que valorizem a cultura e o património algarvio e façam com que a visão exterior do Algarve saia reforçada e deixe de ser tão negativa… Os projetos que tenho (dizia) não obedecem a critérios financeiros de rentabilidade, vivo do que já trabalhei e com o conforto que considero adequado. O que eu procuro são projetos que sirvam e valorizem o Algarve”. O mesmo entusiasmo tinha com a empresa de embarcações movidas a energia solar, a “Sun Concept”, em cujo desenvolvimento colocava a maior esperança. Mas, como sonhador realista, dizia-me que a “Sul, Sol e Sal” é um “embrião cultural improvável para o Algarve”. E era sua intenção editar obras em várias áreas, em especial nos domínios da história e do património, mas também do urbanismo, da agricultura biológica e da ecologia. Escolheu uma designação quase mágica e como símbolo a maravilhosa canoa da Picada, embarcação veleira de tradição mediterrânica, utilizada até finais do século XIX que, devido à sua rapidez e facilidade de manobra, transportava o peixe vindo do alto mar para chegar às cidades.  A metáfora da pesca milagrosa adaptava-se plenamente à difusão do livro e da leitura. Aliás, logo no início, o saudoso professor Joaquim Romero Magalhães propôs uma “Algarviana Breve”, lembrando Mário Lyster Franco, e projetou a publicação da “Crónica da Conquista do Algarve”, nunca editada, ou dos textos de Raul Proença no “Guia de Portugal”. Essa a linha estratégica de um projeto pleno de virtualidades que envolverá a cooperação da Universidade do Algarve e dos melhores especialistas. Não por acaso, a tónica em que Manuel Brito insistia era que a editora “é um projeto que não procura o lucro, mas tem de ser sustentável”. E o Algarve bem precisa da valorização do que tem de mais rico – as raízes, a economia, a natureza e o desenvolvimento humano. As obras editadas, como “Olhão fez-se a si próprio” do também saudoso António Rosa Mendes, ou “A Pesca no Algarve Medieval” de José Marcelino Castanheira e o texto fundamental de Joaquim Romero Magalhães “O Algarve Económico durante o século XVI” constituem bons exemplos da defesa do património cultural como realidade viva, não numa lógica retrospetiva, mas sempre como conceito em movimento. Por tudo isso, refiro o exemplo de alguém que nos deixa como legado um desafio de responsabilidade, ligando a memória das raízes antigas, o diálogo entre culturas e a necessidade de encarar o desenvolvimento humano como uma ligação permanente entre o conhecimento, a compreensão, a ciência, a educação, as artes e a cultura. Tenho no ouvido a nossa última despedida “até ao nosso próximo encontro”. É duro dizê-lo, mas vamos continuar!


GOM 

UMA COPEJADA DE ATUM

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Manuel Teixeira Gomes escreveu em 1927, na “Seara Nova” um texto memorável sobre o copejo do Atum, de que hoje damos conta.

“Ainda a madrugada não dava sinais de romper, já nos encontrávamos no bote que nos devia levar à armação (…). A companhia, como viera duas horas antes, acabava os últimos preparativos para a pesca, ensebando os cabos, experimentando as roldanas e reforçando as pulseiras dos arpões. À volta da armação aglomerava-se grande número de lanchas de carga, vindas durante a noite, dos portos vizinhos, onde o telégrafo levara aviso da grande copejada em perspetiva. Essas lanchas, pela ordem da sua chegada, destinavam-se a carregar peixe que se pescasse, para conduzir à lota de Vila Real de Santo António, o grande mercado do atum. Mas no enorme agrupamento de gente, batéis e lanchas, de que se distinguiam já claramente as formas e os movimentos, o que surpreendia era o silêncio, inesperado e sempre admirável na gente do mar, e sobretudo em algarvios de tão falaruca fama”. Depois do romper do sol, concentrados entre si, os homens “começavam a levantar o céu da armação” de modo a confinar os atuns no copo. Daí a pouco, avistados os primeiros atuns de bom calibre, os pescadores davam-se a uma tremenda gritaria e começava a “tourada”. Até alguns poucos marujos, numa cena helénica, cavalgavam alguns peixes, condenados à rendição, espetados por ganchorras e bicheiros.

Esta faina tremenda e cruel durou centenas de anos, com ganhos vultosos para os armadores. E nos séculos XIV e XV as velhas almadravas (antecedentes das armações) foram reforçadas com as reses de cerco também empregues na pesca da sardinha. E deste modo o Algarve tornou-se o grande centro da pesca do atum da Europa do sul. Note-se que as pescarias da costa algarvia foram doadas em concessão ao Infante D. Henrique, sendo as pescarias reais designadas como caçadas. Depois foram-se multiplicando as almadravas, tendo D. Manuel criado em Lagos uma Feitoria específica para essas armações. E o feitor encarregava-se de fiscalizar a coleta dos direitos régios, relacionadas com pescaria do atum, para verificar a venda do pescado que pertencia à Coroa. E Lagos tornou-se capital do atum, principal exportador do atum em salmoura para o Mediterrâneo. Foi o século XVI o de maior prosperidade nas pescarias, sucedendo-lhe no final da centúria uma fase de declínio e estagnação, soçobrando as armações. Perante essa evolução, Sebastião José, futuro marquês de Pombal, criou a Companhia Geral das Reais Pescas do Reino do Algarve para reanimar a pesca do atum, mas também da sardinha, estando ambas relacionadas por o peixe mais miúdo vir para a costa ameaçado pela voracidade do atum.

Lagos, Tavira, Faro e Fuseta foram as armações que melhor se mantiveram. Depois da revolução liberal deu-se a desamortização do mar, aboliram-se os direitos senhoriais e liberalizou-se a atividade piscatória, mas ficou um tratamento especial, criando-se a Companhia das Pescarias do Algarve, em lugar da sociedade majestática pombalina. Até aos dias de hoje houve profundas alterações na pesca e acompanhamento dos atuneiros.

Os conhecimentos científicos e técnicos, as investigações dos movimentos das espécies e das correntes tem permitido uma maior qualidade do atum para alimento, mas fica o eco da tradição e a reminiscência desta cultura atlântica e mediterrânica, hoje globalizada.

GOM

 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 12 a 28 de agosto de 2022

 

Torga, discípulo de Cervantes e de Unamuno, definiu Portugal como um ponto de encontro entre a vontade, o mar e a insatisfação. A leitura da sua obra permite entendermo-nos nas nossas contradições e nos nossos anseios.

 

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CADINHO DE VÁRIAS INFLUÊNCIAS

Portugal é um país difícil de entender. O cadinho de várias influências apresenta-nos elementos contraditórios. Mas há fatores que são permanentes e definem uma identidade que começa no querer, continua na omnipresença do mar e pressupõe uma luta constante. Lembremo-nos da saga dos poveiros, com o negro do luto das viúvas e dos órfãos nas praias atlânticas ou do combate contra a adversidade do meio em Trás-os-Montes, no Douro ou no Alentejo. Eduardo Lourenço e José Mattoso lembram que “uma das descobertas mais simples e irrecusáveis do após 25 de Abril é que Portugal é um país como os outros. Sem missão providencial, sem Quinto Império, sem realizações espetaculares, sem lugar especial no mundo, apesar dos Descobrimentos”. Isto significa, porém, que dependemos da nossa responsabilidade, do nosso querer e do saber pensar e fazer. Assim chegámos aqui. Precisamos uns dos outros. E temos de saber planear o futuro, partindo do presente, e avaliar os resultados que somos capazes de obter. Sempre que preparámos o futuro, ganhámos. Ao Deus dará perdemos e agravámos o nosso atraso, que não é uma fatalidade. O mérito não é um mito, só funciona quando resulta do reconhecimento das diferenças e da dignidade de cada um. Miguel Torga foi tantas vezes duro na sua apreciação de quem somos. Sabia do que falava e que nada se consegue de ânimo leve ou de ilusão. O desencanto assalta-nos tantas vezes, e o lirismo poético é apimentado com o picaresco e o maldizer.

 

O MUNDO CONTRADITÓRIO

Desejamos coisas contraditórias. E assim, se temos vícios devemos combatê-los, em vez de cultivar utopias enganadoras e esperanças vãs. Considerando-nos ou os melhores ou os piores, não nos safamos. Relendo o “Portugal” de Miguel Torga, surpreendemo-nos quando nos fala do Algarve, onde o conheci e cuja memória guardo num lugar especial. Disse ele, depois de nos descrever quem somos e onde estamos, sem ilusões: «O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. As coisas de Trás-os-Montes tocam-me muito no cerne para eu poder esquecer a solidariedade que devo a quem sofre e a quem sua. E isto repete-se com maior ou menor força no resto de Portugal. Mas, passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril». Não, não há contradição nesta bela página, que temos de ler em estreita ligação a tudo o resto. O que Torga nos diz, é exatamente que temos de ser quem somos. E no caso algarvio, compreender que não é de sol e praia que se trata, mas de entender a cultura como capacidade de construir e usufruir, de amar a liberdade e de ligá-la à entreajuda, à compreensão da diversidade das raízes e ao desenvolvimento humano. E José Mattoso definiu o ponto que permite entender a paradoxal visão de Torga: «o fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos ‘justos’ que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem, e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela ‘justiça’».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 23 a 29 de agosto de 2021

 

“O Homem que só Queria ser Tóssan” foi editado por João Paulo Cotrim (“Arranha Céus”, 2021). São três volumes um sobre a obra gráfica e dois sobre a produção escrita – “Lógica zoológica. Frutos e desfrutos. Animalia. Contos e Descontos” e “Versos côncavos e com versos”.

 

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O FARO DE UM CÃO

«Se o faro de cão / está mesmo no cão / o cão tem faro. // Se o faro é do cão / o cão é de Faro / o faro é do cão. // Mas se fareja e cheira / é de Albufeira. // E se tem olho o cão / e ladra a ladrão / o cão é de Olhão. // Se curva e vira / é de Espinhaço de Cão / ou de Tavira / ou até de Portimão. // Mas se ferra o cão… / não é algarvio, não!». Em boa hora escolhi como leitura de um fim de semana algarvio bem passado “O Homem que só Queria ser Tóssan”, editado por João Paulo Cotrim, na “Arranha Céus”, com o apoio do Município de Loulé, que me foi oferecido pelo meu amigo Vítor Aleixo. São três volumes imperdíveis, um sobre a obra gráfica e dois sobre a produção escrita – “Lógica zoológica. Frutos e desfrutos. Animalia. Contos e Descontos” e “Versos côncavos e com versos”. Conheci Tóssan, António Fernando dos Santos, em Albufeira nos anos sessenta e sempre me deleitei com o traço fino e irónico dos seus desenhos e a personalidade das suas personagens. Nascido em Vila Real de Santo António, foi nos seus amigos de Coimbra, como António Almeida Santos (cujos contos de “Rã no Pântano” ilustrou), que encontrei inesquecíveis recordações. As caricaturas dos estudantes eram pagas a 30 escudos por unidade ou com latas de quilo de fiambre. E lembramos as caricaturas de José Régio, Teixeira de Pascoaes, Paulo Quintela, Lins do Rego, Alves Redol, Bertold Brecht… Tivemos uma referência comum, o Dr. Joaquim Magalhães, com quem discreteava, caminhando na rua de Santo António em Faro, quando ia entregar a crónica para o “Diário de Notícias”. A memória de António Aleixo e o humor de Tóssan eram temas de conversa – para além da invocação de Antero de Quental, de Eça e desse grupo heroico…  Foram o professor do Liceu de Faro e o relojoeiro de Loulé José Rosa Madeira os primeiros a darem atenção ao poeta popular. O caso de António Aleixo impressionou desde cedo Tóssan. “O contacto diário com ‘o poeta-cauteleiro e antigo guardador de cabras’ (…) no Sanatório dos Covões, a partir de junho de 1943, colocou-o perante a descoberta impactante de uma literatura oral com laivos filosóficos e políticos que a todos surpreendia pela acutilância e alcance humanista”, diz Vasco Rosa. O “Auto do Curandeiro” resultou do encontro de Tóssan com Aleixo. É de Tóssan o mais célebre retrato de Aleixo, de 1943, que Manuel Viegas Guerreiro popularizou junto dos estudantes dos liceus.

 

UMA CORUJA DE CARICATURA

Houve um período em que teve uma função essencial nas relações culturais com o Brasil. O embaixador Alberto Costa e Silva não lhe poupa elogios sobre o tempo do Presidente JK: “Tóssan, grande e gordo, tinha cabelos abundantes e negros que formavam tufos nos lados, usava uns óculos enormes, que aumentavam a vivacidade do olhar e o faziam parecer uma coruja de caricatura”. No Palácio Foz deu vida após 1974 a um breviário da cultura democrática na editora “Terra Livre” e multiplicou ilustrações para as crianças e os jovens, colaborando, por exemplo, com Leonel Neves. Tóssan não se levava a sério: “gordão, bonacheirão, / satisfeito, rezingão. / Carregado de pecados, / viajado, / arreliado, / mal-disposto / malcriado…”.  O teatro apaixonou-o sempre, desde o Lethes e do TEUC. O desenho era o modo de pôr a gente em ação, daí o entusiasmo de crianças e adultos com as suas ilustrações. Mário Viegas levou à cena “Tótó” com um conjunto extraordinário de textos de Tóssan. Teatro e vida confundiam-se. “O teatro diminui a luz como quem desce as pálpebras aos poucos (…). Uma mala de senhora atirou-se de um camarote para a plateia. Todos se levantam. Todos se sentam. Todos comentam. Um tosse; tossem todos. (…). Mas mal abriu a cortina, o público ficou natureza-morta – apenas se ouvem os olhos dos espectadores a devorarem a cena…”.

  

ODE AO FUTEBOL

E o mais célebre dos poemas de Tóssan: “Retângulo verde, meio de sombra meio de sol / Vinte e dois em cuecas jogando futebol / Correndo, saltando, ziguezagueando / ao som dum apito / Um homem magrito, também em cuecas / E mais dois carecas com uma bandeira / De cá para lá, de lá para cá / Bola ao centro, bola fora. / Fora o árbitro! / E a multidão, lá do peão / Gritava, berrava, gesticulava / E a bola coitada, rolava no verde / Rolava no pé, de cabeça em cabeça / A bola não perde, um minuto sequer / Zumbindo no ar como um besoiro, / Toda redonda, toda bonita / Vestida de coiro. / O árbitro corre, o árbitro apita / O público grita / Gooooolllllooooo! / Bola nas redes / Laranjadas, pirolitos, / Asneiras, palavrões / Damas frenéticas, gordas esqueléticas / esganiçadas aos gritos. / Todos à uma, todos ao um / Ao árbitro roubam o apito / Entra a guarda, entra a polícia / Os cavalos a correr, os senhores a esconder / Uma cabeça aqui, um pé acolá / Ancas, coxas, pernas, pé, / Cabeças no chão, cabeças de cavalo, / Cavalos sem cabeça, com os pés no ar / Fez-se em montão multidão. / E uma dama excitada, que era casada / Com um marinheiro distraído, / No meio da bancada que estava à cunha, / Tirou-lhe um olho, com a própria unha! / À unha, à unha! / Ânimos ao alto! / E no fim, / perdeu-se o campeonato!”

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

A VIDA DOS LIVROS

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  De 2 a 8 de setembro de 2019

 

“Poesia 61” (Faro, 1961) não foi um cânone ou uma orientação, mas um encontro, em que houve uma procura de radicalidade por diversos caminhos.

 

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FARO, 1952
Há um poema de Gastão Cruz a que gosto sempre de regressar, uma vez que me recorda o Algarve que sempre conheci, de minha mãe e de meus avós, e de tantos amigos, muitos que já partiram. O título, “Faro, 1952”, tem a marca do ano em que nasci, mas lembra-me recordações de que ouvi falar ou que presenciei, ao longo dos tempos. Há um ano, quando homenageámos em Querença Gastão Cruz no FLIQ, essas palavras soaram com especial intensidade e brilho: “O café, do outro lado a livraria / essa a meta / da tarde / quando esfria a pele / sem que / frio fique o dia, / as linguagens regressam às cúpulas / de folhas / e os treze noturnos ainda nos esperam…”. Quantas lembranças? Quando percorro aquelas ruas de Faro, não só recordo a “Gente Singular” de Manuel Teixeira Gomes, mas também, há muitos, muitos anos, o meu avô a lembrar que ali encontrava, nos dias finais da sua vida, o poeta Cândido Guerreiro. E por isso este poema ainda ganha para mim maior sentido, já que é essa mesma memória que aqui se recorda. “… Percorremos a rua / até onde entra nela a aragem da ria / e o café dum lado, do / outro a livraria, / à porta o chapéu largo e a barba / branca / dum poeta do passado”… Assim se ilustra bem a afirmação de Gastão Cruz sobre ser “poeta do real”, singularíssimo, na boa companhia de outros poetas como Sophia, Sena, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Fernando Assis Pacheco, Luiza Neto Jorge… De facto, cada um imprime na realidade que nos cerca uma marca especial de crítica e de confronto. E assim podemos entender a importância de Luiza Neto Jorge disse ao “Diário de Lisboa”, em maio de 1961: “Parece-me que entre nós o surrealismo ainda terá razão de ser – como total destruição de cânones bafientos, como reação a um ambiente social rígido”. Sim, há rutura com um certo “discursivismo”, como afirmou Gastão. E se há prenúncios relativamente a essa atitude, temos de referir os casos de António Ramos Rosa, espécie de padrinho do grupo de 1961, em Faro, com “O tempo concreto” e “O boi da paciência” (em “O Grito Claro”) e do “Poema podendo servir de posfácio” de Mário Cesariny, que encerra “O discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”…

 

UM ANO ESPECIAL
1961 é um ano especial. Os acontecimentos nacionais sofrem uma aceleração em virtude da guerra de África. Nada será como dantes. É verdade que 1958 anunciou esse movimento uniformemente acelerado no sentido da criação da democracia – a candidatura de Humberto Delgado, sob o impulso de António Sérgio, a tomada de posição do Bispo do Porto, e o seu afastamento do país, mas também a publicação de “Mar Novo” de Sophia, como grito de alerta, perante a injusta e absurda desclassificação do projeto de João Andresen, Júlio Resende e Barata Feyo vencedor do concurso para homenagear o Infante D. Henrique em Sagres. E muitos ainda esquecem esse episódio fundamental. Lembro-me de ter sugerido a alguém que relesse o livro de Sophia de 1958, à luz desse impulso de uma genuína revolta. E tive a confirmação de que foi com surpresa que o meu interlocutor se apercebeu disso mesmo… Reuniram-se então os fatores que tornavam inexorável a liberdade. E era Sagres, e era o Algarve, e era a consciência da democracia que estava em causa. E era essa paisagem algarvia, sobretudo dominada pelo mar, que revelava a personalidade fantástica que domina o filme de João César Monteiro “Sophia de Mello Breyner Andresen” (1969). Frederico Lourenço tem razão quando afirma que é no Algarve que se inicia a Grécia de Sophia. Quando lemos “A Morte Percutiva” de Gastão Cruz, ou quando encontramos Fiama, Luísa Neto Jorge, Mara Teresa Horta e Casimiro de Brito, nos textos de 1961, compreendemos um movimento comum, marcado pela energia resultante “do embate entre o corpo que aspira à sua plenitude e um país cercado, onde todos os movimentos são vigiados ou proibidos”. Percebe-se bem uma visão pessimista, a consciência de uma doença de repressão e de guerra, ligada a uma circunstância pessoal de luto. Contudo, subjacente a esse embate, a esperança tornava-se uma coisa física, como “força dos corpos e do desejo”. E Gastão Cruz em “A Doença” precisa: “A este sítio há de o amor / ainda amor chegar / agora vamos ambos / pelos campos à espera duma dor de que viver”... Eis por que razão o curso do tempo foi revelando nessa atitude não uma escolástica, mas o reconhecimento da coexistência de caminhos múltiplos. “Uma revolta de palavras, apelando a um novo discurso” (na expressão de Luísa Neto Jorge).

 

A LUZ AMADURECE AS PEDRAS E OS FIGOS
Por estes dias, deambulei com o estio, a música das cigarras e as palavras de Gastão (“Os Poemas”, Assírio e Alvim, 2009): “A luz amadurece as / pedras e os figos nos lados dos caminhos / adoça as alfarrobas fende a casca / cinzenta das / amêndoas e desprende-as / varejamos / as que ficam presas de leve / aos ramos; / no armazém da casa amontoadas / descascar as / amêndoas o verão”. Mas também lembro o ritmo antigo, junto de quem conheci e amei: “Na horta atrás da casa laranjeiras / figueiras e uma / romãzeira junto à nora / Às vezes vagarosa a mula com antolhos / rodava toda a tarde / fazendo os alcatruzes despejar / incessantemente água”. É quase perturbador como tudo se assemelha. Estou a ver tudo como se fosse agora. Este Mediterrâneo banhado pelo Atlântico leva-nos muito longe, aos fenícios e cartagineses, aos gregos e romanos, aos misteriosos povos da língua do Sudoeste. E vêm à lembrança Manuel Viegas Guerreiro, com a sua especial atenção, às tradições e costumes, à memória imaterial, mas também Miguel Torga, sentado em Albufeira, num círculo de amigos, com o doutor Serra, a comentar a política, a gozar o fim da tarde e o luminoso pôr-do-Sol. Ainda há dias o recordei com sua filha Clara, e reluziram-lhe os olhos com essas recordações. E lembro Sophia e Ruy Belo no poema  de Gastão em “Repercussão” (2004) na Esplanada do Campo Pequeno (“Não achas que a esplanada é uma pequena pátria a que fomos fiéis?”): “o autor entrara e a presença / dele tinha tornado mais longa a hesitação / entre o sentido e o som ou suprimira-a? / É pouco fotográfica a memória / sonora e uma noite em casa de Sophia / (Que fica dos teus passos dados e perdidos?) / mais do que cada frase, cada pausa / do voo do tempo fizera a suspensão / seria primavera novamente / era talvez em tempo de tormenta / janeiro de 70 mês de febre / um dia só que na memória sobra / (o resto vem do Ruy Belo / Ruy Belo é o poeta vivo que me interessa mais / e é talvez hoje o tempo de tormenta”… Quantas memórias são suscitadas por este regresso às ruas de Faro e ao rincão algarvio, povoados por velhos amigos? Como disse ainda Gastão Cruz; “Palavras não existem / fora da nossa voz as / palavras não assistem / palavras somos nós”(A Doença, 1963).

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

De 21 a 27 de janeiro de 2019.

 

«O Algarve Económico durante o Século XVI» de Joaquim Romero Magalhães (edição de Sul, Sol, Sal, Faro, 2018) é uma obra fundamental da moderna historiografia económica portuguesa, que nos permite compreender como o Algarve teve um papel fundamental na génese da expansão portuguesa.

 

 

VOZ CRÍTICA, ATENÇÃO DESPERTA
Conheci-o como cidadão e como historiador, sempre voz crítica e atenção desperta – e deste modo nos tornámos amigos. Um dia, lançou-me o desafio – havia que encontrar e publicar as lições de Afonso Costa na Universidade de Coimbra, por ocasião dos cem anos da República. Aceitei a proposta, já que se tratava de matéria que não era estranha na minha vida universitária. Não sabia eu em que me iria meter. Mas compromisso era compromisso, e não descansei enquanto não encontrei a versão completa das lições. Fui mantendo Romero Magalhães ao corrente das minhas dificuldades. Afinal, ainda que as lições fossem citadas nas principais bibliografias, o certo é que a sebenta não constava de nenhuma das bibliotecas da rede pública. Ou seja, as lições foram citadas durante muitos anos sem que houvesse alguém a olhar sequer para elas. Finalmente, como explico na introdução ao livro que finalmente se tornou possível, graças à busca persistente de Judite Cavaleiro Paixão, às pistas dadas por Jorge Alarcão, um dia que nos encontrámos em Coimbra (eu deveria pesquisar nos manuscritos da Biblioteca Geral, já que se tratava de uma sebenta – mas esta estava truncada), e à milagrosa aparição na biblioteca pessoal de Luís Bigotte Chorão (sem que ele suspeitasse que o volume que tinha era único), chegámos a bom porto e a sugestão do meu amigo Joaquim Antero Romero Magalhães pôde ser cumprida. Assim a Imprensa Nacional publicou os Apontamentos das Preleções do Dr. Afonso Costa sobre Ciência Económica e Direito Económico Português, correspondentes ao ano letivo de 1896-97, inseridos na Biblioteca Republicana (2015).

 

UMA VIDA DE CIDADÃO ESTUDIOSO
Ao longo da vida, fomo-nos encontrando, por boas razões. Conheci-o em andanças políticas – como deputado constituinte, como Secretário de Estado da Orientação Pedagógica – por motivos históricos, na Comissão dos Descobrimentos e por razões afetivas, pela admiração por seu pai, o Doutor Joaquim Magalhães, professor de minha mãe no Liceu de Faro, com quem tive o gosto de conversar longamente nas ruas da capital algarvia, e até pelas nossas afinidades eletivas relativamente a Antero de Quental. Importa não esquecer que o nome próprio de Joaquim Antero se deveu ao facto de ter nascido exatamente na data do centenário do nascimento do autor dos “Sonetos”, 18 de abril de 1942. Com o pai e o filho tive o grato prazer de recordar esta circunstância feliz de calendário. Nasceu em Loulé, estudou no Liceu de Faro, onde seu pai seria Reitor, e rumou para Coimbra, primeiro para o curso de Direito e logo no fim do primeiro ano inscreveu-se na Faculdade de Letras, em Histórico-Filosóficas. Durante a crise académica teve papel ativo, sendo Presidente da Associação Académica de Coimbra em 1964-65, bem como do TEUC – Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. A sua tese de licenciatura foi sobre o Algarve Económico do século XVI, constituindo uma referência inovadora, hoje essencial para a compreensão da história económica portuguesa. Doutorou-se em 1984, sendo fundamental na afirmação da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Pode, aliás, dizer-se que Romero Magalhães dividiu o seu labor cívico e científico entre Coimbra e o Algarve. Foi desde cedo um grande defensor da criação da Universidade do Algarve, tendo tido nela uma colaboração científica e pedagógica da maior relevância. A sua biografia é muito rica, não sendo possível ser-se exaustivo. Foi professor convidado na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, na Universidade S. Paulo, e em Yale. Em 1993, colaborou no terceiro volume da História de Portugal de José Mattoso. Foi diretor da revista Oceanos, e em 2009 publicou a obra Vem aí a República! 1906-1910. Com Manuel Viegas Guerreiro deu à estampa duas obras essenciais sobre o Algarve no Século XVI - a Corografia do Reino do Algarve, escrita em 1577 por Frei João de S. José e História do Reino do Algarve, da autoria de Henrique Fernandes Sarrão. Em 1999, foi nomeado como comissário-geral da Comissão dos Descobrimentos até 2002, tendo feito parte da Comissão Consultiva das Comemorações do Centenário da República de 2009 a 2011.

 

A MELHOR HISTORIOGRAFIA
A recente reedição de O Algarve Económico durante o Século XVI pela nova editora algarvia “Sul, Sol, Sal” é um acontecimento assinalável. Foi sobre isso que conversámos, a última vez que nos vimos, em Loulé, no Convento Espírito Santo, a assinalar os 25 anos da revista do Arquivo Municipal de Loulé – “Al’-Ulyá”. E falámos das “Atas da Vereação de Loulé dos séculos XIV-XV”, agora à disposição dos estudiosos graças ao seu labor científico. Se no estudo sobre o Algarve Económico deparamos com um grande historiador, sentimos também a influência de Magalhães Godinho. E a abrir a nova edição, podemos ler: “Era o verão de 1964. Em Albufeira passava férias Vitorino Magalhães Godinho, não há muito afastado de professor da Universidade Técnica de Lisboa por opositor ao regime (1962). Nem por isso deixava de ser o mais prestigiado historiador português. Tendo lido alguns dos seus trabalhos (…) entendi que valia a pena procura-lo para que orientasse a minha dissertação de licenciatura”. O jovem foi então procura-lo, o mestre acolheu-o com “lanheza e boa disposição”. E aqueles foram uns dias de praia inesquecíveis. O estudante tinha ideias ambiciosas, mas o experiente professor indicou como tema adequado o da Economia algarvia – até partindo da citada Corografia de 1577. Assim se desenvolveu o trabalho, com a orientação formal de Salvador Dias Arnaut, mas a condução de Magalhães Godinho. As vicissitudes da investigação arquivística foram diversas – desde a consulta (mais fácil) da documentação de Loulé, graças à confiança de Eduardo Delgado Pinto, então presidente da Câmara, às milhentas dificuldades na Torre do Tombo, apesar da preciosa ajuda de zelosos funcionários e de A. H. Oliveira Marques, que conhecia bem o Fundo Antigo. Mas a lição era recebida “em casa de Magalhães Godinho, onde o ouvia e apresentava as dificuldades que sentia e onde como resposta saía com braçadas de livros que tinha que ler porque mais devia e ainda havia muito para trabalhar”. Hoje, confessa, talvez tivesse havido excessiva influência de Braudel, mas a panóplia de autores considerados (não esqueçamos Albert Silbert), a orientação do mestre e as qualidades do autor permitem considerar que o resultado é importante, para a compreensão duma economia que correspondia, na prática, a uma península da Andaluzia, com polos em Lagos, Faro e Tavira, que a lógica atlântica afastará do Mediterrâneo. O trabalho vale por ser “escorado em documentos de arquivo, alguns nunca utilizados, como os livros de vereações da Câmara de Loulé ou os livros das Misericórdias de Lagos, Tavira e da Biblioteca Municipal de Faro”. É essa matéria-prima que concede originalidade à obra e que permite corrigir tantos lugares comuns que persistiam. Em suma, relido agora o livro mantém o maior interesse – a população, a paisagem, os cereais, o gado, as frutas, a pesca, as indústrias, o comércio e a sociedade permitem-nos compreender o ontem e o hoje. Orlando Ribeiro, Oliveira Marques, Aníbal de Almeida e Ruben Andresen Leitão fizeram justos elogios. E basta ler tudo para ficarmos cientes de que lidamos com a melhor historiografia.    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
 

UM ESTUDIOSO INCANSÁVEL

 

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TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Especial. 26 de dezembro de 2018.

 

Acabo de ter a triste notícia de que Joaquim Antero Romero Magalhães morreu. É uma perda irreparável. Estive com ele há poucos dias e falámos longamente, em especial da reedição do seu livro fundamental «Para o Estudo do Algarve Económico no Século XVI». A obra é uma peça crucial para o conhecimento da História Económica. E nota-se o dedo e a influência do Doutor Vitorino Magalhães Godinho, mestre de um novo pensar e homem que abriu novos horizontes no conhecimento da historiografia dos Descobrimentos. Romero Magalhães assumiu papel fundamental na Comissão, que teve em Vasco Graça Moura um animador inigualável. Em boa hora a editora Sul, Sol e Sal reeditou essa obra essencial sobre o Algarve e a Universidade do Algarve concretizou o Doutoramento Honoris Causa no último momento. Não houve assim celebração post mortem mas homenagem em vida. Temo sempre as homenagens póstumas – que revelam sempre alguma injustiça… Nestes dias, voltei às páginas de Romero Magalhães. Li o seu prefácio agora escrito, que aconselho vivamente – e lembrei a memória de seu Pai, que também foi meu amigo… Quantas conversas na Rua de Santo António em Faro. Nada melhor do que ler Romero Masgalhães. As grandes obras tornam vivos os seus autores, mesmo depois de nos deixarem… É isso que vou fazer, lê-lo, lê-lo sem descanso…

 

 

A ESTRANHA GRANDE BRETANHA.

 

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Antes da notícia triste, estive a ler a imprensa britânica. E falei com o meu vizinho Robertson, que me disse estar atónito e confuso, porque não vê que os seus patrícios recuperem juízo. O desenho da capa do “Spectator” representa uma verdadeira cacofonia. As vozes são contraditórias e desencontradas. Dir-se-ia que quase todos dizem o que não querem e querem o que não dizem. Um velho industrial do Ulster que eu conheço já me disse e escreveu que de duas uma ou não há Brexit (e ele não sabe como isso se dará) ou a Irlanda se tornará um só Estado, uma República, com um só povo e uma só bandeira. No outro dia contava-me que em Belfast nas janelas há mais bandeiras da República do que “union jacks”… E um escocês amigo dizia-me que se a Irlanda se tornar uma só, a Escócia quererá ir também, mas o certo é que a bandeira do Reino Unido poderá mudar, uma vez que as cruzes sobrepostas atuais pressupõem que o Ulster continua no UK. Volto a olhar este desenho bem apanhado de um coro desafinado. É isso que hoje se passa, para mal dos nossos pecados. Grande Bretanha ou Pequena Realidade? E que poderá um anglófilo incorrigível como eu pensar… A finalizar agradeço os meus leitores que tanto elogiaram o meu automóvel… Por mim, ainda acredito que o Brexit possa ser uma miragem… Como habitualmente, deixo-vos um poema – desta vez natalício, da autoria do meu querido homónimo e padrinho de pia batismal – Frei Agostinho da Cruz:

 

Era noite de inverno longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha cor, que ter soía.

 

Quando nas palhas duma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado
O Menino Jesus pobre jazia.

 

-- Meu amor, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza
Acrescentar-me as dores que passais?

 

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.

 

 

       Agostinho de Morais

 

 

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   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
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A VIDA DOS LIVROS

De 8 a 14 de outubro de 2018.

 


«Loulé – 630 Anos de Poder Local»
(edição da Câmara Municipal de Loulé, 2014) constitui um repositório valioso, envolvendo uma exposição e os textos apresentados a esse propósito – onde se documenta um acervo precioso onde avultam as Atas de Vereação mais antigas do País.

 


UMA HISTÓRIA PLENA

Esse conjunto de elementos e reflexões de prestigiados autores (como Joaquim Romero Magalhães, Maria Helena Cruz Coelho, Maria de Fátima Botão, Eduardo Vera-Cruz Pinto e António Ramos Preto) serve de base às notas que apresentamos, no momento em que teve lugar um frutuoso périplo nos municípios de Faro e Loulé. No âmbito do ciclo “Viagem na Minha Terra”, a escolha incidiu sobre dois municípios fundamentais para a compreensão do Algarve. O périplo iniciou-se em Faro, “Vila Adentro”, em ameno convívio ao almoço, para recordarmos as origens da cidade e as suas vicissitudes - as origens fenícias, a criação e a afirmação de Ossónoba, as intensas trocas comerciais e culturais, a ocupação romana, a presença dos visigodos e de Bizâncio, bem evidente nas muralhas, recentemente consolidadas, a cultura árabe, numa cidade que se designaria como Santa Maria do Ocidente e depois como Santa Maria de Harum. Esta referência à família árabe de Beni Harum é que dará origem à designação moderna de Faro. Damião de Góis foi dos primeiros em falar de Faro, como hoje dizemos. A reconquista cristã foi controversa, até que o rei de Castela, no Tratado de Badajoz (1267), reconheceu a legitimidade do nosso D. Afonso III. O seu sogro Afonso X considerava-se como protetor da taifa de Niebla, onde o Al Gharb do Al-Andalus se integrou, mas o rei Sábio viria a ceder, considerando ser D. Dinis, futuro rei de Portugal, seu neto e de seu sangue. Uma curiosidade: diz a tradição que aqui nasceu D. Brites de Almeida, a célebre padeira de Aljubarrota…

 

O PRIMEIRO LIVRO IMPRESSO
A comunidade judaica de Faro foi ativa e interveniente, tendo sido aqui impresso e publicado em hebraico o primeiro livro português com caracteres móveis de Gutemberg – o “Pentateuco” (1487). Faro foi elevada a cidade em 1540 e em 1577 D. Sebastião tornou-a sede episcopal, com o primeiro Bispo D. Afonso Castelo Branco (1577). Cidade do litoral, num oceano infestado de piratas e corsários, Faro foi saqueada pelos ingleses em 1596, já no reinado de Filipe I, tendo o precioso arquivo da Sé sido roubado ou destruído e levado para a Universidade de Oxford, onde se encontra na Biblioteca Bodleiana. Avulta nele a documentação riquíssima de D. Jerónimo Osório, Bispo de Silves, intelectual marcante do século XVI. Num breve périplo dentro das muralhas, na cidade antiga, pudemos lembrar os dois terramotos que destruíram a cidade em 1722 e 1755 e a figura marcante, cuja estátua se encontra diante da Catedral, do Bispo D. Francisco Gomes Avelar, falecido em 1816, que assumiu a tarefa de reedificar a cidade destruída. A ele se deve a construção do Arco da Vila, do Hospital da Misericórdia e o acabamento do Seminário. Em frente da Torre da Sé recordamos uma das poucas edificações que resistiu aos diversos terramotos. A Catedral é um monumento da Renascença quinhentista com três naves de quatro tramos divididas por colunas dóricas e tetos de madeira, alberga o célebre relicário de talha do século XVIII, com o santo lenho, graças ao empenho do Bispo D. António Pereira da Silva. E não esquecemos a alusão ao órgão barroco do Coro Alto, com chinoiseries, do reinado de D. João V. O que foi a Judiaria deu lugar ao Convento de Nossa Senhora da Assunção, fundado pela rainha D. Leonor… A cidade desenvolveu-se como capital do Algarve, que perdeu a designação de Reino em 1910, mas nunca teve órgãos soberanos. Em nome da memória, não esquecemos Cândido Guerreiro, António Ramos Rosa, Gastão Cruz, a “Poesia 61”, Teresa Rita Lopes, e lembramos passagens marcantes na obra de Manuel Teixeira Gomes, em especial em “Gente Singular”. O estranho calor de uma tarde do feriado de Outubro não nos deixa parar durante muito tempo em cada um dos lugares nesta capital, que sucedeu a Silves, quando o rio Arade deixou de ser navegável e o eixo de gravidade algarvio passou para Sotavento. Damos um salto até Milreu, para recordarmos a presença romana, lembrando a extraordinária riqueza cultural da região, onde Estácio da Veiga deu, no século XIX um impulso decisivo para o desenvolvimento da Arqueologia, abrindo pistas, ainda por explorar plenamente.

 

INFLUÊNCIAS MÚLTIPLAS
Na encruzilhada de influências, desde o mar do Norte até ao Mediterrâneo, facilmente percebemos o património cultural como realidade viva. O turismo cultural tem, de facto, no Algarve potencialidades que não podem ser esquecidas. E que nos revelam as ruínas de Milreu? O exemplo de uma villa romana rustica ligada à intensa atividade económica do Algarve – desde as pescas à agricultura – que culmina num edifício de luxo que ainda hoje nos surpreende: entrada com peristilo, termas, pátio central, jardim, tanque, triclinium com abside, lagares de azeite e vinho, casa rural, edifício religioso… A visita ao centro arqueológico, com a Drª Alexandra Gonçalves, Diretora Regional da Cultura, foi ilustrativa do progresso económico alcançado, das riquezas adquiridas e do esmero artístico alcançado. Por isso, fizemos questão de ler o poema de Jorge de Sena alusivo à cabecinha romana encontrada em Milreu, que se encontra no Museu Nacional de Arqueologia. E, ao fim do dia, no Hotel EVA de Faro, quando nos encontrámos com o Presidente da Câmara de Faro Dr. Joaquim Bacalhau, pudemos invocar um diálogo tão rico entre os vários tempos vividos pela capital algarvia…

 

PEREGRINAÇÃO LOULETANA
Na manhã de sábado iniciamos a peregrinação na Praça da República de Loulé, no Café Calcinha, depois de lembrarmos que estamos no maior concelho do Algarve, composto pelas três zonas tradicionais – litoral, barrocal e serra. Aqui invocamos o poeta António Aleixo, representado pela estátua da autoria do Mestre Lagoa Henriques. O Presidente da Câmara Dr. Vítor Aleixo e a Drª Dália Paulo dão-nos as boas-vindas. E a Drª Luísa Martins, na tradição do Professor Manuel Viegas Guerreiro, invoca o ambiente deste histórico Café (1929), que é o exemplo da memória viva, do património imaterial – e que se chamou Central, Carioca e Louletano. Lembramos nas tertúlias do Calcinha o Doutor Bernardo Lopes, o nosso João Semana, com lugar certo neste ponto de encontro, que celebrizou os folhados de doce de ovos, que são imperdíveis. Falamos do Dr. Frutuoso da Silva, ilustre jurista, que também tinha aqui lugar certo… Seguimos para a maravilhosa Igreja da Senhora da Conceição das Portas da Vila, mandada erigir aquando da Restauração da Independência (1640) – com altar precioso de talha dourada, cobertura de azulejos de grande qualidade artística representando cenas da vida da Virgem e referências aos resultados das investigações arqueológicas sobre as muralhas e as portas da Vila. E segue-se a entrada na autêntica gruta das Mil Maravilhas – com a Drª Isabel Luzia. Fazemos o percurso arqueológico e histórico deste território riquíssimo e deparamo-nos com o célebre “Metoposaurus Algarviensis”, com 227 milhões de anos, antepassado dos dinossauros, e exemplo único descoberto na Rocha da Pena (em Salir). É natural a emoção posta na alusão a esta descoberta que abre perspetivas científicas, que a UNESCO segue com atenção. O sentido pedagógico ressalta neste núcleo onde seguimos do Paleolítico até ao Neolítico, reconhecendo a importância da presença megalítica do Ameixial com as Antas da Pedra do Alagar e de Beringel. Anuncia-se o desenvolvimento de um centro interpretativo onde a Ciência e a Cultura se encontram naturalmente e continuarão a aprofundar essa relação.

 

MILHARES DE VISITANTES
É reconfortante ver milhares de pessoas pedestres, motards, cicloturistas…), visitando os monumentos, frequentando o mercadinho, sentindo o património cultural como presente. E é o momento de chegarmos aos Banhos Islâmicos, projeto de Loulé, como não encontramos outro em Portugal. O edifício «Hammam» -, no coração da cidade constitui um fator essencial para o melhor conhecimento do período anterior à reconquista cristã, sabendo-se da importância para a cultura muçulmana do ritual da limpeza, corporal e espiritual. De facto, mesmo depois da reconquista e do foral concedido por D. Afonso III as práticas tradicionais mantiveram-se, sendo reservada para o rei a posse dos banhos públicos. Atente-se, aliás, na sala quente, na sala temperada e na pequena parte da sala fria, ou nas chaminés… E antecipamos a possibilidade de usufruir a memória. Antecipamos o que será no futuro próximo um verdadeiro exemplo de como se deve cuidar da memória histórica, arqueológica e patrimonial… E sentimos o projeto “Loulé Criativo”, com os caldeireiros, os oleiros e a oficina da empreita de palma, para culminarmos nos ateliês do Convento do Espírito Santo do “Loulé Design Lab”. Património material e imaterial e criação contemporânea – como a Convenção de Faro nos ensina. Almoçamos na Quinta do Moinho, junto da Mãe Soberana, vemos o Centro Cultural de Almancil e a fulgurante igreja de S. Lourenço com os azulejos de Policarpo de Oliveira Bernardes e da sua oficina – e vamos até ao Paço do Concelho para debater os “Itinerários Culturais e o desenvolvimento local”, com o Arquiteto Fernando Pessoa – que propõe como símbolo para o património natural e paisagem: a pega azul ou charneco, que o Algarve apenas partilha com o Japão… Urgia ilustrar a força mobilizadora do património cultural. E merecemos um delicioso jantar no Monte da Eira, como um simpático javali suculento e macio… E no domingo de manhã, como não poderia deixar de ser, foi Alte de Cândido Guerreiro que recebeu principescamente a nossa missão – para dizer que o património cultural tem a dimensão humana, tradição e entusiasmo.   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A CABECINHA ROMANA DE MILREU…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Diário de Agosto * Número 11

 

Como não apaixonarmo-nos pelo património? Na tarde de domingo dia 5 de agosto em Querença na mesa quadrada sobre Literatura e Artes Plásticas vieram à baila as “Metamorfoses” de Jorge de Sena. E Mário Avelar recordou “A Cabecinha Romana de Milreu”. Uma preciosidade! Não poderia deixar de o fazer aqui em terra algarvia. Jorge de Sena veio ao Algarve em 1959, em fim de fevereiro, em companhia de Erico Veríssimo. E ficou com essa imagem bem marcada, como lembrança daquele momento em que também foi acompanhado pelo poeta Emiliano Costa (1884-1968), médico em Estói.

 

O que resta desse busto encontra-se no Museu Nacional de Arqueologia e é assim descrito: “Cabeça-retrato de uma jovem mulher, bem modelada, de traços expressivos e grande naturalidade. Tem o nariz fragmentado e pequenas falhas na superfície do queixo e do pescoço. É um bom retrato, realista, de feições corretas, tecnicamente bem executado. (…) Ostenta um característico penteado em “ninho de vespa”, a testa curta quase desaparece sob o diadema formado por uma cadeia tripla de caracóis sobrepostos, que as damas romanas mandavam armar sobre uma rede de fio ou de metal, e na parte anterior da cabeça uma mecha de cabelo enrosca-se em largo carrapito sobre a nuca descobrindo as orelhas. A moda deste penteado foi criada por Júlia filha de Tito e esposa de Domiciano, no período flaviano, tratando-se talvez mesmo de um retrato da própria imperatriz. (…) Proveniente da villa romana de Milreu (ruínas de Estói), este retrato espelha da melhor forma a riqueza, importância e a plena atualidade e inserção sociopolítica das elites municipais da Lusitânia meridional em finais do século I – inícios do século II d.C., adotando posturas e modas estereotipadas de evidente prestígio pela sua conotação com a casa imperial”.

 

Em 1963, já em Araraquara, Jorge de Sena pegou no registo poético da memória e escreveu um poema que bem ilustra a riqueza do Algarve, no modo como a literatura se alimenta da arte.  

 

«Esta cabeça evanescente e aguda,
Tão doce no seu ar decapitado,
Do Império portentoso nada tem:
Nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
Na sua boca as legiões não marcham,
Na curva do nariz não há povos
Que foram massacrados e traídos.
E uma doçura que contempla a vida,
Sabendo como, se possível, deve
Ao pensamento dar certa loucura,
Perdendo um pouco, e por instantes só,
A firme frieza da razão tranquila.
Viveu, morreu, entre colunas, homens,
Prados e rios, sombras e colheitas,
E teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
Que os deuses todos tornou seus, não tinha
Um rosto para os deuses. E os humanos,
Para que os deuses fossem, emprestavam
O próprio rosto que perdiam. Esta
Cabeça evanescente resistiu:
Nem deusa, nem mulher, apenas ciência
De que nada nos livra de nós mesmos».

 

Agostinho de Morais

 

 

 

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