Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
6. OBÔ, CASCATA SÃO NICOLAU E CASA MUSEU ALMADA NEGREIROS
1. Nas áreas de maior altitude da ilha, onde o meio não facilita a intervenção humana para atividades agrícolas, mantém-se o tipo de vegetação primitiva ou dela próximo. É a zona do Obô, uma floresta de nevoeiros, densa e húmida de montanha, ocupando o interior e o centro das duas ilhas do arquipélago (e zonas dispersas), cobrindo 235 quilómetros quadrados em São Tomé e 85 do Príncipe.
No Jardim Botânico do Bom Sucesso, porta de entrada do parque natural do Obô, só houve tempo para uma visita, conduzida pelo guia, à sede e espaço envolvente, não permitindo caminhadas pedonais ou conhecer o pico mais alto e a lagoa. Muito menos estudar e investigar o que estudiosos e investigadores de todo o mundo aí estudam e investigam.
Em canteiros e espaços trilhados ao longo do caminho, há uma enorme variedade de espécies e flores. Desde curas para todos os males, de aplicações terapêuticas, como a árvore cata-grande (a casca é usada para baixar a tensão e tratar a diabetes), folha de goiabeira (diarreia e tosse), marapião (dores de dentes), pau-sangue (anemia), folhas de cêlo-sum-zon-maiá (gripes), planta da quina (chás da malária), casca da nêspera do bô (hérnias), pau-três (dores de barriga e efeitos afrodisíacos), folhas de pau-parto ou pau-cabra (com que as mulheres tomam banho quando em trabalho de parto), pega-rato (cólicas), folhas de sapo sapesapeiro (febre tifóide e malária), caneleiras, cafeeiros, cacaueiros e, claro, a singular não me toques.
Há também vários tipos de micocó: usados na culinária, em chá para asma e problemas respiratórios e de poderes afrodisíacos. Sem esquecer a planta medicinal bordão do macaco (massagens, infeções intestinais e banhos de recuperação após o parto). A que acresce a sonífera bunga, cuja folha colocada e deixada, alguns minutos, num copo com água ou vinho, e bebida, de seguida, pode fazer dormir 24 horas contínuas.
Há que mencionar as flores, como a flor de Jorge Tadeu (antúrio de São Tomé), a rosa de porcelana (de caule e folhas grossas, com um centro em forma de pinha e pétalas carnudas) e os bicos-de-papagaio (cachos de flores, em que as fêmeas caem dos ramos e os machos crescem para cima, sendo um dos símbolos do país).
A entrada era gratuita, mas a doação em dinheiro, no final, é encorajada, havendo orgulho no trabalho aí desenvolvido.
2. O itinerário prossegue com parada na cascata São Nicolau, uma imponente queda de água em longo véu, com 60 metros de altura, que acaba numa piscina natural, de águas frescas, disponível para mergulhos, em especial na época das chuvas.
Sombreada e ladeada por uma floresta verde, que se adensa na zona, é um monumento turístico natural, onde a beleza e o som da água a cair, associada à quietude e trinar dos pássaros, nos faz sentir de bem com a natureza.
Depois de tocados e relaxados pela seiva da queda de água que nos refresca, seguimos para a roça onde nasceu Almada Negreiros.
3. José Sobral de Almada Negreiros nasceu na roça Saudade, Trindade, em São Tomé, em 7 de abril de 1893, onde há documentação a certificar o seu nascimento. O seu pai foi António Lobo de Almada Negreiros, alentejano, jornalista e escritor, nomeado administrador do concelho de São Tomé, onde desposou Elvira Freire Sobral, uma mestiça abastada são-tomense de ascendência angolana, que morreu em 1896, com 23 anos, cujo filho saiu novo da ilha para não mais regressar.
Foi no local onde este artista multidisciplinar (das artes plásticas, da escrita e do modernismo) nasceu, que houve (e há) uma tentativa de recuperação do seu passado. Iniciativa do proprietário e comunidade local, ao que se indicia, até agora, bem-sucedida, através de uma reconstrução de ruínas que se multiplicou a um restaurante, sala de chá, casa-museu e uma guest-house, num espaço aprazível, verde e acolhedor, por entre dizeres, escritos e memórias de Almada Negreiros. Onde também se ouve o canto ameno e suave do ossobô, pequeno pássaro de asas verdes.
Além da esplanada do restaurante, no primeiro piso, com vista sedutora e a reter, sobre a verdura da zona e ao fundo o mar, há uma outra para chá, no rés do chão, com desenhos e escritos murais alusivos à história da roça relacionada com a vida e a obra de Almada. Motivos referentes ao artista são extensivos a todo o espaço, desde a entrada com uma escultura em preto e placas evocativas a um “Almada Negreiros Africano: filho de São Tomé e neto de Angola”, passando pelo restaurante e paredes das casas de banho, até ao interior da casa museu com um retrato da mãe, uma cópia da famosa pintura da autoria de Fernando Pessoa, pósteres de exposições na Fundação Gulbenkian, livros da obra do homenageado, além do inevitável artesanato africano.
O serviço do restaurante, com duas entradas, prato principal e sobremesa, era fixo ao dia, tornando a refeição mais célere, mas sem alternativa, a querer imitar uma degustação mais europeia e sofisticada, a necessitar de evoluir, como o projeto, no seu todo, a todos os níveis, dadas as potencialidades, não obstante ser justo reconhecer, como estimulante e gratificante, o que já existe.
Sugeri, a quem cuida e explora, para diligenciar por contactos, internos e externos, incluindo parcerias, para a preservação, implemento e manutenção deste espaço, com um tão singular cunho e “cheiro” cultural. O que pode ser extensivo ao estudo e investigação da relação que teve Almada com África (num tempo em que a influência da arte negra sobre a arte moderna era indiscutível), a começar por São Tomé. O que faz sentido, uma vez ser meio-africano.
É fundamental sermos capazes de nos vermos projetados no espelho da crítica e a poesia encarrega-se de perscrutar diversos caminhos. Mais do que encontrar soluções, que não cabem à arte, trata-se de iluminar e de ajudar a ver. Impõe-se, porém, cuidar do entendimento dos símbolos, o que obriga à consideração, segundo Pessoa, da simpatia, da intuição, da inteligência, da compreensão e do conhecimento transcendente. Tem o intérprete de sentir simpatia pelo símbolo. Tem de ser capaz de ver o que está para além dele. E Almada Negreiros? Eduardo Lourenço fala dele como o “único autêntico modernista em sentido estrito de sintonizado com o vanguardismo (ou sucessivos vanguardismos) da época”, enquanto em Fernando Pessoa, salienta, em vez do delírio, a “consciência das insolúveis contradições do mundo moderno e da mesma modernidade, porventura até, rejeição do seu próprio espírito”. Se virmos o percurso de Almada Negreiros compreendemos que o gosto absoluto da novidade o leva a crer, menos na lógica dos sistemas, e mais na força da criação. “Os sistemas e os programas servem para conduzir e jamais para criar”. “A Arte não pode viver antes de criar a sua própria autoridade de autonomia dentro da coletividade”. Dêem-se dois exemplos: o dos painéis da Gare da Rocha do Conde de Óbidos (1945-48) e o da obra “Começar” na Fundação Calouste Gulbenkian (1968-69). São duas abordagens diferentes, que representam facetas complementares da mesma atitude. José-Augusto França fez a síntese adequada: “Almada situa-se na história da arte portuguesa contemporânea como uma figura única, no seu valor estético tanto quanto no valor referencial da sua mensagem poética”. A expressão “português sem mestre” caracteriza o artista completo que procurou abrir caminhos novos – “chegar a cada instante pela primeira vez” – com originalidade e um sentido próprio de praticar diferentes artes com subtil mestria.
A ditadura militar de 1926 impôs um nacionalismo autocrático, que viria a ser marcado pela influência decisiva do Ministro das Finanças Oliveira Salazar, que se tornaria Presidente do Conselho em 1932, como figura marcante do novo regime, fazendo aprovar a Constituição de 1933, por plebiscito em que as abstenções foram consideradas como votos a favor, base do chamado “Estado Novo”. Aí um quadro de direitos formais, no célebre artigo 8º, previa exceções na sua aplicação que lhes retirava qualquer sentido real. Apesar da Primeira República ter conseguido iniciar o saneamento das Finanças Públicas, foi Salazar quem fez aprovar um novo quadro disciplinador em 1929, apresentando equilíbrio orçamental, como fizera Afonso Costa no início da Primeira República. O protecionismo, o apoio ao nacionalismo de Franco em Espanha (1936-39), a neutralidade colaborante durante a Segunda Grande Guerra, o regime policial, o acolhimento de muitos refugiados - coexistiram com a chamada “Política do Espírito”, coordenada pelo Secretário da Propaganda Nacional António Ferro, antigo secretário da redação de “Orpheu”, jornalista e escritor, com ligações aos meios intelectuais modernistas. A “Exposição do Mundo Português” (1940) procurou reunir os principais artistas do momento, mas foi prejudicada nas suas repercussões, pelo início da Grande Guerra. Pode dizer-se que até ao final da Guerra (1945) houve uma convergência entre a política de António Ferro e do Ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco, um antigo republicano, falecido prematuramente em 1943, que permitiu a estabilidade essencial do salazarismo. A vitória dos Aliados e as expectativas do país relativamente a uma europeização e abertura do regime, com eleições livres, fez evoluir o estado de coisas. Os jovens artistas e intelectuais afirmaram-se crescentemente críticos e partidários da democratização. Mesmo no seio do regime surge uma corrente modernizadora que defende mudanças estruturais, pela eletrificação, com o apoio técnico do Plano Marshall, e por uma tímida industrialização (“Linha de Rumo” do Engº Ferreira Dias) e pela alfabetização. Em 1958 a candidatura presidencial do General Humberto Delgado, antigo alto dirigente do Estado Novo, contra Salazar, bem como a afirmação crítica da Igreja Católica, através do Bispo do Porto, abrem o início do ocaso do regime. Entretanto, a Fundação Gulbenkian, como instituição totalmente privada, torna-se influente, no apoio às artes, à educação, à ciência e a beneficência (1956). Abre-se gradualmente a economia e começa o fim do protecionismo nacionalista, do condicionamento industrial e da lógica autárcica, com a adesão de Portugal com o Reino Unido à Associação Europeia do Comércio Livre (EFTA), antecâmara do projeto europeu (1959). Em 1961, o começo da Guerra Colonial acelera o enfraquecimento de Salazar. Este será substituído em 1968 por Marcelo Caetano, cuja abertura tímida não tem eficácia e apenas acelera a preparação do Movimento das Forças Armadas de 25 de abril de 1974. A chamada Ala Liberal de Francisco Sá Carneiro e de João Pedro Miller Guerra, mas também de José Pedro Pinto Leite, prematuramente desaparecido numa missão parlamentar na Guiné-Bissau, prepara a mudança do regime, esbarrando com o imobilismo essencial do Presidente do Conselho, incapaz de encontrar solução para a guerra colonial e uma resposta política para a mesma. O contexto internacional pressiona o regime e as Forças Armadas manifestam necessidade de uma evolução no sentido da democratização e da descolonização. Novos horizontes da cultura contribuem decisivamente para essa mudança, que Samuel Huntington considerará como o início da Terceira Vaga das Democracias.
Num especial aperitivo para o renovado Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian deparamo-nos nestes dias com “Histórias de Uma Coleção”, uma extraordinária reunião de obras de arte do último século cujo regresso encheu de emoção quantos acorreram à inauguração da exposição. Sentia-se o “espírito Gulbenkian”, como nos grandes momentos de uma vida plena, enquanto no Grande Auditório tinha lugar a prodigiosa apresentação da violinista sul coreana Bomsori Kim, sob a direção de Giancarlo Guerrero, no concerto para Violino e Orquestra em Ré maior, opus 77, de Brahms. Em iniciativas paralelas, com públicos diferentes, a cultura e a arte manifestavam-se numa sublime convergência.
O que é uma Coleção? De que histórias é feita? Um aperitivo é um anúncio do que virá. À entrada, um conjunto de 73 obras, numa parede mágica, convida-nos a uma imersão total como acontece com as crianças ávidas numa loja de brinquedos. E perguntamos: Quem? Onde? Como? E compreendemos que “histórias de uma coleção” são a procura dos mil mistérios que se escondem e que se revelam na relação entre os artistas e as suas obras, e no caminho destas ao encontro de quem as demanda. E as obras de arte tornam-se, elas mesmas, protagonistas de fascínio, que se torna indescritível nessa imersão total que nos torna participantes desse diálogo que torna a arte uma procura de nós mesmos.
Ao reencontrar o “Fernando Pessoa” de Almada Negreiros, senti não apenas o carácter fulgurante deste ícone português, mas a memória da revista “Orpheu”, que foi um dos momentos mais importantes da moderna cultura em língua portuguesa. E lembro o facto de José de Azeredo Perdigão, o primeiro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, ter participado no grupo de “Orpheu” (em 1915) e ter sido um dos fundadores da revista “Seara Nova” (1921), dois exemplos essenciais da nossa contemporaneidade. A primeira versão deste quadro de Almada foi feita em 1954, por encomenda de “Os Irmãos Unidos”, o restaurante do Rossio, de que era sócio Alfredo Guisado, um dos companheiros de “Orpheu”, onde tiveram lugar muitas reuniões do grupo, “em camaradagem e conta fiada”, na expressão de José-Augusto França. A cabeça que está no quadro foi primeiro desenhada em 1935, e publicada no “Diário de Lisboa” quando o poeta morreu. A tela que está na Gulbenkian é a réplica, encomendada em 1964. A Fundação procurara adquirir a versão original, na sequência da atribuição do prémio de pintura extraconcurso na I Exposição de Artes Plásticas da Gulbenkian em 1957. Não houve, porém, acordo quanto ao valor, que, aliás, se fixaria em leilão. E assim foi encomendada pela Fundação ao artista uma réplica, que Almada realizou, projetando o primeiro quadro em espelho, com “curiosas incongruências na posição das mãos e do papel”, mas inspirando-se nos misteriosos painéis de S. Vicente de Fora, que apaixonaram o pintor, centrado na figura repetida do que se pensa ser S. Vicente, como esclarece no belo catálogo Ana Vasconcelos, podendo ainda lembrar-se a disposição geométrica do chão, que permitiu a ordenação dos painéis no Museu de Arte Antiga a partir de 1940. “Fernando Pessoa está sentado a uma mesa de café, pelo verão de 1915. Sobre o tampo da mesa o número 2 de ‘Orpheu’. É o retrato do poeta e da sua geração que a simples presença da revista anuncia. E também, de certo modo, um retrato de Lisboa, que entra, num sol matutino pela sala dentro, envolto em cheiro de maresia – porque se está no Terreiro do Paço e o café só pode ser o ‘Martinho da Arcada’. O poeta suspendeu a escrita, pousou a caneta, vai puxar uma fumaça. O café espera, ao lado com o açucareirozinho de metal amolgado” (segundo J.A. França). Eis porque considero esta obra-prima um ícone português, porque aí encontramos uma preciosa síntese de tradição e modernidade. “Serei Vitória um dia / - Hegemonia de Mim!” – como disse Almada em “A Cena de Ódio”.
Ninguém melhor do que Almada Negreiros, num fragmento dos Painéis da Rocha do Conde de Óbidos, para nos guiar na reta final deste folhetim de folhetins. E porquê este puzzle de várias leituras e de diversos enredos?
Para lembrar como a literatura pode ser mais do que um jogo de probabilidades, uma equação com várias incógnitas. Nesse sentido, convoco diversos intervenientes nestes capítulos, à semelhança do que costuma fazer Hercule Poirot. O seu método baseia-se no caminho de uma hipótese para uma tese, com uma cuidadosa ponderação dos passos que permitam encontrar solução. E nós apenas temos uma pergunta.
Comecemos, assim, por fazer a lista dos protagonistas relevantes. Neste momento, há uma ponta solta, uma personagem, cujo destino verdadeiramente desconhecemos, mesmo tendo a tentação de perceber como Ramalho e Eça resolveram o seu mistério de Sintra. Não sabemos, do mesmo modo que como desapareceu a cabeça da célebre estátua em honra de Pacheco. Espreitemos, antes de qualquer desenvolvimento, o que o detetive Jaime Ramos escreveu em duas folhas de um velho bloco. À semelhança do que normalmente acontece, porventura a principal chave do enigma foi a que passou mais despercebida, com grande desatenção do público frequentador deste folhetim.
Eis, entre aspas, a lista que o portuense me enviou:
«O folhetim tem como protagonistas fantasmas e uma só interrogação. Qual é ela? A primeira sombra é Carlos Fradique Mendes (I), o único que existe, celebrado nas letras, mas pouco conhecido como artífice de dramas policiais. Ele aparece e reage negativamente ao ser descoberto (II). O final do Passeio Público, a Avenida da Liberdade e o Rossio são os primeiros lugares do mistério, sucedendo-lhes a Rua dos Fanqueiros do sr. Justino Antunes (III). O convento do Carmo, lugar de pedras antigas, alberga a voz soturna do coronel Segismundo, herói da pátria (IV). E irrompe em pleno Chiado o Conselheiro Acácio cheio de salamaleques perante Luísa do Primo Basílio (V). Em maré de Conselheiros, Fradique desenha o célebre Pacheco, com o País a chorar o seu génio (VI), e mais adiante virá Abranhos (XX). Mas é Zé Povinho quem desmascara a ilusão (VII). Depois dos Conselheiros, surgem os Morgados, como Joãozinho das Perdizes (VIII). E vem à baila o elogio do Pau de Marmeleiro, simbolizado pelo Bispo de Viseu (IX). E, como se não houvesse suspeitos suficientes, eis que surge Calisto Elói de Barbuda (X) e as peripécias da “Queda de um Anjo” (XI). Mas, de súbito, descobre-se um português surpreendente – Corto Maltese, neto de Frei Manuel Pinto da Fonseca, Grão-Mestre da Ordem de Malta (XII), que viaja pelo mundo (XIII). E deparamo-nos com um dos mais populares protagonistas: Sandokan de Emílio Salgari, em Mompracem (XIV) com o português Gastão de Sequeira, rapidamente chegando ao cenário da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (XV) e à Banda Desenhada de José Ruy (XVI) e, depois à alucinante viagem no mundo da ilusão: Alecrim e Manjerona (XVII), Monólogo do Vaqueiro de Mestre Gil (XVIII), bem como no campo dos folhetins – a Joaninha do Olhos Verdes (XIX)».
Por um momento interrompemos a lista.
Que procuramos? Diga-o o leitor.
Portugueses descobrimo-los em toda a parte. Todos permitem entender a lusitana gente sem a tentação de simplificar. Num jantar à portuguesa (XXI), na companhia de um Abade (XXII), numa comédia de enganos (XXIII), no encontro entre Antunes e Judite (XXIV) de que trata o puzzle complexo nos leva à interrogação de quem somos?».
Mas falta ainda saber qual o desenlace na misteriosa Estrada de Sintra…
O nome de Judite estava riscado pelo autor na capa da primeira edição desta obra. Para muitos, a começar no Ricardo Reis retratado por Saramago no “Ano da Morte”, estamos perante uma das obras mais importantes na renovação da literatura portuguesa contemporânea, ao lado de “Viagens na Minha Terra” de Garrett. O tema, a linguagem, a ordenação – tudo dá sinais de uma vida que persegue o mundo. E neste folhetim, onde vários fantasmas se encontram, não poderia faltar esta surpreendente obra de um grande artista que não deixou por mãos alheias o domínio da literatura moderna. Antunes persegue Judite. É uma procura que se exprime como verdadeira busca de uma sombra. Escrito por Almada Negreiros em 1925 é um romance de iniciação de um jovem de província, o Luís Antunes, provindo de uma família abastada. O tio de Antunes envia-o para Lisboa ao cuidado do amigo D. Jorge (“bruto como as casas” e ordinário) com o objetivo de fazer as “provas masculinas”. E o protagonista persegue Judite, mas esta percebeu perfeitamente que ele não estava destinado a ela, mas “não lhe faltava dinheiro”, que era o principal para esperar, “para disfarçar, para mentir a miséria e a desgraça”. «A Judite é um pedaço de verdade, autêntica, sem forma nem fuga. Verdade tão pura que não admite arranjo nem escape. Ao mesmo tempo, ela é a ignorância em pessoa. Verdade absoluta sem sonho. Sem imaginação. Os seus dezanove anos cheios de cicatrizes são a estátua mutilada da Verdade. Os gestos da estátua são falsos, é tudo mentira, apenas a matéria da estátua mutilada é verdade!»
«Só quando chegou à rua é que viu que não ia para parte alguma. Não havia nenhum lugar para onde ele fosse. A mesma multidão, as mesmas casas, as mesmas ruas e ele. Mas qualquer coisa de novo se passava na sua vida. Se sondava o seu íntimo, não havia nada até à profundidade. Do exterior nada lhe vinha, tudo encontrava resistência nos seus sentidos para o animar de imagens. Ele não se reconhecia: havia qualquer coisa de estranho na sua vida, qualquer coisa de estranho e dele próprio ao mesmo tempo». (…) «A Judite e o Antunes entraram ambos na intimidade um do outro como ladrões que não sabem exatamente o que vão roubar. Percorreram todos os cantos, indagaram de todos os caminhos, revolveram tudo o que se procura e não se encontra, e ambas as intimidades foram impiedosamente devassadas um pelo outro. Ainda que alguém viesse depois a entrar pela primeira vez nas suas vidas, não poderia deixar de reparar em que já lá tinham andado os ladrões.» (…) «Todos quantos intervêm na vida dos outros, quer seja no seu favor ou contra, são afinal de uma cobardia que escapa à observação dos melhor atentos. Cobardes por duas razões: primeira, por serem incapazes de se reconhecerem e darem a conhecer o seu próprio caso pessoal para a aceitação geral; segunda, porque, ao intervirem na vida dos outros, quer seja no seu favor ou contra, são incapazes também de abnegar da sua própria pessoa. Se alguém decide da sua vida para servir os outros e não renuncia a si mesmo, em que poderá então ser equânime e admirável, justo e elucidativo? Respeitemos os que a tanto se afoitaram e se decidiram, mas desprezemos os que o fingem. A condição para saber ver ao longe é estarmos dentro de nós se se trata do próprio, ou de ter renunciado a si mesmo se se trata dos outros.
Moralidade deste romance: Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar».
Fernando Pessoa representa o seu tempo de um modo singularíssimo, ligando a leitura do universo à circunstância de ser português – esse curioso casamento entre a história de um povo que o escritor procura interpretar e uma reflexão cosmopolita e universalista, que assume com todas as consequências, é uma característica única, que torna fascinante a leitura de uma obra caleidoscópica, que não pode ater-se a uma cultura particular. Como disse Eduardo Lourenço no fecho do seu imprescindível «Pessoa Revisitado», o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro». Estamos em Pessoa perante uma totalidade fragmentada. A relação entre o ortónimo pessoano e os principais heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o semi-heterónimo Bernardo Soares do “Livro do Desassossego”) corresponde a uma curiosa representação da pluralidade do universo.
«Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade» - afirmou Pessoa. Compreende-se que os amigos presencistas de Pessoa tenham lamentado a publicação da «Mensagem» antes do outro manancial poético do autor. O poeta não deixou de concordar junto de Adolfo Casais Monteiro, mas preferiu falar de um momento crítico de «modelação do subconsciente nacional». Mas será Eduardo Lourenço quem melhor articulará a necessidade crítica da consideração dos mitos pessoanos com a interrogação de Antero de Quental sobre «as causas da decadência dos povos peninsulares», com a obrigação crítica da Geração de 1870 e em especial de Oliveira Martins, com a vontade de renascimento de «A Águia» e com o ensaísmo seareiro. Pessoa disse sobre «Orpheu» a Cortes-Rodrigues que tinha como objetivo «agir sobre o psiquismo nacional», trabalhando-o por «novas correntes de ideias e emoções», sendo uma espécie de «ponte por onde a nossa Alma passa para o futuro». Há um pequeno texto de Fernando Pessoa, em «Sobre Portugal», que trata do provincianismo. Muitas vezes tem sido referido e citado, talvez como um juízo definitivo, que não é. Do que se trata é da definição de uma atitude crítica contrária do conformismo. «O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. A síndroma provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade da ironia». É fundamental sermos capazes de nos vermos projetados no espelho da crítica. A poesia encarrega-se de perscrutar diversos caminhos. Mais do que encontrar soluções, que não cabem à arte, trata-se de iluminar e de ajudar a ver.
E Almada Negreiros? Eduardo Lourenço fala dele como o “único autêntico modernista em sentido estrito de sintonizado com o vanguardismo (ou sucessivos vanguardismos) da época”. Se virmos o percurso de Almada compreendemos que esse gosto absoluto da novidade o leva a crer, menos na lógica dos sistemas, e mais na força da criação. Nesse sentido, quis ser ele mesmo, permanentemente interrogante, ávido da busca. “Os sistemas e os programas servem para conduzir e jamais para criar”. “A Arte não pode viver antes de criar a sua própria autoridade de autonomia dentro da coletividade”. Dêem-se dois exemplos: os painéis da Gare da Rocha do Conde de Óbidos (1945-48) e “Começar” na Fundação Gulbenkian (1968-69). Estamos perante duas abordagens que representam facetas complementares da mesma atitude. A verdade é que estamos diante de obras-primas da pintura portuguesa de sempre, que Almada considerou como as mais próximas da sua própria capacidade criadora, “pinturas da nossa solidão”. Na composição “Começar” temos uma verdadeira síntese de vida e de incessante pesquisa, dando continuidade à tapeçaria “O Número” executada para o Tribunal de Contas (1958). A obra pretende demonstrar que “a arte precede a ciência, a perfeição precede a exatidão”. Afinal, “a perfeição contém e corrige a exatidão”. A paixão de Almada pelo teatro invoca ainda a preocupação do encenador, designadamente quando dispõe as figuras nos painéis, como o da Rocha do Conde de Óbidos. É a sociedade heterogénea, multifacetada e inconformista que se manifesta. José-Augusto França fez a síntese adequada: “Almada situa-se na história da arte portuguesa contemporânea como uma figura única, no seu valor estético tanto quanto no valor referencial da sua mensagem poética”. A expressão “português sem mestre” caracteriza plenamente o artista completo que procurou abrir caminhos novos – “chegar a cada instante pela primeira vez”.
E Amadeo? Se os heterónimos de Pessoa dão a multiplicação de uma personalidade criadora, que interpretou como ninguém os novos tempos de uma modernidade contraditória e inesgotável, foi a capacidade de Amadeo de Souza-Cardoso dar um sentido universal a uma perspetiva multifacetada, produzida num tempo relativamente curto, impressiva e assente em raízes fecundas, que revelam uma espécie de recriação ou reconstrução da realidade e do mundo. Na revista «Portugal Futurista», Álvaro de Campos coincide com Amadeo - «só tem direito a exprimir o que sente em arte, o indivíduo que sente por vários». Almada Negreiros disse que Amadeo «é a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX» - e, maravilhado, deu nota de como partiu de uma identidade próxima para a tornar global - «toda a arte reflete o seu rincão natal. E nunca é o rincão natal o que o pintor retrata. O seu rincão natal são as próprias cores. Foram estas cores que teve para começar a sua mensagem de poeta».
Este artigo assume-se a vivência direta e imorredoira da amizade que uniu as famílias de Almada Negreiros e a minha própria família, ao nível de Almada e dos meus pais: o que permitiu um relacionamento direto e constante, que hoje constitui referência existencial e cultural, o que muito me apraz salientar. E importa então referir que muitas e muitas vezes tive o gosto inesquecível de falar com Almada sobre inúmeros assuntos, e em particular, o que neste contexto amplamente se justificará, sobre teatro.
Aliás, recordo, no artigo anterior fiz referências ao teatro de Almada Negreiros, desde logo sublinhando a amizade que, em termos pessoais/familiares, me relacionava com Almada. E essa amizade, que vinha de família, permitiu-me inúmeras vezes, e inesquecíveis vezes, falar com Almada designadamente sobre a sua dramaturgia: e não só, pois Almada, alem de grande amigo de família, era um conversador inesquecível!
Ora, vimos no artigo anterior, os dois grandes temas da dramaturgia de Almada são ”A Tragédia da Unidade” e “1+ 1=1”. E, tal como referimos, entre 1912 e 1965 Almada escreveu 15 peças, das quais chegaram até nós na íntegra 7 e algumas falas de mais uma. Nesse sentido, podemos então citar, como peças completas e assumidas, “Antes de Começar”, “Pierrot de Arlequim”, “Portugal”, “Deseja-se Mulher”, “O Público em Cena”, “Galileu, Leonardo e Eu” e “Aqui Cáucaso”, além de algumas falas de “23, 2º Andar”.
Ora bem: o grande tema deste teatro é, já o dissemos, a paradoxo de “1+1=1”. Mas independentemente do paradoxo da expressão numérica, o que encontramos é a convergência de situações que em si mesmas parecem opostas: daí, o conteúdo paradoxal desta dramaturgia, que confirma em sucessivas falas o paradoxo da expressão: sendo certo que no ponto de vista rigorosamente matemático, 1+1 não é igual a 1...
E precisamente, esse paradoxo surge em situações e intervenções diversas mas coerentes, ao longo desta vasta e interessante dramaturgia: já tivemos aliás ensejo de o escrever e agora retomamos alguns exemplos.
Assim, em “Antes de Começar”: “o que uma pessoa é por fora é igual por dentro”.
A propósito de “Pierrot e Arlequim: “No teatro todos são um”; “toda a arte que passa do particular para o geral faz imediatamente teatro”; “desde o princípio do mundo até hoje não houve mais de duas pessoas: um chama-se a humanidade e a outra o indivíduo. Uma é toda a gente e a outra uma pessoa só”; “Pierrot é a tragédia do homem e o seu Deseja e Arlequim é exatamente essa mesma tragédia”.
Em “Portugal” há uma convergência de posições: “Tu e eu temos a mesma ideia. Ambos queremos a mesma coisa”.
Em “S.O.S.” afirma-se enfaticamente que “Temos de colaborar todos em edificar a obra única por cima de todas as cabeças”, sublinhando convergência de “todos” com “a obra única”.
E em “Protagonistas” o grafismo de “1+1=1” surge como tal em cena e é descrito: “a unidade é igual à personalidade coletiva mais a personalidade de cada indivíduo. Esta é, senhoras e senhores, a tragédia da unidade”...!
E finalmente (por hora!...), cita-se “O Público em Cena” que constitui como uma síntese de todas estas referências e que aqui quero qualificar como filosóficas: “hoje, o público subirá aqui à cena e vós, senhores autores dramáticos, ocupareis hoje aí os vários lugares do público”.
Insista-se: ficamos “por hora” aqui. Mas o teatro de Almada Negreiros justificará sem dúvida mais referências. Pois o teatro, diz, “é a arte de pôr a todos em comunicação nos mesmos sentimentos”!
Assinalamos aqui os 50 anos da morte de Almada Negreiros (1893-1970). Importa desde já destacar o relacionamento pessoal-familiar decorrente de uma longa amizade de família em que desde sempre participei. E que de certo modo reforcei através de contactos especificamente destinados a acompanhar toda uma vasta série de artigos e de textos publicados na imprensa e em livros, que ao longo de décadas fui escrevendo sobre o teatro de Almada, e em que tive o gosto e o proveito da sua informação e apreciação.
De tal forma que na minha “História do Teatro Português” dediquei a Almada um conjunto de referências, em capítulo autónomo, a partir de temas que Almada introduz em diversos aspetos da sua vasta e variada criação artística, e que, no que respeita ao teatro, representam uma expressão-síntese da sua obviamente também vasta e variada dramaturgia.
Refiro então, especificamente, dois temas basilares na coerência e continuidade dessa dramaturgia. São eles “A Tragédia da Unidade” e “1+1=1”. Insisto: trata-se de expressões que em si mesmas, dispersas que sejam ao longo da variada obra do autor (e aqui referimo-nos sobretudo ao teatro) constituem como uma síntese abrangente desse vasto e notabilíssimo conjunto de peças e exercícios de espetáculo teatral.
Esclareça-se entretanto que nem todas as peças referidas chegaram até nós: assim, entre textos publicados e textos evocados, temos um conjunto de 15 títulos, que enunciamos com a indicação da respetiva “sobrevivência”:
“O Moinho” (1912) que desapareceu, “23, 2º andar” (1912) de que restam algumas falas, “Pensão de Família”, “A Civilizada”, “Os Outros” (este de 1923), “S.O.S” (1928-1929), “O Mito de Psique” (1949), “Protagonistas” (1930), que se perderam.
Na íntegra, ficou “Antes de Começar” (1919), “Pierrot e Arlequim” (1924), “Portugal” (1924), “Deseja-se Mulher” (1931) de que se conhece uma versão em inglês traduzida por David Lay, “Galileu, Leonardo e Eu” (1965) e “Aqui Cáucaso” (1965).
No ponto de visita estilístico, pode-se dizer que esta obra, no seu vasto conjunto, concilia a modernidade indiscutível da criação artística global de Almada com a adaptação de estilos estético-literários diversos. Independentemente do estilo e do linguajar teatral dominante, o que mais se nota neste conjunto heterogéneo será o sentido de espetáculo que, esse sim, liga toda esta dramaturgia: e vale então a pena referir que esse “sentido do espetáculo”(e agora pomos a expressão entre aspas) constitui característica global e constante da vastíssima e diversificadíssima obra do autor.
Aliás, basta ter presente o sentido de comunicabilidade cénica da sua obra plástica, poética, literária, dramática: Almada Negreiros é sempre Almada Negreiros tanto como artista criador como grande e bom amigo e conversador...
Ora, tal como escrevi na “História do Teatro Português” acima citada, o teatro surge como uma espécie de síntese da sua criação artística.
Aí é referido Almada como artista imenso, aventureiro do espírito, descobridor e inventor esteta, para quem a síntese dramatúrgica é corolário lógico da sua intuição e saber. A arte plástica dá-lhe o senso dos volumes, cores e posições relativas; a arte rítmica, o poema, o segredo do verbo, a música das falas, o mistério do lirismo subjacente. E o que falta para criar teatro, busca-o no talento do artista, na sua sensibilidade intelectual. (fim de citação).
Acrescento agora que o grande tema de unificação desta obra pode ser identificado precisamente na expressão paradoxal de 1+1=1. Veremos a concretização desde lema na obra dramática e dramatúrgica de Almada Negreiros.
Nesta alternativa entre teatros-edifícios e teatros-textos, fazemos hoje referência ao “Antes de Começar” de Almada Negreiros, escrita há exatamente um século e que constitui a mais antiga peça "sobrevivente" do teatro criado pelo autor. Isto porque antes Almada teria escrito em 1912 dois textos teatrais desaparecidos, “O Moinho” e “23, 2º Andar” , tal como se perderam “Pensão de Família”, “A Civilizada”, “Os Outros” e cenas de peças que felizmente sobreviveram, algumas em versões posteriores.
E por isso, “Antes de Começar”, título que assume valor simbólico, constitui a peça mais antiga de Almada que chegou até nós. Justifica-se assim esta referência ao centenário, sendo certo que a ela nos temos referido numa perspetiva dramatúrgica global, enriquecida, digamos assim, pelo conhecimento direto do teatro de Almada e do próprio autor, amigo de família.
E importa ter presente a simbologia que Almada atribui à sua obra dramatúrgica, como aliás à sua vastíssima e excecionalíssima criação artística e cultural. Orgulho-me pois de o ter conhecido bem.
E tenha-se então presente que o teatro de Almada Negreiros cerca de 15 peças, assume no seu conjunto a simbologia do lema que também é identificável na restante obra criacional: “1+1=1” marca esta expressão dramática que, afinal, surge também na restante, vastíssima, variadíssima e qualificadíssima obra do autor.
E recordo, a propósito, que na pintura do pórtico da Faculdade de Letras de Lisboa, da autoria de Almada, “Todo o Mundo” é igual a “Ninguém”.
“Antes de Começar” é um diálogo de bonecos que assumem a luta de comunicação, busca de entendimento, a generalização da individualidade para o conjunto humano, em suma, a passagem do particular para o geral, raiz e essência da obra conjunta de Almada.
Tal como já noutro lado escrevemos, trata-se afinal de uma luta pelo entendimento, um esforço de comunicabilidade, a já referida passagem do particular para o geral numa expressão identificativa que em si mesma se consubstancia no simbolismo de “1+1=1”. É pois nessa passagem a identificação dos dois personagens que aparentemente seriam diferentes, mas não são.
E essa constatação permite-nos reproduzir um conjunto de citações retiradas desta e de outras peças de Almada, e que marcam a unidade tanto da sua obra teatral como da sua inigualável criatividade artística, aqui na fórmula do texto e do espetáculo.
Pois, como veremos em próximo artigo, esta conjunção estética e filosófica marca todo o conjunto do teatro de Almada Negreiros, no total das 15 peças, das quais se perderam diversas, e cenas de outras que completa ou parcialmente sobreviveram: mas em qualquer caso, o conjunto marca pela coerência, pela qualidade e pela homogeneidade estética de forma e conteúdo!
Fazemos hoje referência um livro muito recente: “100 Futurismo”, se intitula, organizado por Dionísio Vila Maior e Annabela Rita (Edições Esgotadas., 2018). Trata-se de um muito extenso volume de cerca de 650 páginas, que reúne textos de 50 autores, entre os quais com muito gosto me incluo com uma evocação crítica sobre “Almada Negreiros, um Dramaturgo Futurista”, resumindo estudos que durante décadas efetuei, redigi e publiquei, sobretudo baseados na profunda amizade familiar e na também profunda e vastíssima admiração que Almada motivou e significou. Perdoe-se esta nota pessoal...
No que respeita aos Teatros - edifícios citados no livro, saliento agora o estudo de excelente qualidade, da autoria de Ana Isabel de Vasconcelos, intitulado “Contra o Gosto Público que Sustenta o Teatro: Almada e o Panorama Teatral de uma Época”.
A propósito da chamada Conferência Futurista que Almada Negreiros pronunciou em 17 de abril de 1917 no então chamado Teatro República, antes Teatro D. Amélia e depois Teatro e Cinema São Luiz, Ana Isabel Vasconcelos refere e analisa um conjunto de teatros que, já na transição dos séculos XIX/XX, marcaram a vida teatral portuguesa, tanto no que respeita aos edifícios em si mesmos, com aos repertórios mais marcantes.
Desde logo o Teatro D. Amélia - República- São Luiz já citado. Mas também o Teatro Ginásio, o Teatro Avenida, o Teatro da Trindade, o Eden então Teatro (e episodicamente voltaria a ser) o Teatro Apolo, e ainda o que a autora denomina, e bem, “palcos de 2ª, como o Fantástico e o Povo (que) apresentam revistas”...
Citamos o comentário que Ana Isabel Vasconcelos faz ao teatro produzido por autores portugueses.
“Nessa época, os dramaturgos portugueses têm uma relação muito próxima com o palco. As suas criações são sobretudo enformadas pelo que tradicionalmente agrada ao público e pelas escolhas dos empresários, ambos tantas vezes responsabilizados – ainda que por razões diferentes - pela falta de inovação e de renovação dos palcos portugueses. Numa lógica mercantilista, em que o nível cultural do “consumidor” é muito baixo, torna-se difícil compatibilizar o horizonte de expetativas com propostas dramatúrgicas mais modernas. Sempre que se arriscaram tendências de teor inovador, os resultados foram tímidos e de pouca duração”. E em nota: “Basta lembrar as experiências do Teatro Livre, do Teatro Moderno e já em 1925, o Teatro Novo de António Ferro, que, apesar de inovadoras não conseguiram resistir”.