Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877) simbolizam o Portugal moderno de oitocentos, nascido das sequelas da ação do artífice do nosso “século das Luzes”, Sebastião José, o marquês de Pombal, das resistências da “Viradeira”, das repercussões da Revolução francesa, chegadas até nós pelas invasões napoleónicas, do “francesismo”, nascido da reação ao poder inglês, agravado pelo facto de D. João VI estar ausente e de o Rio de Janeiro ter-se tornado o polo político mais influente do Reino Unido. Não esqueçamos o importante papel desempenhado por D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna (Alcipe), e pelo seu salão literário, bem como pela Nova Arcádia, da qual fizeram parte Elmano Sadino (Bocage), Nicolau Tolentino ou Filinto Elísio. Combatendo os excessos do barroco, é o neoclassicismo que se manifesta, mas também a transição para o romantismo. O jovem Herculano, discípulo dos Oratorianos das Necessidades, foi um dos frequentadores do salão de Alcipe. É neste caldo de cultura que germina a Revolução de 1820 e o constitucionalismo português. E se D. João VI regressou a Portugal apressadamente, deixando no Rio a semente da independência, que D. Pedro concretiza nas margens do Ipiranga, o certo é que jamais irá dominar a situação interna, sendo provavelmente envenenado depois de se ter deixado enredar numa complexa teia de um absolutismo em que não acreditava – desde a Vilafrancada até à Abrilada. A história política que se segue é bem conhecida e só terminará no virar da metade do século… O Imperador do Brasil, D. Pedro, outorga a Carta Constitucional portuguesa (1826) e propõe uma solução de compromisso a seu irmão D. Miguel, cabeça da reação tradicionalista. D. Maria da Glória, a filha adolescente de D. Pedro, casar-se-ia com o tio… Mas o ambiente europeu foi mais favorável à aventura radical dita legitimista.
Não houve compromisso e a guerra civil (1828-1834) tornou-se inexorável e os jovens românticos Almeida Garrett e Alexandre Herculano tornaram-se resistentes ativos, ligando o compromisso cívico, o pensamento e a criação literária. A fidelidade às tradições históricas e populares exigia o combate pela liberdade. Garrett procura as raízes nacionais na noite dos tempos. Herculano encontra no romance histórico e na moderna historiografia (assente no rigor crítico e no estudo das fontes coevas) as razões para uma nacionalidade livre, baseada na vontade do povo e não em qualquer ilusão providencialista. Garrett vive a vida, segue a moda, é o jurista brilhante que escreve as leis de Mouzinho da Silveira, o maior orador parlamentar do seu tempo (ao lado de José Estevão), o fundador do moderno teatro português, o poeta e o romancista renovador. Herculano assume a austeridade, torna-se uma figura moral, um exemplo cívico, a sua escrita é irrepreensível, madura, mas não transige com a popularidade. «Almeida Garrett e Herculano ‘refundaram’ Portugal porque, pela primeira vez, e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o País esteve em sérios riscos de perecer» (Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, Gradiva, 1999, p. 27). Só uma atitude de abertura e cosmopolitismo nos permitiria contrariar o fatalismo. A nação queria-se liberal e constitucional para salvar a independência.
«As Viagens na Minha Terra» retratam um País dividido e desiludido, depois da vitória liberal em Évora Monte (1834). Os ideais modernizadores, só no início da década de 30 contaram com um ambiente europeu favorável, mas depararam internamente com uma forte resistência dos interesses instalados, das invejas, da mediocridade. Em setembro de 1836 ganhou a corrente mais avançada, simbolizada por Passos Manuel. Mas em 1842 venceu a linha oposta, representada por António Bernardo Costa Cabral. E reabriu-se o clima de guerra civil, que só terminou em 1851, sob a inspiração do próprio Alexandre Herculano.
O que se deveria fazer? Enterrar o machado de guerra e construir uma nova ordem constitucional, na qual a velha Carta fosse enxertada com a lógica democrática de 1822 e de 1838. E assim aconteceu. A Regeneração e os melhoramentos materiais poderiam permitir ao País sair do atraso e da mediocridade. Iniciou-se então um longo período de paz civil, baseada na rotação entre as duas principais forças políticas – regeneradores e históricos. Mas, com o tempo, a rotina gerou a descrença. Aliás, a solução, uma vez concretizada, não viria a satisfazer Herculano. Mas com Fontes Pereira de Melo (o «António Maria», de Rafael Bordalo Pinheiro) ao leme houve um tempo de estabilidade e de progresso. É o tempo que Cesário Verde descreve com contornos novos: «Batem os carros de aluguer, ao fundo,/ Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!/ Ocorrem-me em revista exposições, países:/ Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!» («Sentimento dum Ocidental»). É a modernidade e a tentativa do cosmopolitismo. Mas que sociedade está por baixo desta visão moderna? O Portugal profundo, descrito por Camilo Castelo Branco, ele mesmo figura contraditória, cruzamento da tradição e do inconformismo. Silvestre Silva (de “Coração, Cabeça e Estômago”), Calisto Elói de «A Queda de um Anjo» ou os heróis de “Amor de Perdição”, Teresa e Simão, complementam a placidez (não destituída de tensão) de «A Morgadinha dos Canaviais», de Júlio Diniz, com a figura tutelar e atualíssima do Conselheiro Manuel Bernardo, pai de Madalena, sem esquecer o retrato do caciquismo eleitoral de Joãozinho das Perdizes… E se falamos de Júlio Dinis, o romancista português mais influenciado pelo romantismo britânico, temos de citar “Uma Família Inglesa”, o melhor retrato do contrato económico do tratado de Methuen, bem como “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, representação de uma sociedade que se esgotava nas raízes tradicionais e que precisava de sangue novo para corresponder aos desafios da modernização na economia e nas mentalidades, bem evidenciada no papel de Berta e de Tomé da Póvoa.
Recorde-se ainda o escrito de Almeida Garrett “Portugal na Balança da Europa – Do que tem sido e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do Mundo Civilizado”. Trata-se da reflexão de um homem atento ao seu tempo sobre a evolução europeia, a emergência dos Estados Unidos da América na cena mundial e o lugar de Portugal na ordem mundial. E vemos como um ativista liberal olha a realidade nacional e internacional, procurando antever como os portugueses poderiam responder às novas circunstâncias. A obra foi escrita entre 1826 e 1829 e publicada em 1830. Acompanha a atribulada evolução nacional nesse período – desde a morte de D. João VI até ao início da guerra civil que opôs D. Pedro e D. Miguel. Depois de viver em França, como correspondente da Casa Laffitte, Garrett regressa a Portugal, a seguir à outorga da Carta Constitucional (“moldada pelas mais avisadas e prudentes da Europa”), para se dedicar ao jornalismo. Funda e dirige o jornal “Portugal” e passa três meses no Limoeiro por delito de opinião… D. Miguel regressa a Portugal e Garrett é obrigado a iniciar o seu segundo exílio – em Inglaterra, em França, na Ilha Terceira, onde colabora ativamente com Mouzinho da Silveira, regressando com Herculano como soldado do Batalhão Académico, como um dos bravos do Mindelo, no desembarque da praia do Pampelido.
No dizer de Ramalho Ortigão, encontramos em Garrett “um mensageiro do novo espírito europeu”, que se interroga sobre o que Portugal deveria ser na nova balança da Europa. Havia circunstâncias novas: a emancipação da América, a revolução de França e o engrandecimento da Rússia. Na balança antiga, Portugal era contrapeso necessário ao equilíbrio das três potências do Oeste: França. Inglaterra e Espanha. A mais interessada nesse equilíbrio havia sido a Inglaterra. Por isso, sustentou e garantiu a independência portuguesa.
Mas essa independência não era real. E Garrett parte do século XV, do tempo em que os papas e os imperadores haviam dado cabo da liberdade em Itália; em que, na Alemanha, a república federativa das pequenas potências que a compunham sucumbia perante a Casa de Áustria, antiga, inveterada e constante inimiga de toda a independência e liberdade; em que na Espanha os foros de Aragão e de Castela ou eram afogados em sangue ou caíam em desuso e em que em Portugal diminuía o poder dos nobres e aumentava o do rei e o do clero, espaçando-se a convocação de Cortes.
A descoberta da América veio alterar a balança da Europa. A influência do Mundo Novo tornou-se vantajosa. A agonia dos déspotas despontava, ainda que na Europa as tendências fossem inquietantes – ameaçando perseguir na América a liberdade foragida, através da “remessa periódica de parasitas”. Mas a América reage contra o despotismo europeu. Garrett elogia as virtudes americanas, de uma “confederação geral dos oprimidos contra os opressores”. E encontra o princípio sacrossanto segundo o qual “a liberdade é a única e sólida base de toda a felicidade das nações”. E diz-nos que a pureza do cristianismo é um dos melhores e mais evidentes fatores de consolidação do sistema da liberdade americana, ao lado da descentralização e do equilíbrio de poderes – autêntica “pedra filosofal das repúblicas”. Alexis de Tocqueville vem à nossa memória. E são as Américas e o seu apego concreto à liberdade que induzem a revolução francesa e as suas consequências. Depois houve as invasões. Bonaparte foi o artífice. E “a Europa já escrava ainda duvidava da sua servidão”. Napoleão encarnou a ambiguidade entre os princípios da revolução e uma prática de liberticida. Resistiu a Inglaterra de Pitt? É certo. Mas a causa da “quietação da Inglaterra no meio do bulício e da efervescência geral” deveu-se apenas ao facto de a nação já ser livre… E Garrett não poupa críticas à indiferença e à conciliação da Albion com a política mais retrógrada da Europa… Mas, a liberdade e a civilização triunfaram, e “o apóstata da sua causa foi debelado e punido”.
Garrett elogia a revolução de 1820. Portugal sem rei, sem comércio, sem indústria, sem administração, “descera ao mais vilipendioso estado”. As revoluções peninsulares (1812 e 1820) foram complementares – ambas “moderadas e pacíficas” e ambas conciliadoras com os tiranos, pois cederam para que cedessem. O erro capital de 1820 foi ter a revolução deixado as coisas como achou sem mudar senão os homens. “Como havia o povo de pugnar por um sistema que nem conhecia, nem sentia?”. A revolução foi militarmente construída e militarmente destruída. Assim se pode entender a contra-revolução de 1823 e a Abrilada de 24. A Santa Aliança imperava e a Europa sucumbiu na causa da liberdade, ao contrário da América. Ganharam o despotismo e a oligarquia. O estado do mundo civilizado em 1829 era, assim, perturbador: Luís XVIII reinava em França, onde a causa da humanidade podia ser ganha ou perdida (estava-se em vésperas da revolução de Julho de 1830); nos Países Baixos vivia-se um prodígio de conciliação de duas realidades diferentes e contraditórias (em 1830 nasceria a Bélgica); a Inglaterra estava estacionária enquanto outros andavam; a boa administração e o povo ilustrado da Prússia precisavam de mais liberdade; a Dinamarca era o único reino legitimamente absoluto da Europa; a Suécia, “tranquila e feliz”, era o “país natural das revoluções”; o governo russo (morto czar Alexandre) tinha medo à civilização e o governo austríaco tinha-lhe ódio; a Itália era toda escrava; o futuro da Grécia determinaria o destino de três impérios, o austríaco, o russo e o turco; em Madrid fazia-se o que apenas se desejava em Paris e em Portugal havia ilegitimidade, incerteza e confusão. A América do Norte olhava as misérias do velho mundo do alto do monte. Na América latina, a liberdade tardava porque não se passava facilmente de servo a cidadão e no Brasil havia uma estranha república sob forma de império (com que Garrett pouco se preocupa).
Portugal tem um único fim – ser livre. Daí restar-lhe optar entre uma independência verdadeira, uma independência com liberdade, e uma união com a Espanha. As instituições que conviriam ao País deveriam ser democráticas, baseadas no maior número, temperadas com o elemento aristocrático. Garrett defende a monarquia representativa e o constitucionalismo, em lugar do absolutismo e do radicalismo democrático. Insiste, por isso: na coerência constitucional da velha lei fundamental imemorial do Antigo Regime, que pecava pela forma, faltando-lhe regularidade, nexo e harmonia; na restauração dos antigos princípios da Constituição Portuguesa concretizada em 1822, apesar de haver uma democracia sem elemento aristocrático; e na moderação e equilíbrio da Carta Constitucional de 1826. No entanto, o escritor encontra defeitos e omissões na Carta - que o levarão em 1836 e depois de 1842 a pugnar pela verdadeira Regeneração, que chegará em 1851. Faltava o direito da coroa de dissolver a Câmara de deputados, não havia uma autêntica Câmara hereditária, confundiam-se funções administrativas e judiciais do poder local e minguavam garantias da Constituição: liberdade de imprensa, instrução pública, melhoramentos nas colónias, proteção do comércio e emancipação da indústria. Esse constitucionalismo deveria impedir que a liberdade e a independência fossem sacrificadas por uma oligarquia parasitária… E assim se poderia evitar a união com a Espanha, que Garrett considera um recurso extremo e desesperado…
ATORES, ENCENADORES (V) DOIS EXEMPLOS DA TRANSIÇÃO DO SÉCULO por Duarte Ivo Cruz
Vimos no artigo anterior o papel essencial de Garrett na estruturação do teatro português, através da reforma de 1836. Nesse diploma, encomendado, recorde-se, por Passos Manuel e transformado em Portaria assinada por D. Maria II em 15 de novembro de 1836, estava prevista a criação de uma Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional: e referia-se especificamente no texto legal a necessidade de construção de um edifício, mas também, a estruturação de uma companhia que garantisse certa estabilidade e uma base de ação cultural ao teatro português, na dupla dimensão de espetáculo mas também de criação dramatúrgica.
Trata-se do que viria a ser e ainda hoje felizmente é, apesar do incendio devastador de 1964, o Teatro de D. Maria II.
Demorou a execução deste ponto específico do programa de Garrett. Foi criada uma “sociedade de capitalistas” que teve no Conde de Farrobo o primeiro subscritor. O processo arrastou-se: mas em 13 de abril de 1846 sobe à cena, no Teatro de D. Maria II, com foros de grande acontecimento cultural e urbano, uma peça hoje completamente esquecida: “Álvaro Gonçalves, o Magriço ou dos Doze de Ingraterra” de Jacinto Aguiar Loureiro, este tão esquecido como a peça… Em qualquer caso, vem dessa época, com óbvia oscilação de qualidade e continuidade, uma ação referencial na história moderna do teatro português.
E aqui, há que evocar alguns atores que marcaram não só a continuidade cultural e profissional do teatro em si, como, através de mais de um século, a própria criação dramatúrgica e arte do espetáculo em Portugal. Assim, encontramos por exemplo uma continuidade de décadas na companhia inicialmente denominada Rosas e Brazão, que se manteria no D. Maria II, com óbvias alterações de elencos e também, a partir de certa altura, da própria constituição societária e artística, e que constituiu a base artística de uma notável transição, a nível de artistas de cena e de dramaturgos, do teatro romântico para o teatro realista-naturalista.
É que, com alternâncias óbvias dada a instabilidade da profissão e da exploração teatral, encontramos, na época e em certos casos, como veremos adiante, quase até aos nossos dias, uma continuidade e permanência no Teatro D. Maria II desde finais do século XIX meados do século XX.
Veja-se a carreira de Eduardo Brazão. Ingressa em 1875 no D. Maria, onde se mantem até 1898, integrando a Companhia Rosas e Brazão, “uma das mais célebres e ilustres de toda a história do teatro português” escreveu Luiz Francisco Rebello (in “Dicionário do Teatro Português” pág. 110). Prosseguiu uma carreira relevante de ator e encenador. E saliento o destaque na revelação, encenação e interpretação de autores portugueses, numa abrangência que o coloca na primeira linha da renovação da dramaturgia na transição do romantismo para o realismo: D. João da Câmara, Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, Júlio Dantas, Eduardo Shwalbach – eram os dramaturgos modernos da época. Brazão voltaria mais tarde intermitentemente, ao D. Maria II.
E no D. Maria II fez grande parte da carreira a grande atriz Palmira Bastos que, com talento indiscutível, marcou, durante décadas o meio teatral português. Estreou-se em 1890, com 15 anos, no Teatro da rua dos Condes, que já aqui evocamos. Em 1894, recém-casada com Sousa Bastos, também muitas vezes aqui citado como autor do “Diccionário do Theatro Português” (1908) inicia uma carreira de atriz-cantora de opereta que a leva em tournée ao Brasil. Percorreu depois as principais companhias portuguesas.
Em 1931 ingressa na Companhia Rey Colaço Robles Monteiro: e aí, com uma breve interrupção em 1936/37, mantem-se em atividade destacada até ao incendio de 1964. Mas ainda trabalhou em 1966, tendo falecido no ano seguinte. Cito o protagonismo em “As Arvores Morrem de Pé” de Alexandre Casona, creio que o ultima grande papel que desempenhou com uma energia que ficou na memória do jovem crítico que na altura eu era…
E cito também alguns dos dramaturgos portugueses seus contemporâneos que Palmira Bastos estreou ou interpretou: Olga Alves Guerra, Vasco Mendonça Alves, Virgínia Vitorino, Ramada Curto, Júlio Dantas, Costa Ferreira, Joaquim Paço d’Arcos, Augusto de Castro…
Esteve em cena até aos 89 anos. E sobre ela escreveu, numa prosa muito da época, D. João da Câmara, o que só por si atesta a longevidade da carreira: “Foi brilhante a sua aurora e no carro triunfal, mais rápido do que Apolo, no tempo que dura um relâmpago, trepou até ao Zénite e por lá se deixou ficar”!
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 07.01.15 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (IV) GARRETT ATOR por Duarte Ivo Cruz
Podemos dizer que o teatro português inicia a sua modernização com Garrett? De certo modo, sim: porque o romantismo nasce com ele, prolonga-se por um excesso ultrarromântico ao longo do século XIX e só atinge as portas do realismo duro e puro com “Os Velhos” de D. João da Câmara, em 1893… muito embora: a genialidade de Garrett faz adivinhar, em certas peças e em certas cenas e ainda na copiosa análise e teorização estético-dramática que produziu, os novos caminhos do teatro português.
E mais ainda: Garrett assume uma posição transversal na arte global do teatro. Foi o grande dramaturgo que se conhece, e foi-o desde a juventude. Mas foi também, na solicitação que lhe é feita, em 1836, por Passos Manoel, o verdadeiro inovador (modernizador?) da estrutura teatral portuguesa, através da reforma que elaborou e que abrange com um extraordinário sentido de modernidade, a estrutura compósita e complexa da arte do teatro, nas suas componentes: o ensino, o espetáculo, a formação de atores, o estímulo à produção dramatúrgica, a criação de espaços/edifícios e até a intervenção do Estado – e tudo isto, repita-se, em 1836, e numa globalidade que em rigor dura até hoje.
E senão, vejamos rapidamente o que integra a reforma estrutural de Garrett consubstanciada em três diplomas legais:
Portaria de 28 de setembro de 1836 – encarrega Garrett de apresentar “um plano para a fundação e organização de um teatro nacional”;
Relatório datado de 12 de novembro de 1836, assinado por Garrett;
E finalmente, Portaria de 15 de novembro de 1836, assinada por D. Maria II e referendada por Passos Manoel, criando as bases da reforma do teatro português na sua globalidade: Inspeção Geral de Teatros e Espetáculos Teatrais, Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional, Criação do Conservatório Geral de Arte Dramática, Criação de uma Companhia Nacional Concursos do Conservatório, Proteção dos Direitos Autorais, Politica de Subsídios.
Tudo isto foi concebido e redigido por Garrett, que aliás não se poupa a autoelogios. E realmente, todas estas instituições com as óbvias modernizações e alterações duram até hoje!
E mais: ao rever a dramaturgia de Garrett, e não necessitamos de nos concentrar apenas no 2º ato de Frei Luís de Sousa, encontra-se uma modernidade que a faz antecipar décadas e estéticas e até pragmáticas teatrais.
Ora bem: será interessante lembrar que Garrett foi ator e encenador, passe a carga modernista deste último termo. E desde muito cedo. Assim em 1819, vemo-lo em Coimbra, escolar de Leis como então se dizia, a dirigir ensaios da sua primeira peça completa, “Mérope”, ainda marcada por um estilo clássico anterior à renovação romântica. Não foi representada na altura, mas Garrett por essa época já se lançava numa primeira versão de “Amor e Pátria”, que viria a dar a “D. Filipa de Vilhena”.
Em 1821 intervém como ator no “Catão”, levado à cena no Teatro do Bairro Alto. E surge também no elenco do “Imprompeto de Sintra”, peça representada em 8 de abril de 1822 “na Quinta do Cabeço em Sintra”. E entretanto, em Coimbra, são referenciadas intervenções suas, declamando versos ou interpretando pequenos papéis em récitas.
E refere-se agora o garrettiano “Auto de Gil Vicente”: Teófilo Braga escreveu que “o próprio autor teve de ensaiar no Teatro do Salitre, vencendo a rudez dos atores, foi apresentado em 15 de agosto de 1838, quando estava mais acesa a luta da reação de carlistas contra setembristas; a impressão do público foi de deslumbramento”.
E mais acrescenta Teófilo: “No Teatro da Quinta do Pinheiro, junto a Sete Rios, pertencente a Duarte de Sá, fez-se em 4 de julho de 1843 a memorável primeira representação de “Frei Luís de Sousa”; aí brilhou com o seu extraordinário talento D. Emília Krus, desempenhando o papel de D. Madalena de Vilhena; o próprio Garrett sujeitou-se a representar o personagem do escudeiro velho Telmo Pais. A esta representação assistiu Alexandre Herculano e chorou”. (cfr. Teófilo Braga e também Gomes de Amorim “Garrett- Memórias Biográficas” 1881-1884)
Mas é Teófilo quem o diz! E mais acrescenta que o “Frei Luís de Sousa” só em 1850 seria representado no Teatro D. Maria II. (cfr. Teófilo Braga “Dois Monumentos”).
Hernâni Cidade analisa detalhadamente o teatro de Garrett. E sobre o “Frei Luís de Sousa” considera que o mais relevante “é a introdução, entre os elementos constitutivos da peça, daquela figura de Telmo, com a sua fé sebastianista, que é a do povo contemporâneo” fazendo um paralelismo entre “a crença no regresso de D. Sebastião (e) a crença no regresso de D. João de Portugal” (in “Século XIX – A Revolução Cultural em Portugal e Alguns dos seus Mestres” 1985 págs. 27). De notar que a peça foi escrita por Garrett retido em casa devido a uma “forte canelada”, tal como refere o amigo Gomes de Amorim, que gaba o acidente!... (in “Garrett- Memórias Biográficas – vol. III pág. 67).
Vasco Graça Moura relaciona a modernidade do “Frei Luis de Sousa” com a “interrogação do próprio destino nacional” que surgirá designadamente em Oliveira Martins, em Pessoa e em Eduardo Lourenço, expressamente citados (in “Colóquios tão simples, desfigurações” na revista Camões - janeiro/março 1999 pág. 62).
E finalmente: Annabela Rita, num estudo muito recente, estabelece uma correlação entre obras e figuras referenciais na história e na literatura: “D. Madalena e Maria, cada uma debruçada sobre a sua dupla, em que parecem literalmente geradas: a Inês de Castro camoniana e a Menina e Moça (1554) de Bernardim Ribeiro, respetivamente” (cfr. “Luz e Sombras do Cânone Literário” 2014 pág. 188).
Veremos a partir daqui, os atores e encenadores que surgem na transição dos séculos XIX/XX.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 31.12.14 neste blogue.
As “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett (1ª edição, 1846) são constituídas por quarenta e nove capítulos de um folhetim romântico, cuja originalidade está na linguagem comum que usa e na ligação entre o relato de uma viagem e a narrativa de uma história trágica sobre a guerra civil que dividiu o país de 1832 a 1834, e de que o autor foi protagonista. A viagem existiu de facto, de 17 a 22 de julho de 1843, em que Almeida Garrett foi ao encontro do seu amigo Passos Manuel, então num exílio no interior da pátria, uma vez que tinha sido arredado da ribalta política pelo golpe de Estado em que António Bernardo Costa Cabral restaurou a Carta Constitucional (1842). A narrativa é imaginada como procura de uma lição moral, depois do tempo heroico de uma guerra ter cedido lugar ao conformismo e à indiferença – simbolizados na figura de Carlos. Se é certo que o autor, inspirado em Swift, Stern ou De Maistre, nos diz que neste género importa mais o estilo que a doutrina, a verdade é que o autor cuida especialmente da renovação do estilo, e da sua originalidade, sem esquecer uma pitada de doutrina, já que não esconde a acerba crítica em relação ao cinismo e ao agiotismo a que se chegara. O escritor quer acreditar na força da liberdade e dos seus ideais, contudo olha em volta e muito pouco vê nesse sentido. Por isso, sendo um partidário da “monarquia nova” (como disse no célebre discurso do Porto Pireu, perante José Estevão), não pôde deixar de admirar, apesar de não gostar de frades, a convicção de Frei Dinis, o inesperado pai de Carlos, velho partidário da “monarquia velha”. A descrição da viagem entremeia a exaltação da natureza (“bela e vasta planície”, “delicioso aroma selvagem”) com as invocações pessoais, em aparente desordem. Até que chegamos ao vale de Santarém. Faias, freixos, álamos, madressilvas, mosquetas, congossas, fetos e malvas-rosas compõem uma verdadeira sinfonia silvestre. E chegamos a uma janela, que faz adivinhar um feitiço. E se falamos de fantasmas, eis uma das referências indiscutíveis. É a janela da “menina dos rouxinóis”, da “Joaninha dos olhos verdes”.
E abre-se o romance: “Era no ano de 1832, uma tarde de Verão, como hoje calmosa, seca, mas céu puro e desabafado…”. Garrett mistura propositadamente as suas reflexões ao longo da viagem e o contar da narrativa, que ali teve lugar, no auge da guerra entre o Portugal novo e o Portugal antigo (com a presença de Joaninha, Carlos, Georgina, a Avó e Frei Dinis). E entre os episódios do romance, a viagem continua: “Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, atual possuidor e habitante do régio alcáçar, o Sr. M.P.” (Manuel Passos). E então: “comemos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, falou-se de política, falou-se de literatura, falou-se de Santarém sobretudo, das suas ruínas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Enfim, fomo-nos deitar. Nunca dormi tão regalado sono em minha vida…”. Ontem, como hoje, a magnífica hospitalidade… E assim vida e literatura juntam-se naturalmente.
Mas retornemos à menina dos rouxinóis. «Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em português, mas era o tipo da gentileza, o ideal da espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezasseis anos, havia, por dom natural e por uma admirável simetria de proporções, toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da corte e da mais escolhida companhia vêm a dar a algumas raras e privilegiadas criaturas no mundo». O que a singulariza? «Os olhos de Joaninha eram verdes... não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate». (…) «O efeito desta rara feição, naquela fisionomia à primeira vista tão discordante, era em verdade pasmosa. Primeiro fascinava, alucinava, depois fazia uma sensação inexplicável e indecisa que doía e dava prazer ao mesmo tempo: por fim pouco a pouco, estabelecia-se a corrente magnética tão poderosa, tão carregada, tão incapaz de solução de continuidade, que toda a lembrança de outra coisa desaparecia, e toda a inteligência e toda a vontade eram absorvidas. Resta só acrescentar — e fica o retrato completo, um simples vestido azul-escuro, cinto e avental preto, e uns sapatinhos com as fitas traçadas em coturno». Camões também um dia disse: «Eles verdes são / e têm por usança / na cor, esperança / e nas obras não». “Minina dos olhos verdes, porque me não vedes”? E que maior saudade de um espírito senão a deste amor de Joaninha?
Já encontrámos Almeida Garrett nas suas geniais “Viagens”, agora invocamos o dramaturgo na Comédia “Falar Verdade a Mentir”, pequena peça em que as personagens são confrontadas com uma sucessão de mentiras que geram, entre momentos de gozo, as maiores confusões. É o exemplo da comédia de enganos, conhecida desde a dramaturgia mais antiga. Aqui os fantasmas são reais. Duarte é noivo de Amália e tem o hábito doentio e persistente de mentir. Amália é filha do Senhor Brás Ferreira, conceituado ricaço, que não suporta mentiras! Se sonha que o futuro genro diz a mais pequena mentira, o veredicto é claro: o casamento já não pode realizar-se. Entretanto, Joaquina, criada de Amália, namora o José Félix. E os dois fazem os impossíveis para que as mentiras constantes de Duarte, se transformem, como que por encanto, em autênticas verdades! As mentiras fervem, o ricaço Brás Ferreira hesita, mas tudo é um fascinante jogo de aparentes enganos no "Falar Verdade a Mentir". O episódio do Milord Coockimbroock, representado por José Félix, é hilariante. E apesar de caricatura, é convincente. E quando a mentira parece estar para ser desmascarada, tudo se revela como se fosse verdade transparente, apesar de um discurso macarrónico supostamente em inglês. Mas não é preciso apurar muito, Coockimbroock parece convincente e ninguém sabe muito.
E Joaquina revela a chave do enigma. Tudo está montado para que Duarte não possa mentir, mesmo querendo. «Pobre rapaz! ficou como pateta! Se ele não está acostumado a isto. Condenado a falar verdade vinte e quatro horas a fio!... Também olhe que nos dá um trabalho! porque mente com um desembaraço e sem a menor consideração... Já se tinha esquecido da peta do almoço. Felizmente que nós estamos prevenidos, e graças ao bolsinho de minha ama e à vizinhança do Manuel Espanhol, em poucos minutos se fez da peta verdade... E José Félix! Não verão o meco sentado à mesa com meus amos como se fosse gente, o pedaço de lacaio!... Mas deixem estar que o tratante tem um ar, sabe tomar uns modos, que quem o não conhecer!... Em que ele se deita a perder decerto, é que aquilo é um comilão... O que lhe vale é fazer de inglês... não se repara. – Agora que mais falta? Vejamos. A tal visita de agradecimento ao general Lemos: essa não se pode evitar. Só se... É verdade; o general Lemos que venha cá... como têm vindo os outros. Vou avisar José Félix que se avie de almoçar e nos represente mais esse figurão. Não lhe há de custar muito... é seu amo. – Ai! que é isto, que quer este senhor?». E tudo se encaminha para o desejo de todos, contra as inadvertências do Duarte Guedes, o que leva o General a afirmar: «Não há dúvida, Senhor Brás Ferreira; é preciso consentir neste casamento. Já não tem mentiras de que o acusar». Joaquina e José Félix ufanam-se e apresentam uma eficácia de cem por cento. E Duarte reconhece a lição severa e benfazeja: «Protesto-lhe que hoje foi o último dia da minha vida que me deixei cair neste maldito vício... E nem eu sei como foi; queria-me defender... vinham umas atrás das outras... por fim... não sei... Mas acabou-se: não torno mais a mentir; custa muito, dá muito trabalho. Vi-me em ânsias! Juro que me hei de emendar... já estou emendado. – José Félix, nunca me hei de esquecer da lição que me deste, e prometo pagar-ta. – Deveras? Dando-lhe uma bolsa – E eu pago-ta já. – Melhor ainda. (apalpando a bolsa) Isto sim que são verdades puras... e não deixam mentir ninguém».
Em busca de fantasmas da nossa terra, não poderiam faltar num folhetim como este, os paradigmas que ansiamos encontrar. Foi Garrett quem nos deixou o melhor modelo de uma narrativa onde se encontram amores românticos, uma viagem e a defesa de um património único. Eis a janela da menina dos rouxinóis, da Joaninha dos olhos verdes. “Entrámos a porta da antiga cidadela. – Que espantosa e desgraciosa confusão de entulhos, de pedras, de montes de terra e caliça! Não há ruas, não há caminhos: é um labirinto de ruínas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo, é ao pé da famosa e histórica Igreja de Santa Maria da Alcáçova. – Há de custar a achar em tanta confusão”…
Almeida Garrett deu-nos conta da falta de cuidado em que encontrou na histórica cidade de Santarém, quando foi ao encontro de seu amigo Passos Manuel. Falava-nos de “pardieiros e entulhos”, que hoje felizmente deram lugar a uma cidade cuidada e limpa. E assim apelava para que não se deixasse ao abandono um legado histórico sagrado. Mas o grande mestre romântico faz o contraste entre as pedras que encontrou decaídas, a honradez das pedras vivas e a formosura do panorama e da paisagem. Nós falamos de pedras no meio do caminho.
“Nunca dormi tão regalado sono em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos”. Infelizmente, hoje, há secura. Mas então eram o “vale aprazível e sereno” e “o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam, verdes e frescos ainda, os salgueiros que as ornam e defendem”… A seca prolongada deixa-nos hoje severas preocupações, mas aquele glorioso momento foi mais forte que tudo, em nome de uma memória histórica inesquecível.
Que é o património senão vida vivida? Pedro Canavarro é o nosso anfitrião inigualável, sempre a guardar a presença silenciosa de Garrett e de Passos num roteiro da democracia no rico Ribatejo – desde as Cortes de Santarém de 1331, que ilustram a democracia na formação de Portugal e a aclamação em 1580 de D. António Prior do Crato até D. Pedro IV em vésperas de Évora-Monte, sem esquecer Sá da Bandeira, Alexandre Herculano, Rebelo da Silva, Oliveira Marreca, Anselmo Braancamp Freire, António Ginestal Machado, José Relvas, Humberto Delgado, Salgueiro Maia…
Para as escolas tem de haver a determinação em criar para os mais jovens o gosto do estudo rigoroso, o culto e o interesse pelo património – seja o monumento antigo, seja a paisagem ou o jardim, seja o cuidado com o uso da língua materna, seja o trabalho do artesão, seja a qualidade na tradição culinária. Temos de cuidar do património – prevenindo-nos contra o descuido, delineando e estudando caminhos que nos permitam conhecer, recordar, alertar e salvaguardar. E eis que o mistério de Frei Dinis se nos revela na paternidade de Carlos. E o cenário da guerra civil lembra-nos o confronto entre a tradição e a modernidade, pleno de incompreensões.
Joaninha, a menina dos rouxinóis e dos olhos verdes, simboliza a visão do Portugal profundo e antigo, que valoriza as raízes históricas. Francisca, a avó de Joaninha, mostra-nos como o tempo andou depressa demais, longe da compreensão das mudanças. Frei Dinis ficou-se no tempo passado e irreal não sendo capaz de justificar-se sem uma revisão de valores e de perspetivas. A morte de Joaninha e a fuga de Carlos para tornar-se barão, representa a própria crise de valores em que o apego à materialidade e ao imediatismo acaba por fechar um ciclo de mutações de caráter incerto e instável. Eis um romance puro de fantasmas. Carlos deambula sonâmbulo, o exemplo de Joaninha é a referência inesquecível e Frei Dinis esconde-se da história.
Almeida Garrett escreveu em 1821 o ensaio “O Dia Vinte e Quatro de Agosto”, que constitui uma defesa da Revolução Regeneradora Liberal de 1820, partindo da ideia de “os homens são iguais, porque são livres, e são livres porque são iguais”.
ANÚNCIO DA LIBERDADE A Revolução do Porto de 24 de agosto de 1820 constitui, para os portugueses, a génese da consagração do moderno Estado de direito. O acontecimento deu assim início à democracia atual, apesar de todas a vicissitudes, desde a fugaz tentativa de regresso do poder absoluto com D. Miguel, até à Regeneração de 1851, que viria a tornar a Carta Constitucional de 1826 uma lei fundamental legitimada por um poder constituinte. Em complemento, as datas de 5 de outubro de 1910 e de 25 de abril de 1974 constituem duas referências que continuam o que Jaime Cortesão designou como fatores democráticos na formação e afirmação de Portugal, desde as mais longínquas raízes históricas, abrangendo a fundação do Estado, as Cortes, o municipalismo, a influência dos povos das cidades e dos mesteres, a causa do Mestre de Aviz em 1383-85, a Restauração da Independência de 1640, a República e a Democracia constitucional de hoje. A verdade é que a democracia não se faz instantaneamente. Constrói-se gradualmente e assenta a sua legitimidade na vontade dos povos e na afirmação da cidadania livre e responsável, igual e solidária. Manuel Fernandes Tomás (1771-1822) foi figura marcante da Revolução. A ele se deveu a afirmação dos elementos cruciais do pensamento regenerador, de que resultou o constitucionalismo – a divisão de poderes, a articulação da autoridade das Cortes com o poder executivo e o rei, os fundamentos e as práticas do poder judicial, o conceito e o exercício da soberania popular, além da afirmação da liberdade de imprensa, da importância do exercício do direito de voto e do princípio do consentimento, além das tomadas de posição sobre a extinção da inquisição, sobre a liberdade e abusos da autoridade ou sobre a liberdade do cidadão e a liberdade da nação. Pode dizer-se que o edifício constitucional de 1822 muito deveu à solidez e coerência do mais influente dos artífices do movimento de 1820 e de um dos mais determinados deputados constituintes. E se falo de Fernandes Tomás, que está representado no uso da palavra na sala das sessões da Assembleia da República, é porque ele é no pensamento e na ação um símbolo evidente da Revolução de 1820 e do constitucionalismo. Como jurisconsulto de qualidade superlativa, o facto de estar particularmente informado e atento à evolução das notícias liberais e constitucionais, designadamente na vizinha Espanha, permitiu-lhe compreender a inevitabilidade das repercussões em Portugal do movimento liberalizador na sequência das revoluções inglesa, americana e francesa. Assim, em 1818 fundou o Sinédrio juntamente com Ferreira Borges e Silva Carvalho, com o comerciante Ferreira Viana, preparando as mobilizações militares e civis que conduziram ao golpe do Porto. Escreveu, por isso, as proclamações que prenunciaram a proclamação nacional regeneradora, visando: fazer regressar D. João VI à capital europeia do reino; exonerar a Regência que governava em nome do rei; afirmar a liberdade e a igualdade dos cidadãos perante a lei e garantir a convocação das Cortes constituintes, que exprimissem o sentido de uma soberania nacional baseada na vontade do povo.
O MOVIMENTO REGENERADOR Tendo participado na Junta Provisional do Supremo Governo do Reino e tendo sido um dos mais influentes autores do Relatório sobre a situação do País e sobre as providências consideradas necessárias, foi um dos 100 deputados eleitos para a Assembleia, que reuniria no Palácio das Necessidades, com a missão de elaborar a nova Constituição, após o debate do Relatório que coordenara na Junta Provisional. Perante os erros da governação, a subalternização do interesse comum, a injustiça e a ilegitimidade da condenação dos mártires da pátria, haveria que tirar consequências sérias da soberania da nação. O exercício da soberania estaria “nas Cortes que legislam, no monarca que executa, nos juízes que julgam, e nas autoridades que administram”. Daí a importância da representação e do mandato, o que corresponde a uma ideia premonitória de democracia. É por isso muito profícua a leitura das intervenções de Fernandes Tomás na Constituinte. Aí encontramos a opção moderna de três poderes, como em Montesquieu, a noção de um parlamento unicamaral e o veto suspensivo do rei… Não importará neste momento fazer o diagnóstico da força e das fragilidades dessa primeira lei fundamental, tão influenciada pela Constituição de Cádis. É, porém, essencial compreender a virtude do contributo de Fernandes Tomás, cujo percurso envolveu o compromisso no combate anti-napoleónico e a participação ativa nas boas-vindas ao rei D. João VI (cuja atitude positiva se contrapôs à perspetiva negativa assumida por Fernando VII) – na compreensão do necessário equilíbrio de um patriotismo prospetivo. Uma das marcas do carácter da nova ordem constitucional foi a liberdade de imprensa, que constituiu um fator de magna importância para o reconhecimento do que tornou 1820 muito mais do que um movimento circunstancial. Foi um novo período que se abriu, tornando-se uma marca indelével em que a ideia de soberania popular se tornou uma referência que nos nossos dias procuramos que se fortaleça e consolide. “É evidente que a liberdade de imprensa deve ser o mais ampla possível (como afirmou o deputado constituinte), porque com efeito num país livre não se pode viver sem ser também livre a imprensa, mas devemos enquanto for possível reparar para o exemplo das nações que nos cercam e das que olham com mais cuidado para a sua conservação. (…) Está demonstrado que o poder da opinião é maior que o poder da força…”. E a História política foi provando que, apesar da conjuntura ibérica de então ser muito complexa, favorecendo opções que obrigariam a ajustamentos ao longo do tempo, a Revolução do Porto foi decisiva e ainda hoje é marcante. Se é verdade que só o poder constituinte concretizado com o Ato Adicional de 1852 garantiu a acalmação e um consenso minimamente durável, em que os beligerantes das diversas guerras civis (liberais e absolutistas; cartistas e constitucionalistas) enterraram os machados de guerra com a garantia de uma alternância partidária exigida pelo progresso económico e social, o certo é que foi o início da continuidade constitucional que rasgou o horizonte da cidadania democrática. É essa a marca deixada desde 24 de agosto de 1820, que hoje recordamos, não como uma celebração retrospetiva, mas como uma oportunidade para pensarmos a democracia como um sistema de valores que permanentemente se aperfeiçoa, e que mobiliza a sociedade e os cidadãos. Por isso privilegiamos nesta comemoração, não a mera lembrança, e mais o estudo, a reflexão, a investigação, mobilizando o ensino superior, as instituições de investigação e a sociedade toda. Não nos ocupa apenas uma data, mas um movimento de progresso e desenvolvimento – considerando o constitucionalismo como um fator de cidadania e de legitimidade. Deste tempo resultará um melhor conhecimento do que nos antecedeu para que sejamos melhores no futuro.
Já aqui evocámos que em 1821, portanto há 200 anos, Garrett escreve a sua segunda peça “Catão”. Tal como então referido, a peça foi estreada nesse mesmo ano no Teatro do Bairro Alto com a participação algo insólita do próprio autor. E foi posteriormente representada em Lisboa, durante o exílio de Garrett, o que documenta e de certo modo valoriza a relevância epocal de Almeida Garrett também na política.
E como então referi, essa expressão mais se justifica no contexto da própria peça. Efetivamente, Garrett utiliza o chamado verso clássico, mas aplica-lhe a ideologia liberal que aliás se adequa à própria expressão já dominante na obra garrettiana: pois como escrevi na “História do Teatro Português”, Garrett demonstra, nesta peça de juventude, uma capacidade admirável de manuseio do verso clássico, mas aplica-lhe com exemplar clareza a afirmação do combate ao absolutismo e a referência direta à própria ideologia liberal e às instituições que na época e ainda hoje a consagram: pois, como temos escrito, o dialogo entre Décio e Catão é nesse aspeto exemplar:
“Décio: A Catão saudar César envio. Catão: César não vejo aqui, vejo a Senado. /Eu César não conheço”.
E Catão esclarece o conjunto de medidas que considera necessárias:
“Catão – As condições são estas: Desarme as legiões, deponha a púrpura, abdique a ditadura: à classe torne de simples cidadão e humilde aguarde a sentença do Roma. – Então eu próprio, quanto inimigo fui, cordial amigo, seu defensor serei”…
O “Catão” é considerado uma espécie de símbolo da renovação romântica do teatro em Portugal. E no entanto, a estreia em 1821, como vimos, no Teatro do Bairro Alto, constitui, mesmo no contexto da dramaturgia garrettiana, um texto de certo modo menor, pelo menos no sentido da sua originalidade temática, e isto não obstante a qualidade da peça em si, sobretudo como é óbvio na elaboração estilística da linguagem.
E será oportuno transcrever referências ao tema no sentido da própria criação da parte do autor. E será oportuno então transcrever as citações que David Mourão-Ferreira incluiu numa interessante análise feita a esta peça de certo modo iniciática: referimos o estudo publicado em “Hospital das Letras” (1966).
Diz então David Mourão-Ferreira:
«Em primeiro lugar a escolha do herói diz muito da própria época – e muito lhe vem dizer: “Tomada de consciência cívica da geração liberal” lhe chamou com toda a razão Vitorino Nemésio. Em segundo lugar, diz muito do próprio autor, pois, como judiciosamente observou Andrée Crabbé Rocha, “na faina da agitação política, não devia estar longe de se julgar ele próprio um novo Catão, um puro devotado à causa da liberdade como o outro”. Mas não era só isto: sob o trajo romano, e para lá da intenção meramente política, Catão representava aquele arquétipo português da grandeza, aquele ideal de austera integridade (“homem de um só parecer, etc., etc.), do qual jamais Garrett deixará de sentir a impiedosa e profunda nostalgia.»
E finalmente, na mesma obra, uma apreciação de David Mourão-Ferreira sobre Garrett (in “Para um Retrato do Garrett”, “Hospital de Letras” Guimarães ed. pág.73 e segs.)
«Poucos autores portugueses se mostraram tão cuidadosos como Garrett a pôr de acordo a vida e a obra. A intuição que ambas reciprocamente poderiam justificar-se, leva-o, desde muito cedo, a estabelecer, entre uma e outra, os mais complicados jogos de espelhos. É já um sintoma de “má consciência”. E é, por outro lado, o desejo de aparentar a unidade que a cada instante o desampara. Constitui alem disso, curiosa lição para os amadores de biografismo em matéria de crítica literária, - porquanto, na medida em que a biografia aparece constantemente adulterada ou retocada, em função da obra, se denuncia afinal o abismo existente entre as duas”.
Será oportuna esta primeira evocação da estreia do “Catão” de Almeida Garrett, ocorrida precisamente em 1821 no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, com a participação do autor, então com 22 anos. Uma peça de juventude, portanto, o que não impediu obviamente ponderações autorais posteriores sobre as origens do texto. E no entanto, há que obviamente reconhecer a qualidade de literatura e de espetáculo que a peça envolve e que Garrett, insista-se, na altura muito jovem, tantas e tantas vezes depois assumiu, numa visão subjetiva e sempre autoelogiativa mas nem por isso menos adequada…
E é de assinalar que o “Catão” aponta desde logo o sentido de espetáculo à época moderno mas também à época conciliado com a tradição cénica e de conteúdos que o teatro do Garrett mantem ao longo da vasta obra cénica que produziu.
Essa criatividade teatral tem o expoente no “Frei Luís de Sousa” mas surge desde o início da sua dramaturgia, à época, insista-se, renovadora e desde sempre muito válida. De notar, designadamente, a capacidade de adaptação/modernização do estilo e da linguagem clássica com um sentido de espetáculo que desde início da obra dramatúrgica garreteana se desenvolve e tem o valor máximo e atual, mas não exclusivo, repita-se, no “Frei Luís de Sousa”.
E tal como já escrevemos, o “Catão”, insista-se, peça de juventude, contém uma capacidade admirável de manuseio do verbo clássico para a afirmação do espírito de defesa da liberdade e de combate ao poder político absoluto, que transporta o tema para a modernidade direta na época e em tantos aspetos de hoje, na afirmação das instituições parlamentares: e a verdade é que, dois séculos decorridos, há na peça uma modernidade que transcende o estilo romântico da linguagem cénica.
E novamente transcrevemos cenas que já temos citado e que marcam desde logo as características do teatro de Garrett e implicitamente, das origens ainda algo clássicas do teatro romântico:
“DÉCIO: A Catão, saudar César envio
CATÃO: Catão não vejo aqui, vejo o Senado. /Eu César não conheço./ DÉCIO: O Invicto, o grande triunfador do mundo ati envia”.
E mais adiante a grande fala de Catão, que sintetiza o conteúdo doutrinal da peça:
“CATÃO: As condições são estas: Desarme as legiões, deponha a púrpura, abdique a ditadura: à classe torne de simples cidadão e e humilde aguarde a sentença de Roma – Então eu próprio, quanto inimigo fui, cordial amigo, seu defensor serei.”
Este é de facto um assunto determinante da renovação garrettiana do teatro português. A ele iremos voltando neste ano de comemoração da reforma de Almeida Garrett.
E a tal respeito, refere-se designadamente a polémica que na época provocou. Iremos então referir um longo texto de José Luís Baiardo sobre as reações que a obra e também a personalidade de Garrett provocou. Vem citado no estudo de Ana Isabel Teixeira de Vasconcelos intitulado “O Teatro em Lisboa no Tempo de Almeida Garrett” (MNT) que também já temos referido a propósito de Garrett.
Porque Garrett era efetivamente e ainda é uma personalidade notória, na época e hoje em tantos aspetos citada!
Fazemos hoje nova breve referência ao espetáculo que, no então chamado Real Theatro de São Carlos, Almeida Garrett protagonizou e que é descrito com marcada expressão evocativa pelo Marquês da Fronteira e Alorna, de seu nome José Trazimundo Mascarenhas Barreto (1808-1881), cujas “Memórias” constituem um curiosíssimo relato da política e da cultura da época. Aliás, vale a pena evocar esta fase complexa da sociedade portuguesa, nas vastas e variadas implicações históricas, políticas e culturais que envolve.
Nas “Memórias”, reeditadas designadamente em 1986 pela INCM, o Marquês descreve uma algo inesperada intervenção do então jovem Garrett (1779-1854) no Teatro de São Carlos. Estava-se na ressaca da revolução de 1820. E justamente nesse contexto, o (ainda mais) jovem assiste a uma espetáculo do Teatro de São Carlos.
E descreve: «Foi numa dessas noites de grande entusiasmo que, estando na plateia geral, vi pôr-se de pé sobre um dos bancos um jovem, elegante pelas suas maneiras, duma fisionomia simpática e toilette apurada, um pouco calvo apesar da pouca idade, o qual pediu silêncio aos que o rodeavam, disse “À Liberdade”. E recitou uma bela ode, que foi estrepitosamente aplaudida, perguntando-se com curiosidade, tanto nos camarotes como na plateia, quem era o jovem poeta: ele próprio satisfez a curiosidade, dizendo chamar-se Garrett».
E, no mesmo livro de Memórias, faz uma referência desenvolvida à estreia do “Catão” de Garrett, esta ocorrida no então também relevante Teatro do Bairro Alto, bem como a outras iniciativas de expressão teatral.
E isto porque, diz-se no livro que «os três teatros que então havia trabalhavam todos. Junto à Igreja de São Roque, no Bairro Alto, havia um pequeno teatro que tinha sido ocupado por companhias de amadores e onde o meu amigo Almeida Garrett tinha feito representar pela primeira vez a sua tragédia “Catão”, numa referência que aqui reproduzimos pois documenta a situação cultural/teatral da época numa fase de progresso mas também de grande instabilidade».
Acrescente-se para terminar, que o Marquês e o irmão, desde muito jovens frequentavam os teatros de Lisboa, marcando assim a ligação à arte de espetáculo. De tal forma que a certa altura o Marquês decide-se a atuar como ator. Nesse sentido, participou em representações de peças sobretudo ligadas ao teatro de cordel.
Ele próprio organiza sessões e participa em elencos de amadores que escolhem, com sentido de espetáculo, textos na altura prestigiantes, se bem que hoje esquecidos: por exemplo, “Dr. Saraiva” de Manuel Rodrigues Maia ou “A Castanheira” de José Caetano de Figueiredo – nomes que hoje já pouco ou nada dizem!...
E podemos alargar as citações retiradas das “Memórias” do Marquês de Fronteira e Alorna José Mascarenhas Barreto. Até porque a certa altura organiza no Palácio de Benfica onde mora, espetáculos variados. E para terminar, diga-se que não hesita em escrever que «a companhia portuguesa da Rua dos Condes podia comparar-se com a melhores companhias dos teatros europeus» nada menos!...