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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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POEMS FROM THE PORTUGUESE

 

Poema de Ana Hatherly

 

Ana_Hatherly.jpg

 

O Terceiro Corvo

 

Oh Lisboa
Como eu gostava de ser
O terceiro corvo do teu emblema
Estar implícita na tua bandeira
Negra e branca
Como tinta e papel
Como escrita e espaço!

Ser teu desenho
Tua nova lenda
Invenção deste século
Que já não inventa
E se interroga:
Donde vieram estes corvos?

Como tu, Vicente,
Eu também não sou de cá
Não sou daqui
Não pertenço a esta terra
E talvez nem sequer
Pertença a este mundo…

Porém estou aqui
Nesta dolorosa praia lusitana
Cheia de um tumulto inútil
Que enegrece as tuas areias
E polui o ventre do rio
Que os golfinhos há muito desertaram

E olhando as nuvens dedilhadas pelo vento
Sentindo a terna dor do teu sentir sentido
Peço-te, Lisboa
Surge de novo bela
Reinventa
A santidade perdida do teu emblema

in Itinerários, 2003

 

The Third Crow

 

Oh Lisbon
I would so like to be
The third crow in your shield
To be implicit in your flag
Black and white
Like ink and paper
Like script and space!

To be your drafted shape
Your new legend
Invention of this century
That no longer invents
And wonders:
Where have these crows come from?

Like you, Vincent,
I’m not from these parts
Not from this place
Not from this land
And perhaps I don’t even
Belong to this world…

Yet here I am
On this sorrowful Lusitanian beach
Full of a useless turmoil
That blackens your sands
And pollutes the river’s womb
Long abandoned by the dolphins

And seeing the clouds fingered by the wind
Feeling the gentle pain of your felt feelings
I beg you, Lisbon,
Rise again in beauty
Reinvent
The lost sanctity of your shield

 

© Translated by Ana Hudson, 2010

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE ANA HATHERLY


As lágrimas do Poeta


Um poeta barroco disse:
As palavras são
As línguas dos olhos

Mas o que é um poema
Senão
Um telescópio do desejo
Fixado pela língua?

O voo sinuoso das aves
As altas ondas do mar
A calmaria do vento:
Tudo
Tudo cabe dentro das palavras
E o poeta que vê
Chora lágrimas de tinta


in O Pavão Negro, 2003


The Poet’s Tears


One baroque poet said:
The words are
The eyes’ tongues

But what is a poem
If not
A telescope of desire
Focused by language?

The sinuous flight of the birds
The tall waves of the sea
The lull of the wind:
Everything
Everything fits into words
And the poet who sees
Weeps tears of ink


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE ANA HATHERLY

  


CASAMENTO DO CÉU E DA GUERRA


Não, meu caro Blake

Esta não é, como a tua
Uma guerra mental
Para as cósmicas acrobacias
Que atravessam o fogo
Das tuas fantasias


A acção heróica

Que outrora seduzia
Agora é um puro teste
E o campo de batalha
Visto de longe
de cima
de muito alto
É pura geometria
No rectângulo do scanner


As novas armas que cruzam nossos céus

Caem sobre a terra
Distraidamente
Errando o alvo
Enquanto os corpos desencarnam
À sombra das destruídas pontes da lembrança


Que queres de nós, Doctor Clash?

Que nos dizes lá do alto?


Um cruel pai nos entrega a este conúbio

Atirando a bola
Para o campo do adversário
Onde o árbitro já foi despedido
E vestido de preto
É uma mosquinha
No imenso campo
Verde
Porque a teimosa relva
Continua a crescer
para ser pisada
para ser esmagada
Porque esse é o seu cruel programa


Do céu

Donde sempre nos veio
O fogo e a água
Continua a vir
O sustento da morte


in Itinerários, 2003


MARRIAGE OF HEAVEN AND WAR


No, my dear Blake

This is not, as yours was,
A mental war leading
To the cosmic acrobatics
Crossing the fire
Of your imagination


The heroic deed

So seductive of yore
Has become a pure test
And the battle field
Seen from afar
from above
from way up
Is pure geometry
In the screen of the scanner


The new weapons that cross our skies

Fall upon us
Absent-mindedly
Missing the target
While the bodies disembody
Under the shadowy bridges of remembrance


What do you want from us, Doctor Clash?

What say you to us from up there?


A cruel father delivers us to this wedding

Kicking the ball
To the field of the enemy
Where the referee having been fired
Dressed in black
Looks like a tiny fly
In the huge field
Green
Because the stubborn grass
Continues to grow
to be trampled on
to be squashed
Because that is its cruel program


From the sky

Whence fire and water
Were always bestowed upon us
Keeps coming
The sustenance of death

 

© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

 

ANA HATHERLY: A ROMÃ. DE FRENTE E ASSIM DE DENTRO, AS TISANAS.

 

Poderia haver uma outra solução que não fosse a de abrir a romã. Poderia existir uma maneira melhor de sair do impasse sem que acreditasse que dentro da romã estava a resposta que procurava? Sentou-se à mesa.

 

Pensativamente continuava a olhar para a romã como uma possibilidade. Afinal existiam letras e algarismos nas sementes das romãs: existia aquela cor inconfundível do líquido-sangue que vertia.

 

Um dia, no tabliê de um táxi estava pousada uma romã:

 

- A romã não cai porquê?

 

- Tem adesivo – disse, secamente o motorista.

 

- Mas sabe que a romã é uma peça do mistério da vida?

 

- Ó amigo, estou a ver que o amigo é das religiões do porque tira e do porque deixa, e mais isto e aquilo, e os pecadores e a salvação? Desculpe lá, não acredito em coisas do além.

 

- Não, não. Eu falei do mistério da romã porque se eu fosse crente era a altura de rezar ou não andasse indeciso cá numa coisa importante. Contudo não sou crente, e por isso limito-me a ter medo, medo que dentro das romãs esteja um destino que se atire a mim se as abrir. É estranho isto que digo, eu sei. Esqueça. Não devia ter falado.

 

- Sabe amigo, não percebo nada do que diz, mas coloquei adesivo na romã para ela não cair pois por superstição quero que a romã ande comigo uns tempos, mas assim fechadinha, por dentro são um bocado complicadas, de facto: muitas circulares e muitos entroncamentos…percebe? Até sangue…é estranho é…

 

- E não receia que ela apodreça e já não o possa proteger?

 

- Não, não receio. Sabe, eu nunca vi uma romã podre. Já as vi secas, mas não podres. Elas vão mudando de cor, acastanham, depois atrofiam e de repente parece que já não estão lá: como se dentro delas, ninguém! É giro, parece que entram em metamorfose lá como os bichinhos da seda que o meu filho tem. O casulo fica abandonado, vazio.

 

Voltou-lhe à memória aquela fotografia em que segurava na mão uma romã. Aquela idade fora cúmplice dos segredos das romãs e das razões pelas quais se lhe ofereciam, muito de repente, as decifrações. Para tanto, bastara-lhe a autópsia que fizera a uma romã que tinha na sua mão, e logo, a outra sua mão escrevente, derramara a tinta bem vermelha logogrifos sobre o papel. Agora confirmava que fora como se acontecesse algo aquém do Jogo. Escreveu então que a romã, insinuara-lhe a fragmentação de tudo e de todos, e ele não a entendera. Chegava enfim o momento de ter a coragem de abrir uma romã qualquer apenas para se certificar se poderia chamar literatura às notas esparsas.

 

Lera As Tisanas de Ana Hatherly as tais que constituem uma espécie de cidade-estado construída pela escrita criadora (…) as tais que também são o excelente filtro da vida através da pintura. Lera As Tisanas e ficara numa experiência íntima tão forte que, receava bem não possuir o saber de a gerir como desejava.

 

Estou triste e só. Ligo o rádio. Oiço duas das últimas Canções de Strauss. Sinto de uma maneira profunda a sua fluidez cromática, a sua riqueza orquestral. Os metais soam como vibrantes florestas. A voz da cantora é a de uma grande ave solitária. Sinto-me um lobo sem alcateia. Quando se está muito só o gemido transforma-se em uivo.

 

(Tisana 387 do livro 463 tisanas que em 2006 conteve o conjunto destes poemas, publicado por Quimera Editore)

 

E perguntava-se agora se poderia ainda haver uma outra solução que não fosse a de abrir a romã?, qual a razão de não a deixar assim na sua metamorfose secreta, e, intuir, solitariamente, as lições que lhe iriam decidir a Sorte?, aquela mesma que ilude até tiranos, aquela que julga só saber coisas pelos seus olhos.

 

Teresa Bracinha Vieira