Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

POEMS FROM THE PORTUGUESE

 

POEMA DE MARGARIDA FERRA

 

margarida ferra.jpg

 

Escreve sempre que precisares
 
Escreve sempre que precisares de me dizer 
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico. 
Os legumes que trouxe ontem 
não sobrevivem a mais do que uma geada, 
muito menos nós.
 
Escreve sempre que precisares, podes 
dizer-me outra vez que nunca houve inverno,
que este ano não há verão,
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos 
se somos nós ou se somos aquelas 
quatro pessoas que vão à rua agora, 
encontraram a porta certa.
 
 
Escreve sempre que precisares, faz 
uma lista de compras, uma lista de desejos,
anota todos os pedidos que deixaste 
em poemas atrasados.
Escreve sempre que precisares 
de mais um postal com selo e carimbo. 
Escreve sempre que riscares 
na tua agenda mais uma morada.
 
Sempre que eu precisar vais devolver-me
uma caligrafia rebuscada que não é a tua, 
curvas a mais que não fazias na letra d.
Já não há desses manuscritos, 
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar, 
as frases podem desviar deixas decoradas, 
repetidas como as mentiras,
demasiado gastas para serem inócuas.
 
Escreve em vez de costurares. 
Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,
arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos, 
os cotovelos e as canelas 
(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).
Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,
os meus soluços nessas curvas 
a mais que não fazes na letra d:
as tuas linhas são rectas, verticais e justas,
as minhas letras são apenas caracteres.
 
Escreve sempre que puderes
só em vez de apenas,
recursos humanos em vez de 
resíduos urbanos. Talvez sejamos mais 
do que pessoas, temos tamanhos diferentes
e não servimos nos lugares que nos foram destinados.
 
Escreve sempre que precisares de uma porta
onde caibas, 
nunca trago chaves comigo.
 
in Curso Intensivo de Jardinagem, 2010
 
 
Write whenever you need
 
Write whenever you need to let me know
there is ice on your hands and on the inside of the fridge.
The vegetables I brought yesterday
won’t survive more than one frost,
and neither will we.
 
Write whenever you need to, you may
tell me again that winter never came,
that this year there won’t be any summer,
that we are and are not here because we don’t know
whether we are us or those
four people who are going out now,
having found the right door.
 
 
Write whenever you need, make
a shopping list, a wish list,
note down all the requests you left
in unfinished poems.
Write whenever you need
another postcard with a dated stamp.
Write whenever you strike
yet another address from your diary.
 
Whenever I need it, you’ll write back
in a far-fetched hand which isn’t yours,
much too rounded on the letter d.
Those writings no longer exist,
only I and the postman ever learned to decipher them
(and everybody knows even this isn’t true).
Keep writing.  Whenever I need
sentences that can avoid expressions learned by heart,
repeated like lies,
too worn out to be innocuous.
 
Write instead of sewing.
Even if you knew how, you couldn’t do enough mending,
your knees, elbows and ankles
torn beyond repair
(dancing has always been a remedy out of your reach).
Write that I see your falls in mine,
my sobbing in that excessive
roundness of the letter d:
your lines are straight, vertical and just,
my letters are only characters.
 
Whenever you can,
write lonely instead of only,
human resources instead of
urban residuals.  We are perhaps more
than just people, we are different sizes
and do not fit into our designated places.
 
Write whenever you need a door
through which you can fit,
I never carry any keys.
 
 
© Translated by Ana Hudson, 2013
in Poems from the Portuguese

 

 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

  filipa leal.png

    POEMA DE FILIPA LEAL

 

NOS DIAS TRISTES NÃO SE FALA DE AVES

 

Nos dias tristes não se fala de aves.
Liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.
 
Nos dias tristes é Inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento e diz-se
- bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso.
 
Nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala connosco.
 
in A Cidade Líquida e Outras Texturas, 2006
 
 
 

ON SAD DAYS YOU DON’T MENTION BIRDS

 

On sad days you don’t mention birds.
You ring up friends and they’re out
and then on the street
you ask for a light as if asking
for a brand new heart.
 
On sad days it’s winter
and you wander off in the cold, cigarette in hand,
burning away the wind and you say
 – good morning!
to the passers-by
after they’ve passed by
and you failed to notice.
 
On sad days you talk to yourself
and there’s always a bird sitting
at the top of things
instead of landing on your heart
and it doesn’t speak to you.
 
© Translated by Ana Hudson, 2011

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL

 

fernando pinto do amaral.jpg

 

CARDIOLOGIA

 

Talvez na sua vida o maior estímulo
fosse a curiosidade.
 
Era o motor de tudo: aproximava-se
de todas as mulheres que conhecia,
mas só lhe interessavam os seus corações.
 
Cultivava com método essa obsessão
e tal como as crianças costumam fazer
aos brinquedos preferidos,
também ele queria vê-los por dentro,
saber ao certo como funcionavam,
desfibrar lentamente cada esperança,
dissecar com um rigor quase científico
cada angústia ou desejo inconfessável
até saborear o gosto sempre novo
de cada uma dessas células.
 
Após cada experiência, observava
aqueles corações já desmontados
e, por não conseguir juntar as peças,
guardava-as uma a uma no seu peito.
Era um lugar seguro
e com tantos pedaços de outras vidas
na sua pulsação descompassada
podia enfim acreditar
que tinha também ele um coração.
 
 
in Pena Suspensa, 2004
 

 

CARDIOLOGY

 

The greatest motivation in his life
was perhaps curiosity.
 
It drove him on: he approached
every woman he met,
but he was only interested in their hearts.
 
He methodically followed this obsession
and like a child 
with its favourite toy
he also wanted to see what was inside,
find out exactly how it worked,
to shred each hope in slow motion,
dissect with almost scientific rigour
each anguish, each unavowable desire,
till he felt the ever fresh taste
in each one of those cells.
 
After each experiment, he observed
the dismantled hearts
and, not being able to reassemble them,
he gathered them one by one into his breast.
It was a safe place
and holding so many pieces of other lives
pulsating out of step
he could at last believe
that he also had a heart.
 
 
© Translated by Ana Hudson, 2010

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE FERNANDO EDUARDO CARITA

fernando eduardo carita.png

 

Há no amor…

(Para Paulo e Lídia)

 

Há no amor uma qualquer força mortífera
Que põe os amantes um contra o outro,
Bastará que a libertem;
 
Há no amor uma qualquer força vital
Que põe os amantes a favor um do outro,
Bastará que a mantenham em cativeiro;
 
Há no amor uma qualquer força inumana
Que há-de preservar os amantes
De sucumbirem nas margens um do outro,
Bastará que a coloquem já onde o amor os não alcança.
 
in A casa , o caminho/ La maison, le chemin, 2008
 
 

There is in love...

(To Paulo and Lídia)

 

There is in love some deadly force
That sets lovers against each other,
All it takes is to unleash it;
 
There is in love some vital force
That brings lovers towards each other,
All it takes is to imprison it;
 
There is in love some non-human force
That will preserve lovers
From succumbing to each other’s limits,
All it takes is to place it right where love can no longer reach them.
 
 
© Translated by Ana Hudson, 2011
 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE ALBERTO PIMENTA

  


tornei a sonhar com o homem

tornei a sonhar com o homem
que se debruça sobre ti
mete as mãos 
na tua vagina
tacteia empurra segue sobe
chega ao teu coração
arranca-o com as unhas
trá-lo para fora com um fio de pesca
embrulha-o num pano
afasta-se com ele
o sangue não pára
tu ficas a ponto de morrer
com muito estertor
mas não morres

tens razão
eu não conseguiria
satisfazer-te tão intensamente
como o homem dos teus sonhos


again i dreamt of the man

again i dreamt of the man
who bends over you
his hands
in your vagina
he touches pushes presses on upwards
reaches your heart
with his nails rips it out
pulls it with a fishing line
wraps it in a cloth
takes it away
the blood doesn’t stop
you are nearly dead
gasping
but you don’t die

you are right
i wouldn’t be able
to satisfy you as intensely
as the man of your dreams

 


© Translated by Ana Hudson, 2012
in Poems from the Portuguese