Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Se eu varresse todas as manhãs as pequenas agulhas que caem deste arbusto e o chão que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência que o nada representa, veria que o arbusto não passa de um inferno, ausente o decassílabo da chama. Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os ramos, também a entendia, a essa imperfeição de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse este poema em tom de conclusão, notaria como o seu verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e descontínua que foge ao meu comum. O devagar do vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou a um neurónio meu, uma memória que teima ainda uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária. A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.
in A arte de Ser Tigre, 2003
The most perfect image
Were I to sweep every morning this shrub’s spiky leaves off their harbouring ground, I would then have a perfect metaphor for the reason why I’ve come to unlove you. Were I to wipe clean every morning this window pane and feel beyond my reflection the distracted transparency of nothingness, I would see the shrub is but a small inferno in the absence of the decasyllabic flame. Were I to look every morning at the cobweb woven between its branches, I would also understand the imperfection that eats at its thread, from May to August, disarming its geometry, its colour. Were I even now to see this poem in the manner of a conclusion, I would notice how its lines grow, unrhymed, in an uncertain and discontinuous prosody unlike mine. Like slow wind, eroding. I would also learn that longing belongs to a web woven in another time, a memory of some insistent beauty perched on some neuron of mine: the fire of a funeral pyre. The most perfect image of art. And of farewell.
Sei o teu carro de cor: a forma leve dos bancos, a angústia de cada vidro, a cor de cada junção Sei de cor a tua mão atravessada por dentro do carro que sei de cor: cada traço repetido em impressão digital, a forma de cada dedo por dentro da tua mão A sintaxe repetida do carro que sei de cor (etimologicamente: por dentro do coração)
in Inversos, poesia 1990-2010, 2010
Etymologies
I know your car by heart: the light shape of the seats, the anguish of each of its windows, the colour of all its trimmings I know your hand by heart cutting through the inside of the car I know by heart: each stroke re-enacted in a digital imprint, the shape of each of your fingers on the inside of your hand The syntax learnt by rote of the car I know by heart (etymologically: from the depths of one’s heart)
Neste mês de Agosto, vivemos um tempo em que podemos usufruir da gratuitidade dos dons da natureza. A memória desse tempo constitui o tema de hoje. Ana Luísa Amaral é a nossa cicerone de hoje.
‘O sol de lado
e em frente: um verde
de verão, tão verde de
verão
a amanhecer: eu sem
saber’, Ana Luísa Amaral
Ana Luísa Amaral nasceu a 5 de abril de 1956, em Lisboa. Autora de mais de três dezenas de livros, entre poesia, teatro, ficção, infantis e de ensaio, a sua obra está traduzida e publicada em diversos países. Obteve várias distinções e prémios em Portugal e no estrangeiro, como a Medalha da Cidade de Paris, a Medalha de Ouro da Câmara Municipal do Porto, o Prémio Literário Correntes d’Escritas, o Premio de Poesía Fondazione Roma, o Grande Prémio de Poesia da APE, o Prémio PEN de Ficção, o Prémio Vergílio Ferreira, e ainda, o Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana. Traduziu diferentes poetas, como Emily Dickinson, William Shakespeare e Louise Glück. Foi professora da Faculdade de Letras do Porto e membro sénior do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, onde trabalhou nas áreas de poéticas comparadas e estudos feministas. Morreu a 5 de agosto de 2022.
A homenagem que prestamos a Ana Luísa Amaral é inteiramente subscrita por Eduardo Lourenço no número 187 da revista Colóquio Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, de setembro de 2014, sobre o livro “Escuro” (Assírio e Alvim), que o ensaísta apresentou publicamente. Oiçamos o nosso querido e saudoso mestre.
UMA SUBTIL NAVEGAÇÃO A CÉU ABERTO «Os que conhecem e amam a poesia de Ana Luísa Amaral sabem como ela é uma subtil navegação a céu aberto entre os recifes da realidade. (…) Ana Luísa é da raça das sibilas e das cassandras, mas também das penélopes fiando às avessas o fio mortal da vida como obscuridade original na esperança de que se volva luz. E mesmo luz eterna. Esta vocação onírica e mítica, revisitação do imaginário clássico do Ocidente, irmana e distingue a sua aventura poética da outra corrente também a ela paralela da poesia como empresa real de transfiguração da vida épica inaugural da humanidade em modelo dos atos mágicos e utópicos de uma outra criação. (…) Toda a sua original obra poética podia levar o título de Memórias Revisitadas, uma outra versão do mítico título proustiano ‘Em busca do Tempo Perdido’, não em mera chave sublimemente autobiográfica, mas transtemporal como jogo de todos os tempos: «Em vez de vinte tempos / de mudança / queria um tempo / só meu: revisitado // Um tempo o mesmo / tempo sempre o mesmo / polvilhado de salas / de visita // Um tempo de mudar / formas às coisas / às vezes / abrir portas.» Embora fascinada pelos mistérios na aparência mais profundos que os do «tempo humano», é neste e deste que a sua voz poética se faz glosa e se extasia: «Revisitar os sítios / do pressentimento: / quase não ter-te / o tempo a recolher-se // E não mandar no tempo, / eu impotente / a vê-lo recolher-se // Tu quase a já / não estares / volume a menos // Revisitar / a / tua / ausência».
SOB O SIGNO DE DOIS VIDENTES No seu livro de poemas “Escuro”, colocado sob o signo de dois videntes, S. João da Cruz e William Blake, Ana Luísa revisita uma vez mais a pura memória, a de uma infância onde obscuridade escutada e «a mais pura alegria» se misturam». Através «de tempos que nunca sobre si mesmos se fecham, (Ana Luísa) encontra no absoluto da paixão, com abandono e perda glorificada, a sua música mais rente ao silêncio, a da obscuridade da alma convertida como a de Mariana no cântico dos cânticos de todas as seduzidas e abandonadas. Chama-se «A Carta», dirigida ao que lhe foi tudo e ninguém, pura chama de amor por Stendhal lembrada como a mais alta forma de paixão:
«Senhores: / hão de a dor e a ausência ter sabor, / um certo cheiro doce e demorado, / em forma de mil olhos // Pois vós olhastes essa minha ausência, / dissestes que dali criei palavras, / mas não por minha mão // Na vossa história, senhores, /eu fui só voz, /em vez de gente inteira // Inteira, nunca o fui, / dobrada ao meio pelo escuro das vestes, / pelas juras forçadas que cumpri, / pelo dever que me ditou meu pai // Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas, / eu, que as fui construindo devagar, / na escuridão da cela […] // Não fui só voz: / fui eu, dona de mim, / porque as letras me foram, e o amor, /e o ódio vagaroso // Só para isso me valeu viver, / para compor, igual a sinfonia, / tudo o que considerei // Ele foi só palavras que em palavras forjei, / bigorna onde moldei espadas e lanças, / o lume necessário // Só não moldei / as grades da prisão onde vivi: / essas, moldastes vós / até incandescência // Mas eu, nas letras que compus, / eu inventei a ausência como mais ninguém. / Eu fui a mão da ausência / numa cela escura // E os atos dele foram-me as metáforas, / imagens a seguir-me, mais fortes / do que a vida. / Por isso me chamastes, senhores, / no vosso tempo, uma palavra nova e ágil: / literatura // E assim eu fui-vos voz, / e doce mito. E nada mais / vos fui // Quero dizer-vos hoje, / neste tempo tão escuro, / mas de um escuro diverso do que tive: / adeus // Deixai-me o escuro, o meu. / Porque ao lado da minha, / a vossa ausência, essa que em mim plantastes, / nada é. // Tomáreis vós saber o que é ausência / Ausência: eu: demorada nestas linhas. / Dizer com quanto escuro / a noite se desfaz / e se constrói».
Desta ausência Ana Luísa fez não uma luminosa habitação, mas uma espécie de esplendor, não como aquele com que Rilke dourou a Morte, mas pura saudade intérmina da Vida. Bem haja ».
(O Texto encontra-se integralmente digitalizado, como acontece com toda a coleção de “Colóquio Letras”).
Na varanda, em perfume comum de outros aromas: hibisco, uma roseira, um pé de lúcia-lima
Mas estes são prodígios para outra manhã: é que esta flor gerou folhas de verde assombramento, minúsculas e leves
Não a ameaçam bombas nem românticos ventos, nem mísseis, ou tornados, nem ela sabe, embora esteja perto, do sal em desavesso que o mar traz
E o céu azul de Outono a fingir Verão é, para ela, bênção, como a pequena água que lhe dou
Deve ser isto uma espécie de paz:
um segredo botânico da luz
in Entre Dois Rios e Outras Noites, 2007
Botanics of peace: visitation
I have a flower whose name I don’t know
On the balcony, its scent blends with other smells: hibiscus, rose, a sprig of verbena
But they will be prodigies of another morning: for this flower has bred leaves of astonishing green, minute and subtle
Bombs do not threaten it nor do romantic winds, missiles or tornados, neither does it know, although so near, of the jeopardy the salt sea air will bring
And the blue autumn sky disguised as summer gives it such blessing, as does the little water that I pour
A casa em Boliqueime (2002), de Ricardo Bak Gordon (1967) faz lembrar ‘o jogo sábio, correcto e magnífico dos volumes sob a luz’, que Le Corbusier mencionava em ‘Vers une Architecture’. É uma casa branca que só precisa de sol para ser vivida por dentro. E traz o espanto inesperado que toda a arquitectura deveria ter.
A casa em Boliqueime torna poética a experiência daquele lugar - porque preenche falhas, radicaliza, revela, acrescenta e sobretudo introduz um novo modo de olhar e uma nova relação do ser humano com o mundo.
‘O sol de lado, banhando
uma casa sem pontes, tempo
sem luz, ou casa
como tenda’, Ana Luísa Amaral
Para Bak Gordon, a apropriação de um lugar, a ordem das formas, a ligação dos volumes à terra e a organização programática acontece sempre através do desenho. O desenho é expressão, é gesto, é processo físico mas sobretudo investigação.
A casa em Boliqueime ergue-se intemporal e sensível à paisagem que a envolve. É uma unidade fechada e contrastante com a natureza. É uma elementaridade esquemática que pertence a qualquer tempo mas somente àquele lugar. Consegue cruzar a herança da arquitectura vernácula e a herança da arquitectura das vanguardas históricas. Consegue transformar e ampliar artificialmente o significado concreto daquele lugar.
Esta casa afirma uma essencialidade unitária, uma dureza táctil e uma limpidez matérica. As formas primárias leêm-se claramente, mas escondem que a piscina é também um volume. É uma casa abstracta (que através de uma síntese chega ao essencial), passível de ser ocupada e e de ser capaz de ampliar a experiência de uma vida.